Livro Morgadinha Canaviais2

                                                                      

 

 

 

 

--Será tudo o que quizer o limiar de uma porta, primo; menos um logar
muito confortavel para serões n'uma noite de dezembro.

E Magdalena tentou de novo seguir para deante.

Henrique susteve-a outra vez.

--Um momento só, prima Magdalena; tenho necessidade de saber se me quer
para alliado ou para inimigo.

--Não vejo a necessidade da alliança que propõe, nem as razões para a
lucta.

--Sejamos francos. A prima deve confessar que a minha presença aqui foi
um desagradavel contratempo. Uma certa altivez e consciencia de
invulnerabilidade, de que tinha o incómmodo de se revestir, sempre que
tratava commigo, depois d'esta importuna occorrencia terá de se
modificar.

--Não havia dado por essa... _revestidura_ que diz; mas, se ella
existiu, far-me-ha o favor de dizer: por que não pode continuar?

--Essa é boa! porque eu faço a justiça á prima de suppôr que não vae tão
longe a sua hypocrisia.

--Hypocrisia!--disse Magdalena, com accento mais severo.

--Perdão; não tive tempo para inventar outro termo mais... brando.
Dissimulação talvez lhe agrade mais. Seja dissimulação. Mas depois do
occorrido...

--Agora exijo eu que se explique, senhor.

--Ora vamos. Seja razoavel. Poder-me-ha dar uma explicação...
edificante... d'esta sua excursão nocturna?

--Obsta apenas a que eu lh'a dê, sr. Henrique de Souzellas, a falta de
uma pequena formalidade: a de lhe reconhecer o direito de interrogar-me.

--Muito bem. Cada vez confirmo mais a minha ideia. A prima é uma mulher
admiravel, uma mulher superior, educada na alta escola de uma sociedade
distincta, sobranceira por isso a pieguices provincianas. Tanto mais me
encanta! E creia que me envergonho só ao lembrar-me do que terá pensado
de mim, vendo-me tomar a sério as suas profissões de fé, tão cheias de
franqueza e de candura. Devo ter-lhe parecido bem ridiculo, não é
verdade?

--Agora é que me está parecendo bem enygmatico!

--Sim? N'esse caso eu me decifro. A prima não ignora que eu a amo.

--Pois ignorava!--atalhou Magdalena, com ironia.

--E sabe de certo, por experiencia do mundo, que para homens como eu, a
indifferenca, a frieza e os desdens redobram o ardor da paixão.

--Sim; já li isso n'um romance.

--A prima tem sido para commigo de uma crueldade revoltante, mas pouco
sincera. Eu resignava-me a soffrer, porque um resto de ingenuidade que
me ficou dos quinze annos, illudia-me na interpretação de taes
resistencias. Tive a puerilidade de a suppôr uma mulher de excepção;
pouco me faltou para a divinisar. Estava reservado para esta memoravel
noite de Natal o desengano.

--Ah! então parece-lhe...

--Que a prima representa admiravelmente o seu papel. Pode gabar-se de
ter illudido um homem habituado ás scenas da comedia social.

Magdalena respondeu, com um tom de voz cheio de severidade e de nobreza:

--Tenho-o estado a escutar, sr. Henrique de Souzellas, sem que eu
propria bem saiba o que me retem aqui: se é a compaixão que me inspira a
profunda doença moral de que o vejo tomado, se a curiosidade de saber a
que tendem todos esses arrazoados. Vejo-o inclinado a imaginar que por
um facto, que a sua pouco delicada indiscreção preparou, eu ficarei de
hoje em deante á mercê da sua generosidade. Conhece-me muito pouco, sr.
Henrique! Ainda quando esse facto não pudésse ter uma explicação
natural, e que me não repugnará declarar quando quizer, saiba que tenho
orgulho de mais para arrostar com tudo, até com a calumnia, de
preferencia a resignar-me ao menor predominio que me seja odioso.

--Bravo!

--Saiba mais, sr. Henrique de Souzellas, que se eu não lhe fizesse a
justiça de acreditar que d'esses seus actos e palavras não é
absolutamente irresponsavel talvez a má influencia da ceia d'esta noite,
bastariam elles para me inspirarem por si e pelo seu caracter o mais
completo desprezo; e então seria, como nunca, manifesta a minha
independencia, porque eu nunca temi os seres que desprezo.

