Livro O Bispo Negro

                                                                      

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O Bispo Negro (1130)

de Alexandre Herculano

 

 

 

 

CAPÍTULO I

 

Houve tempo em que a velha catedral conimbricence, hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que crêem existir nele, e só nele, uma inteligência que as perceba.

Então aquelas  ameias  e  torres  não  haviam  sido  tocadas  das  mãos  de homens,  desde que os seus edificadores as tinham colocado sobre as alturas; e,

todavia, já então ninguém sabia se esses edificadores eram da nobre raça goda, se da dos nobres conquistadores árabes.

Mas, quer filha dos valentes do Norte, quer dos pugnacíssimos sarracenos, ela era  formosa, na sua singela grandeza, entre as outras s das Espanhas. sucedeu o que ora ouvireis contar.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

Aproximava-se o meado do duodécimo século. O príncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espectáculo de um filho condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o fato; a tradição verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.

Em  uma  das  torres  do  velho  alcácer  de  Coimbra,  assentado  entre  duas

ameias,  a  horas  em  que  o  sol  fugia  do  horizonte,  o  príncipe  conversava  com Lourenço  Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios e apurava traças para guerrear a mourisma.

E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcácer e viu o bispo D.  Bernardo, que, montado em sua nédia mula, cavalgava apressado pela encosta acima.

 

Vedes s disse ele ao Espadeiro o nosso leal Dom Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave, por certo, o faz sair a tais desoras da crasta da sua . Desçamos à sala de armas e vejamos o que ele quer. E desceram.

 

Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do alcácer de Coimbra, pendurados  de  cadeiras de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura que sustentavam  os  tectos de grossa cantaria. Pelos feixes de colunas delgadas, entre si separadas, mas ligadas sob os fustes por base comum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das  lâmpadas  e pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento.  Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para outro lado.


 

 

 

Uma portinha, que ficava em um ângulo da quadra, abriu-se, e dela saíram o príncipe  e  Lourenço  Viegas,  que  desciam  da  torre.  Quase  ao  mesmo  tempo assomou no grande portal de entre o vulto venerável e solene do bispo D. Bernardo.

 

Guardai-vos Deus, dom bispo! Que mui urgente negócio vos traz aqui esta noite? disse o príncipe a D. Bernardo.

Más novas,. senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi.

E que quer de s o papa?

Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe...

Nem pelo papa, nem por ninguém o farei.

E manda-me que vos declare excomungado, se o quiserdes cumprir seu mandado.

E vós que intentais fazer?

Obedecer ao sucessor de o Pedro.

Quê? Dom Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical;

aquele que o levantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso príncipe,  porque  ele  o  quer  r  a  risco  a  liberdade  desta  terra  remida  das opressões do senhor de Trava e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha e dos cavaleiros portugueses?

Tudo vos devo, senhor atalhou o bispo salvo a minha alma, que

pertence a Deus, a minha , que devo a Cristo, e a minha obediência, que guardarei ao papa.

Dom Bernardo! Dom Bernardo! disse o príncipe, sufocado de cólera —, lembrai-vos de que afronta que se me fizesse nunca ficou sem paga!

Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?

Não! Mil vezes não!

Guardai-vos!

 

E o bispo saiu, sem dizer mais palavras. Afonso Henriques ficou pensativo por algum tempo;  depois, falou em voz baixa com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcácer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silêncio.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia seguinte, Lourenço Viegas passeava com o príncipe na sala de armas do paço mourisco.

 

Se eu próprio o vi, montado na sua nédia mula, ir lá muito ao longe, caminho da terra de Santa Maria. Na porta da estava pregado um pergaminho com larga escritura, que,  segundo me afirmou um clérigo velho que chegara quando eu olhava para aquela carta, era o que eles chamam o interdito... Isto dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receava que alguém o ouvisse.

 Que  receias,  Lourenço  Viegas?  Dei  a  Coimbra  um  bispo  que  me excomunga, porque assim o quis o papa: dar-lhe-ei outro que me absolva, porque assim o quero eu. Vem comigo à . Bispo Dom Bernardo, quando te arrependeres da tua ousadia já será tarde.