Henrique principiava a ser de novo subjugado pelo tom de severidade e de
energia, com que a morgadinha lhe falava; ainda assim um resto de
scepticismo obrigou-o a replicar:

--Santo Deus! prima Magdalena; não dê um colorido tão pavoroso ás minhas
supposições. Despojal-a de uma crueza deshumana, para a dotar de uma
sensibilidade, verdadeiramente feminil, é uma justiça feita ao seu
coração. E o facto que o acaso me revelou a nada mais me auctorisa. O
pequeno e natural despeito por me haver deixado illudir desvaneceu-se
já, creia; e agora só me resta invejar a sorte de quem tem a
felicidade...

--Basta! Ordeno-lhe que se cale, senhor! Nem mais um instante o
escutarei; poupar-lhe-hei assim os remorsos, que ámanhã teria da sua
infamia...

E animada por uma resolução mais energica, Magdalena caminhou
soberanamente para a porta.

Henrique collocou-se-lhe outra vez deante.

--Um momento mais.

--Deixe-me passar, senhor.

--Não, sem que me ouça antes.

--É uma violencia?

--É uma supplica.

N'este momento saiu da obscuridade da rua fronteira um vulto que avançou
para elles.

--Sr.^a D. Magdalena, se fôr preciso reter o insolente, que se lhe
atravessa no caminho, ponho um braço á sua disposição.

E Augusto, de quem partiram estas palavras, veio collocar-se entre
Henrique e Magdalena.

Ouvindo-o e reconhecendo-o, Henrique estremeceu de cólera. O olhar que
fixou no recem-chegado trahiu a vehemencia da impressão recebida. Depois
succedeu-se-lhe no espirito outra ordem de ideias. Olhou para Magdalena,
em quem não era menor a surpreza causada pela inesperada presença de
Augusto, olhou outra vez para este e soltou uma risada cheia de
malignidade e de ironia, que a ambos fez estremecer.

--Ahi está uma apparição tanto a tempo, prima Magdalena, que aos mais
incredulos infundiria fé na intervenção da Providencia. Que foi sem
dúvida providencial o acaso, que trouxe por aqui, a estas horas mortas,
um tão generoso e intrepido salvador. Não é verdade, prima? O que vale
estar de bem com Deus!

Estas palavras mostraram a Augusto que a sua intervenção, ainda que
generosa e devida a um espontaneo impulso da alma, não fôra porventura
das mais convenientes.

--Senhor!--exclamou elle, indignado, dando um passo para Henrique.

--Socegue--tornou este, com dobrado sarcasmo.--O senhor é um perfeito
heroe de romance; enthusiasta, cavalheiresco, mas, em certas occasiões,
incómmodo de candura, por isso mesmo. Se soubesse o transtorno que veio
causar a um bello dialogo que eu sustentava aqui com a sr.^a D.
Magdalena! Não vê como a deixou embaraçada? Perdeu com a sua vinda o fio
da comedia, que desempenhava com perfeita sciencia de actriz. As almas
ingenuas e generosas, como a sua, sr. Augusto, são ás vezes de uma
impertinencia! Vamos, sr.^a D. Magdalena; não descoroçôe. Assim exgotou
todos os recursos da sua imaginação? Vamos, introduza mais este elemento
de apparição de um heroe no enredo, e organise a comedia com o superior
talento que tem! Eu por mim acceito todos os papeis que me distribuir.

Augusto ia responder, quando Magdalena o atalhou, dizendo com voz firme:

--Perdão; vejo n'esta noite em todos uma notavel disposição para
usurparem direitos, que não possuem! O sr. Henrique, o de me interrogar;
o sr. Augusto o de me defender. A um repetirei o que já ha pouco lhe
disse; se algum dia tiver necessidade de explicar as minhas acções,
fal-o-hei deante de outros juizes, em quem reconheça o direito de o
serem. Ao outro peço licença para lhe lembrar que, se o titulo de
hospede e de parente não fôsse bastante para me assegurar da parte do
sr. Henrique de Souzellas os respeitos que me são devidos, tinha ainda
na minha familia defensores legitimos e não seria por isso obrigada a
recorrer á protecção de um estranho. Meus senhores...

E, inclinando-se senhorilmente, a morgadinha passou por entre elles e
entrou para a quinta, sem que nenhum a procurasse reter.

--Se esta senhora acceitasse a sua protecção e eu teimasse n'aquillo que
chamou a minha insolencia, qual seria, pouco mais ou menos, o seu
procedimento? Poder-se-ha saber?--perguntou Henrique, logo que a
morgadinha desappareceu.

Augusto, em quem a fria altivez da resposta d'ella deixára o desespero
no coração, respondeu acerbamente:

--Procuraria ensinal-o a ser cortez. Bem vê que não me esqueço
facilmente do meu programma de mestre-escola.

--Vejo; é a segunda tentativa de lição que lhe mereço. Permitte-me que
ámanhã o procure para dar principio a um curso de educação mais regular?

Augusto respondeu, sorrindo:

--É um cartel em fórma? Não sei se estarei ensaiado para essa comedia.

--Se o genero tragico lhe agrada mais, dar-se-lhe-ha esse sabor.

--Bem ouviu que se me negou o direito de tomar partido por esta causa.
Qualquer scena d'essas entre nós seria pouco delicada... ámanhã.

--Pois bem, contemporisemos; e até lá é de esperar que algum motivo
occorra que a explique melhor... aos olhos dos outros.

--Como queira; a minha porta não se fecha a quem me procura.

E separaram-se depois de se cortejarem.

--Se me não engano--dizia comsigo Henrique, em caminho do quarto--é um
verdadeiro desafio o que eu acabo de dirigir a este rapaz. Quer-me
parecer que estou sendo bem ridiculo, desafiando um mestre-escola. Se
lhe deixo a escolha das armas, decide-se pela férula. Tem graça! Veremos
o que ámanhã, á luz do dia, eu penso d'isto tudo. Eu já não fico por mim
esta noite. Estou a querer convencer-me de que tenho andado
estouvadamente e com não demasiado cavalheirismo. Que diabo! É que esta
mulher e este creancelho são irritantes. Ella com a sua altivez, elle
com os seus brios. Mas, na verdade, será este o Endymião d'esta esquiva
Diana? Caprichos feminis... É o tal primo ingenuo e timido... A
ociosidade da aldeia para alguma coisa ha de dar. Mas da maneira por que
ella lhe falou... Havia certo tom de sinceridade... Astucias... O que é
certo é que estou em lucta com uma mulher superior... Pois luctemos,
priminha, mas com armas leaes. Não me prevalecerei do segredo que o
acaso me revelou, se segredo existe... Veremos como ella ámanhã me
trata...

Esta scena deixou em Augusto uma perturbação de espirito mais profunda.

As operações mentaes, que o preoccuparam toda a noite, eram d'aquellas a
que repugna chamar pensar. É mais uma febre intellectual, um succeder de
imagens sem ordem nem filiação, que não conduz a nenhum resultado, que
não aconselha nenhum partido, que não esclarece, offusca.

Como se explica esta differença entre os dois? Por um apparente
parodoxo; porque Augusto tinha mais habitos de reflectir. Quando n'uma
vida de episodios uniformes e apparentemente vulgares, o espirito exerce
demasiado a analyse, habitua-se a estudar factos que para outros passam
por insignificantes, e descobre-lhes faces novas e desconhecidas.
Costumado assim a ligar valor a tudo, quando succede que no decurso da
vida se lhe depara um facto de maior vulto, a confusão do primeiro
momento é inevitavel. Assim como a balança de precisão, apropriada para
oscillar com pesos tenuissimos, não é a que pode servir para os grandes
pesos, tambem a intelligencia costumada a pesar subtis accidentes, de
que se compõe o drama habitual da vida, não é a que de subito pode
avaliar algum mais complexo e importante.

A resolução n'estes espiritos, depois de formada, é mais tenaz; mas,
emquanto se não fórma, vae n'elles um tumulto de ideias, que se não
podem analysar.

Não analysemos, pois, as de Augusto.

Magdalena não socegou emquanto não viu Henrique voltar ao quarto, pelo
mesmo caminho por que saíra.