 

 

 

Dali a pouco as portas da Sé estavam abertas, porque o sol era nado, e o príncipe, acompanhado de Lourenço Viegas e de dois pajens, atravessava a igreja e dirigia-se à crasta, onde, ao som de campa tangida, tinha mandado ajuntar o cabido, com pena de morte para o que aí faltasse.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

Solene era o espectáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O sol dava, com todo o brilho de manhã puríssimo, por entre os pilares que sustinham as abóbadas dos cobertos  que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos caminhavam os cônegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bago  suave  do  vento  matutino.  No  topo  da  crasta  estava  o  príncipe  em  pé, encostado ao punho da espada, e, um pouco atrás dele, Lourenço Viegas e os dois pajens. Os cônegos iam chegando e formavam um semicírculo a pouco distância de el-rei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam buliçosos os raios do sol.

Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e

com  os  olhos  fitos  no  chão,  parecia  envolto  em  fundo  pensar.  O  silêncio  era completo.

Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse:

 

Cônegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal? Ninguém respondeu palavra.

Se o sabeis, dir-vo-lo-ei eu prosseguiu o príncipe : vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.

Senhor, bispo havemos. Não cabe nova eleição disse o mais e velho e autorizado dos cônegos que estavam presentes e que era o adaião.

Amen responderam os outros.

 

Esse que s dizeis bradou o infante cheio de cólera , esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo s em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.

 

Senhor, bispo havemos. o cabe aí nova eleição repetiu o adaião.

Amen — responderam os mais.

 

O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.

 

Pois bem! disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns momentos de silêncio. Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa  e ! Saí, vos digo eu! Alguém por s elegerá um bispo...

 

Os cônegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.

Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha


 

 

 

estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele  sorria-se  e  meneava  a  cabeça,  como  quem  aprovava  o  dito.  Os  cônegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.

 

Como s nome? perguntou-lhe o príncipe.

Senhor, hei nome Çoleima.

És bom clérigo?

Na companhia não dois que sejam melhores.

Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.

 

O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contração de susto.

 

Missa não vos cantarei eu, senhor - respondeu o negro com voz tremula

que para tal auto o tenho as ordens requeridas.

Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando s vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.

 

O clérigo curvou a fronte.

 

Kirie-eleyson... Kirie-eleyson... Kirie-eleysom! garganteava daí a pouco Dom  Çoleima,  revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. O infante Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com profunda devoção.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra havia grande sarau.  Donas e donzelas, assentadas ao redor do aposento, ouviam os trovadores  repetindo  ao  som   da  viola  e  em  tom  monótono  suas  magoadas endechas, ou folgavam e riam com os arremedilhos satíricos dos truões e farsistas. Os cavaleiros, em , ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos, ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, porém, entre um labirinto de colunas, que dava saída para uma galeria exterior,  quatro personagens pareciam entretidas em negócio mais grave do que os prazeres de noite de folguedo o permitiam. Eram estas personagens Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia,  Lourenço Viegas e Gonçalo de Sousa, o Bom. Os gestos dos quatro cavaleiros davam mostras de que eles estavam vivamente agitados.

 

É o que afirma, senhor, o mensageiro dizia Gonçalo de Sousa que me enviou o abade do mosteiro de Tibães, onde o cardeal dormiu uma noite para o entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vós, porque vos supõe herege. Em todas as partes por onde o legado passou, em França e em Espanha, vinham a lhe beijar ao reis, príncipes e senhores: a eleição de Dom Çoleimao pode, por certo, ir avante...


 

 

 

Irá, irá respondeu o príncipe em voz o alta que as palavras reboaram pelas abóbadas do vasto aposento. Que o legado tenha tento em si! o sei eu se haveria aí cardeal ou apostólico que me estendesse a o para eu lha beijar, que pelo cotovelo lha o cortasse fora a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, não as farei eu!

 

Isto foi o que se ouviu daquela conversação: os três cavaleiros falaram com o príncipe ainda por muito tempo; mas em voz tão baixa, que ninguém percebeu mais nada.