--Que resultará d'isto?--pensava ella.--Que fará elle ámanhã?... É
preciso não me acobardar, ou estou vencida... Mas que se passaria depois
que os deixei?... Veremos ámanhã.

No meio d'esta serie de pensamentos, Magdalena sorriu.

É que lhe occorrera então este pensamento:

--Dizem que nós, as mulheres, temos filtros subtis para nos tornar
amadas. Pois será mais difficil fazer-se aborrecida? Como o conseguirei?


FIM DO PRIMEIRO VOLUME

 


BIBLIOTHECA ESCOLHIDA

XXIII

ROMANCE

III


A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

Vol. II

 


CENTRO TIPOGRAFICO COLONIAL
LARGO BORDALO PINHEIRO, 27 E 28
TELEPHONE 2337

 


JULIO DINIZ


A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

(CHRONICA DA ALDEIA)

DECIMA-SETIMA EDIÇÃO

 

LISBOA
J. RODRIGUES & C.^a, EDITORES
186--Rua Aurea--188
_1920_

 


A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

 


XVII


Não havia mentido a grande scintillação das estrellas na noite de Natal.

A manhã do dia seguinte correspondeu ao augurio meteorologico, rompendo
pura, desennevoada, com um céo azul sem manchas, e um sol de fundir os
gêlos dos montes e os gêlos da velhice.

O frio intenso convidava a sair, e desde pela manhã aldeões de ambos os
sexos, de camisas lavadas e roupas domingueiras, atravessavam os campos,
saltavam sebes e cancellos, desembocavam das azinhagas e quelhas na
direcção da igreja matriz, onde se deviam celebrar as festas da
Natividade.

Era dia santo entre os que mais o são; e os dias santos na aldeia teem
uma feição solemne e festiva, que mal avaliamos nós, os que passamos a
vida nos apertados horizontes das cidades, phantasiando o campo por meia
duzia de pardaes, que chilram ruidosamente nas cópas das enfezadas
arvores das nossas praças e jardins.

Desde que a moda estabeleceu a lei de não solemnisar o domingo nem o dia
santo, com um vestuario mais asseiado, com um prato mais exquisito na
lista do jantar, com uma diversão excepcional, que todos deram em
vestir-se, comer e trabalhar n'esses dias, exactamente como em todos os
da semana, perderam nas cidades os dias do Senhor a feição typica e
interessante, que por muito tempo tiveram; e quem hoje bem os quizer
apreciar tem de ir n'um sabbado pernoitar ao campo, para amanhecer no
domingo ao som do sino, que chama para a missa matinal.

Dirá então se não parece que até o sol tem outra luz e que as arvores e
as plantas se toucaram de flores novas, que guardam de reserva para os
dias de festa.

Este particular aspecto do domingo estava-o logo pela manhã sentindo
Henrique de Souzellas, encostado á varanda do quarto em que pernoitára,
e emquanto esperava que o chamassem para o almoço.

De vez em quando a recordação das scenas nocturnas da vespera
desviava-lhe para outra ordem de reflexões o pensamento; acudiam-lhe
todos aquelles incidentes á memoria, mas vagos e confusos, como se
tivessem sido sonhados; chegava quasi a duvidar da realidade d'elles.

Agora estava experimentando certa curiosidade e tambem receio de saber
como seria recebido pela morgadinha, e que posição deveria tomar na
presença d'ella.

Formava a este respeito varias conjecturas, sem se fixar em nenhuma.

D'estas cogitações veio por fim arrancal-o o toque da campainha
annunciando o almoço.

--Vamos,--disse Henrique--preparemo-nos para o primeiro embate. Apuremos
a vista para n'um relance julgar do estado das coisas, e por elle
regular o meu plano de tactica.

E depois de uma rapida consulta ao toucador, desceu para a sala do
almoço.

Já alli encontrou reunida toda a familia do Mosteiro, e a morgadinha
presidindo á mesa e preparando o chá.

Todos saudaram Henrique, e a um tempo se informaram da maneira por que
elle tinha passado a noite.

Henrique respondeu que a tinha dormido deliciosamente; e, falando,
desviava o olhar para Magdalena, que o encontrou do modo mais natural,
sem timidez nem audacia.

Seguiram-se os cumprimentos em particular, chegando portanto a vez de
cumprimentar Magdalena.

--Bons dias, prima Magdalena,--disse Henrique, estendendo a mão e
fixando-a com olhar investigador.

Magdalena respondeu-lhe ao cumprimento, com sorriso que nada tinha de
affectado nem de constrangido:

--Bons dias, primo Henrique. Devem-lhe parecer horrorosos estes nossos
habitos matinaes. Foi uma indiscreção mandar tocar a campainha.
Esqueci-me de prevenir que respeitassem a indolencia cidadã.

--Eu é que não consentia:--disse o conselheiro--na aldeia como na
aldeia. Em Lisboa tambem as minhas alvoradas são mais tardias.

--Tem razão, sr. conselheiro. Eu proprio não esperei que me acordasse o
toque da sineta. Ha muito que eu namorava a manhã da janella do meu
quarto.

--Eu não pude dormir toda a santa noite--disse D. Dorothéa.--Estranhei a
cama e a casa. Eu cá sou assim, quem me tira do meu ninho!...

--Ó prima, não vá sem resposta--disse D. Victoria--que tambem eu não puz
olho, e mais sou de casa. E por signal que sempre hei de querer saber
quem foi o criado que lhe deu para andar toda a noite por a quinta. Eram
que horas e eu ainda ouvia pés nas escadas de pedra. É verdade; o primo
Henrique não ouviu? Era mesmo junto do seu quarto.

--Não, minha senhora; eu não senti rumor.

E dizendo isto, Henrique procurou os olhares da morgadinha, que
justamente n'aquella occasião lhe servia uma chavena de chá, e que de
novo o fixou sem perturbação nem affectada indifferença.

Henrique sentiu-se embaraçado com isto. Custava um pouco á sua vaidade
este nenhum vestigio de resentimento ou de receio, que encontrava em
Magdalena.

No entretanto D. Victoria continuava a commentar com D. Dorothéa o facto
das passadas que ouvira de noite.

--Deixe-se d'isso, prima. É porque não sabe o que vae. São coisas
d'estes criados. Não faz ideia! É uma pouca vergonha! É preciso
paciencia de santa para os aturar.

--Angelo,--disse a morgadinha ao irmão--entretido como estás a conversar
com as creanças, esqueces-te de servir a Christe, que tambem se esquece
de se fazer lembrar. Que distracções por aqui vão!

Angelo reparou para a prima, que em todo aquelle tempo estivera calada e
caida em uma d'aquellas abstracções, a que ultimamente era sujeita.

--Eu não sei que tem hoje esta Christe--disse Angelo.--Julgo que lhe fez
mal o frio na noite de hontem.

--É verdade, até está falta de côr! Ora queira Deus que não seja coisa
de cuidado. Dóe-te alguma coisa, menina?--perguntou D. Victoria,
apprehensiva.

--Não, mamã--respondeu Christina.

--Ó meninas, vocês tambem são umas desacauteladas. Eu bem te dizia
hontem, Christe, que levasses mais roupa. Tudo é não faz mal, tudo é não
tem dúvida, e depois é que vem o queixarem-se.

Isto disse a senhora de Alvapenha e muitas coisas mais n'este sentido.
Estas reflexões fizeram Henrique desviar os olhos para a pessoa que era
objecto d'ellas.

Christina estava effectivamnte pallida e pensativa; e d'esta côr e
d'esta expressão recebia uns ares de poesia melancolica, que a tornava
mais graciosa.

Henrique notou pela primeira vez a belleza d'esta creança, em que mal
fixára a attenção até alli, e pela primeira vez se demorou a observal-a
com alguma insistencia.

--É interessante esta pequenita--pensava elle comsigo.

Christina ia a levantar os olhos para responder a D. Dorothéa, quando
encontrou os de Henrique a fital-a. Assomou-lhe então ás faces um mal
pronunciado rubor, a palavra resolveu-se n'um sorriso e os olhos
baixaram-se de novo.

--Ha de ser adoravel esta mulher--pensou d'esta vez Henrique, vendo-a
sob novo aspecto.

O conselheiro disse, sorrindo:

--Ora, que estão a dizer? A Christe até está com umas côres muito
bonitas. Triste? Melancolias dos dezoito annos nunca me deram cuidados.
Provavelmente está agora n'algum episodio sentimental no romance da sua
imaginação. Não sondemos aquelles mysterios, mana. Já não é para nós
comprehendel-os, prima Dorothéa.