 

 

 

CAPÍTULO VI

 

Dois dias depois, o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua nédia mula, como se maleitas o houvessem tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos, e alguém as havia repetido ao legado.

Todavia,  apenas  passou  a  porta  da  cidade,  revestindo-se  de  ânimo, encaminhou-se direto ao alcácer real.

O príncipe saiu a recebê-lo acompanhado de senhores e cavaleiros. Com

modos corteses, guiou-o à sala do seu conselho, e aí se passou o que ora ouvireis contar.

O infante  estava  assentado  em  uma  cadeira  de  espaldas:  diante  dele  o legado, em  um  assento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavaleiros cercavam o filho do conde Henrique.

 

Dom cardeal começou o príncipe —, que viestes vós fazer a minha terra? Posto  que de Roma mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda o senhor papa para estas hostes que faço e com que guerreio, noite e dia, os infiéis da fronteira. Se isto trazeis, aceitar- vos-ei: depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem.

 

No ânimo do legado a cólera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras do príncipe, que eram de amargo escárnio.

 

o a trazer-vos riquezas atalhou ele, mas a ensinar-vos a fé vim eu; que dela parece vos esquecestes, tratando violentamente o bispo Dom Bernardo e pondo em seu lugar um bispo sagrado com vossas manoplas, vitoriado por vós com palavras blasfemas e malditas...

Calai-vos, dom cardeal gritou Afonso Henriques que mentis pela

gorja! Ensinar-me a fé? Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem; o certo, como s outros romãos, cremos na Santa Trindade. Se a outra cousa vindes, amanhã vos ouvirei: hoje ir-vos podeis a vossa pousada.

 

E ergueu-se: os olhos chamejavam-lhe de furor. Toda a ousadia do legado desapareceu como fumo; e, sem atinar com resposta, saiu do alcácer.


 

 

 

CAPÍTULO VII

 

O galo tinha cantado três vezes: pelo arrebol da manhã, o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente.

O príncipe foi um dos que despertaram mais cedo. Os sinos harmoniosos da

costumavam acordá-lo tocando as ave-marias: mas naquele dia ficaram mudos; e, quando ele se ergueu, havia mais de uma hora que o Sol subia para o alto dos céus da banda do Oriente.

 

Misericórdia!, misericórdia! gritavam devotamente homens e mulheres à porta do alcácer, com alarido infernal. O príncipe ouviu aquele ruído.

Que vozes o estas que soam? perguntou ele a um pajem.

 

O pajem respondeu-lhe chorando:

 

Senhor, o cardeal excomungou esta noite a cidade e partiu: as igrejas estão fechadas; os sinos já o há quem os toque; os clérigos fecham-se em suas pousadas. A maldição do santo padre de Roma caiu sobre nossas cabeças.

 

Outras voz soou à porta do alcácer:

 

Misericórdia!, misericórdia!

Que enfreiem e selem o meu cavalo de batalha. Pajem, que enfreiem e selem o meu melhor corredor.

 

Isto dizia o príncipe encaminhando-se para a sala de armas. Aí envergou à pressa um saio de malha e pegou em um montante que dois portugueses dos de hoje apenas valeriam a  levantar do chão. O pajem tinha saído, e dali a pouco o melhor cavalo de batalha que havia em  Coimbra tropeava e rinchava à porta do alcácer.

 

 

 

CAPÍTULO VIII

 

Um clérigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de Coimbra seguia o  caminho da Vimieira e, de instante a instante, espicaçava os ilhais da cavalgadura com seus acicates de prata. Em outras duas mulas iam ao lado dele dois mancebos com caras e meneios  de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando em seu porte e idade que aprendiam  ainda  as pueris ou ouviam as gramaticais. Eram o cardeal, que se ia a Roma, e dois sobrinhos seus, que o haviam acompanhado.

Entretanto  o  príncipe  partida  de  Coimbra  sozinho.  Quando  pela  manhã

Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram em seus paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o caráter violento de Afonso Henriques, os dois cavaleiros seguiram-lhe a pista à rédea solta, e iam já muito longe quando viram o pó que ele levantava, correndo ao longo da estrada, e o cintilar do sol, batendo-lhe de chapa na cervilheira, semelhante ao dorso de um crocodilo.

Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes, e breve alcançaram o infante.


 

 

 

Senhor,  senhor;  aonde  ides  sem  vossos  leais  cavaleiros,  o  cedo  e açodadamente?

Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim...

 

A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela  encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das opas e cabelos tonsurados.

 

Oh! ... disse o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso  houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada.

Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tua! - rezou o

cardeal em voz baixa e tremula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu Afonso Henriques.

 

Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e  cruzaram-nas debaixo do golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás i crânio do pobre clérico teria ido fazer mais de quadro redemoinhos nos ares.

 

Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus

gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.

Príncipe disse o velho, chorando , o me faças mal; que estou à tua mercê! Os dois mancebos também choravam.

 

Afonso Henriques  deixou  descair  o  montante, e ficou em silêncio alguns momentos.

 

Estás  à  minha  mercê?  disse  ele  por  fim.   Pois  bem!  Viverás,  se desfizeres o  mal que causaste. Que seja levantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em  nome  do apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?

Sim, sim! respondeu o legado com voz sumida.

—Juras?

Juro.

Mancebos, acompanhai-me.

 

Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sozinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria.

Daí a quatro meses, D. Çoleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de

Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção  de  Roma;  e  os  sobrinhos  do  cardeal,  montados  em  boas  mulas,  iam cantando devotamente pelo caminho da Vimieira o salmo que começa:

In exitu Israel de AEgypto.

Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo


 

 

 

legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia:

Se  tu,  santo  padre,  viras  sobre  ti  um  cavaleiro  o  bravo  ter-te  pelo

cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça, e seu cavalo, o feroz, arranhar a terra, que já  te  fazia a cova para ter enterrar, o sòmente deras as letras, mas também o papado e a cadeira apostolical.

 

NOTA

 

A lenda precedente é tirada das crônicas de Acenheiro, rol de mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais judiciosamente em deixá-las no pó das  bibliotecas, onde haviam jazido em paz por quase três séculos. A mesma lenda tinha sido  inserida pouco anteriormente na crônica de Afonso Henriques por Duarte Galvão, formando a  substância de quatro capítulos, que  foram  suprimidos  na  edição  deste  autor,  e  que  mereceram  da  parte  do acadêmico D. Francisco de S. Luís uma grave refutação. Toda a  narrativa das circunstâncias que se deram no fato, aliás verdadeiro, da prisão de D. Teresa, das tentativas oposicionistas do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a história daquela época. A tradição é falsa a todas as luzes; mas também é certo que ela se originou de alguma acto de violência praticado nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo e, posto que estrangeiro, bem informado geralmente acerca dos sucessos do nosso país, o inglês  Rogério  de  Hoveden,  narra  um  fato,  acontecido  em  Portugal,  que,  pela analogia  que  tem  com  o  conto  do  bispo  negro,  mostra  a  origem  da  fábula.  A narrativa  do  cronista  está  indicando  que  o  acontecimento  fizera  certo  ruído  na Europa, e a  própria confusão de datas e de indivíduos que aparece no texto de Hoveden mostra que o sucesso era anterior e andava alterado na tradição. O que é  certo  é  que  o  achar-se  esta  conservada  fora  de  Portugal  desde  o  século duodécimo por um escritor que Ruy de Pina e  Acenheiro não leram (porque foi publicado no século décimo sétimo) prova que ela remonta entre nós, por maioria de razão, também ao século duodécimo, embora alterada, como a vemos no cronista inglês. Eis a notável passagem a que aludimos, e que se lê a página 640 da edição de Hoveden, por Savile:

“No mesmo ano (1187) o cardeal Jacinto, então legado em toda a Espanha, depôs muitos prelados (abbates), ou por culpas deles ou por ímpeto próprio, e como quisesse depor o bispo de Coimbra, o rei Afonso (Henrique) o consentiu que ele fosse deposto e mandou ao dito cardeal que saísse da sua terra, quandoo cortar- lhe-ia um pé.

 

 

 

 

 

 

 

 

FIM