Todos riam do dito do conselheiro, o que redobrou o enleio de Christina.

A morgadinha, a quem não passára despercebida a impressão, que a prima
d'está vez parecia ter causado a Henrique, quiz aproveitar o ensejo que
havia tanto procurava, e para isso propoz que se désse uma volta pela
aldeia antes da missa do dia. Esperava ella que as attenções de
Henrique, durante o passeio, seriam para Christina, se não decorresse o
tempo preciso para que se dissipasse no espirito do voluvel rapaz a
impressão que o dominava.

A manhã convidava á excursão campestre. A proposta da morgadinha foi
acolhida com applauso. O conselheiro prometteu acompanhal-os até á casa
do herbanario, a quem tinha de visitar aquella manhã.

Levantaram-se todos da mesa, e á excepção de D. Victoria e D. Dorothéa,
todos saíram.

A morgadinha, sob não sei que pretexto, deixou-se ficar um pouco atraz
para dar tempo a Henrique de offerecer o braço a Christina, o que
effectivamente aconteceu.

--Bem,--disse Magdalena comsigo ao vêl-os--agora que os anjos bons de um
e de outro se convençam da obra meritoria que fazem entendendo-se.

E, approximando-se do pae, Magdalena apoiou-se-lhe no braço.

Angelo ia com as creanças adeante.

Approximemo-nos nós de Henrique e de Christina, para vêr se os anjos
bons d'elles ambos accederam ao convite de Magdalena.

--Não ha prazer que se compare ao de um passeio assim pelos campos,
n'uma manhã como a de hoje, e em companhia tão amavel--dizia Henrique,
procurando aquilatar o espirito da sua _partner_, n'um certame de
galanteria, fóra do qual não concebia que se pudesse temperar uma
paixão.

Pobre rapariga! Que eloquentes e apaixonadas respostas lhe estava
porventura ditando a alma! mas o enleio da timidez fechava-lhe os
labios, não lhe deixando formulal-as; apenas pôde responder:

--Está muito agradavel a manhã, está; nem parece de inverno!

--Pelo que vejo, não gosta do inverno? É natural em uma senhora isso.
Faltam-lhe as flores e as aves, suas irmãs. Eu prefiro o inverno, porque
prepara a vida intima, as scenas ao canto do fogão, as leituras em
commum, e traz-me á ideia as imagens de um viver a que a phantasia de
todos sorri; de todos os que teem um resto de coração; refiro-me ás
imagens de uma familia.

Não ha quem sustente mais tremendas luctas do que os timidos. A alma
revolta-se n'elles, com toda a violencia dos seus instinctos, contra não
sei que mysterio de temperamento, que lhes reprime as expansões. Na
apparencia é fraqueza e serenidade, mas no intimo ha esforços
realisados, que os fortes nem concebem sequer.

Christina encobria no seu enleio uma d'estas luctas. Os labios só
puderam responder:

--Na cidade o inverno é mais facil de passar, julgo eu; porém na
aldeia...

--Na aldeia e em toda a parte se pode gosar a felicidade que eu imagino.
Não é fóra das portas de casa que devemos procurar os elementos para
instituir a nossa ventura, e por isso... Mas a prima ha de estar
admirada de ouvir falar assim um homem que completou os seus vinte e
sete annos sem familia. Não é verdade?

Christina só pôde sorrir:

--Mas que quer? Quem muito idealisa arrisca-se a morrer apaixonado do
ideal e abraçado á peor das realidades. É a consequencia legitima e
triste do aspirar demasiado. Até hoje tenho encontrado na vida mulheres
formosas, amaveis, interessantes; porém nenhuma que satisfizesse ás
necessidades do meu coração, de quem me affirmasse a consciencia poder
esperar a realisação do meu sonho. Perdôe-me falar-lhe n'isto, priminha;
é uma ousadia que tomei, porque um instincto me disse que possue no
coração bastante bondade para m'a perdoar.

--Está a gracejar?--disse Christina, em quem redobrava a turbação, e
que, ao mesmo tempo que estava sendo feliz, desejava vêr interrompida a
sua felicidade: contradicções proprias dos timidos.

--A prima é muito moça--continuou Henrique, que não desesperava ainda de
animar esta Galatheia--e talvez por isso lhe causará estranheza este meu
modo de falar. Um dia virá, porém, em que o comprehenderá melhor. Se
então encontrar um desconfortado como eu, peço-lhe que tenha
misericordia d'elle e o salve do desalento, em attenção a quem a
conheceu n'uma época, em que só podia vêr em si, priminha, a aurora de
uma esperança que já não tinha de luzir para elle.

--Mas... salval-o!... como salval-o!...

--Como as mulheres salvam; amando.

--Bem digo eu que está a gracejar--balbuciou Christina, com voz trémula.

--Tem o defeito da innocencia--disse Henrique para si.--Não se lhe tira
uma resposta de geito.

N'isto chegaram defronte da porta, por onde Magdalena tinha saído da
quinta na noite passada.

--Agora deixo-os por aqui--disse o conselheiro--irei encontral-os á
igreja. Vou arrostar com a fera silvestre ao proprio covil.

--Meu pae, lembre-se do que lhe recommendei--disse Magdalena.

--Socega, filha; serei de cera. Até logo.

--Até logo.

E o conselheiro tomou a direcção da casa do herbanario.

--Era tempo!--disse Henrique comsigo.--A minha eloquencia arrefecia na
proximidade d'este gêlo.

A morgadinha havia quasi adivinhado tudo; estudando as physionomias de
Christina e de Henrique, conheceu que se não haviam entendido.

--Ainda não!--murmurou ella.--Pobre Christe! como se deve estar odiando
a si mesma! Como ha de esta creança vencer este obstinado? Mas não perco
ainda as esperanças.

Henrique, na presença d'estes sitios, recordou-se da scena da vespera e
tentou outra vez experimentar Magdalena.

--Esta porta é da quinta do Mosteiro, não é, prima?

--É--respondeu Magdalena, imperturbavel; e voltando-se para Angelo:--O
que te faz lembrar esta porta, Angelo?--perguntou ella.

--Que muitas vezes por aqui saímos, eu e vós ambas já de noite, e sem a
tia saber, para irmos ter com o tio Vicente, que voltava da caça das
borboletas.

--Fica perto a casa d'elle?--perguntou Henrique.

--É alli, logo ao dobrar d'aquella esquina--respondeu Angelo.

Henrique pensava:

--Seria para provocar uma explicação que ella fez a pergunta? Esta
mulher é admiravel! Não lhe sei resistir.

E já lhe não restavam vestigios da impressão causada por Christina.

--Este herbanario--continuou elle em voz alta--deve, pelos seus habitos
excentricos e até pelo solitario do sitio em que vive, ter aqui na terra
certa famazinha de feiticeiro.

--E tem,--affirmou Magdalena--mas de feiticeiro bem intencionado.

--Devem correr muitas fabulas a respeito d'elle, do seu viver.

--É certo que poucos se atrevem a passar aqui de noite, apesar de todo o
bem que elle faz de dia.

--Ah! Então temem-se de passar aqui de noite!... Pobre homem!... O que
lhe valerá é algum espirito forte que ainda por ahi haja, na aldeia. Que
diz, prima Magdalena? haverá?

Antes que a morgadinha respondesse, Angelo disse:

--Á excepção de Augusto, que ahi vem quasi todas as noites, ninguem mais
o visita.

--Ah!... O sr. Augusto vem ahi quasi todas as noites?!

Magdalena luctava para reprimir a impaciencia.

--Lá me parecia que havia de existir algum de coragem. Para tanto não
chegava o seu animo não, prima?

--Tanto chega, que já muita vez alli tenho ido só, e a altas
horas--respondeu Magdalena com a maior firmeza.

--Sim?! E não tem mêdo?

--De quê? De almas do outro mundo? não tenho crença para tanto. De
malfeitores? não os ha aqui. N'esta terra todos me respeitam, nem com
uma suspeita me offendem--disse a morgadinha, accentuando com expressão
as ultimas palavras.

Henrique acudiu immediatamente:

--Longe de mim duvidal-o.

E calaram-se por muito tempo.

Pela sua parte proseguia o conselheiro no caminho para casa do
herbanario. Cruzou-se com varios homens, mulheres e creanças de aspecto
doentio e soffredor, que voltavam de consultar o velho a respeito dos
seus males; eram mancos, ictericos, escrofulosos, creanças de aspecto
rachitico e enfezado, os mais melancolicos exemplares do infortunio
humano.

--São os peregrinos que veem de Meca--disse comsigo o conselheiro.--Pelo
que vejo a clientela do meu velho amigo herbanario mantem-se fiel, como
d'antes. Valha-nos Deus, que o meu severo censor não trata com muito
respeito o codigo.

Entrou emfim a porta do quintal.

Poucos passos andados encontrou-se com o Zé P'reira, que vinha virando e
revirando nas mãos um papel e monologando, segundo o costume:

--Ora! ora! ora!... Estragar o vinho de nosso Senhor com esta
mexerofada! Isso até era um peccado. N'essa não caio eu!

O conselheiro interrogou-o sobre as causas d'aquelle aranzel.

O homem, depois de cortejar, respondeu mostrando uma receita que lhe
dera o herbanario no virtuoso intento de lhe fazer aborrecer o vinho,
causa dos seus males. A receita era extrahida da _Polyantheia_, e tinha
por ingredientes uma cabeça e sangue de carneiro, cabellos de homem e
figado de enguia; mas o doente ia pouco disposto a experimentar-lhe a
efficacia.

Depois de se separar do Zé P'reira, o conselheiro seguiu por uma rua de
limoeiros, e como homem a quem era familiar a topographia do quintal.
Cêdo chegou á vista do herbanario, que dera audiencia _sub tegmine
fagi_.

Estava sentado á borda de um tanque, a que uma d'essas arvores dava
sombra.

O conselheiro saiu emfim de traz dos limoeiros e veio ter com elle.

Ao rumor dos passos, Vicente voltou a cabeça, e, depois de reconhecer
quem era, retomou a sua primeira posição e ficou silencioso.

--Bons dias, Vicente--disse o conselheiro com familiariedade e parando
defronte d'elle.

--Bons dias, Manoel--respondeu o herbanario, deixando-se ficar sentado.

--Saía agora d'aqui um homem, que julgo será rebelde a toda a tua
medicina. Padece de mal que se não cura.

--Os vicios são enfermidades mais rebeldes do que os achaques do corpo,
são.

--Já que tu não appareces no Mosteiro, como d'antes, para solemnisar
comnosco as festas do Natal, vim eu vêr-te.

--Obrigado.

--A tua misanthropia vae-se azedando, Vicente--continuou o conselheiro,
sentando-se á beira do tanque.--Cada vez te estás a sequestrar mais dos
homens, cada vez mais os aborreces.

--Eu não aborreço os homens, enganas-te. Não os aborrece quem passa a
vida a procurar os meios de alliviar os padecimentos dos seus
semelhantes. Estou velho, isso sim; e, como velho, encontro já no mundo
pouca gente com quem me entenda. As ideias do meu tempo passaram. Por
isso deixo-me ficar em casa a pensar n'elle.

--És um homem singular; um verdadeiro philosopho. Ora dize-me: e em que
cogitas tu, quando assim passas uma manhã inteira, sentado n'esse banco,
com os joelhos ao sol, os braços cruzados, e os olhos no chão?

--No passado. Pois não t'o disse já? O domingo reservo-o eu para me
recordar. Ahi está que ha pouco, quando aqui me vim sentar, ao ouvir os
repiques na igreja, lembrei-me de que era, dia de Natal, e o meu
pensamento voltou quarenta annos atraz a um dia igual ao de hoje.
Lembras-te d'elle, Manoel?

--Do dia de Natal de ha quarenta annos? Não.

--Lembro-me eu. Faz hoje mesmo quarenta e dois annos que, mais cêdo do
que estas horas, vieste ter commigo aqui a casa. Tinhas pouco mais ou
menos a idade que hoje tem teu filho Angelo. Meu pae saíra; julgámos nós
ambos boa a occasião de levar a cabo um projecto que havia muito tempo
traziamos na cabeça. Crescia a um canto do muro, além, á beira do poço,
uma pequena faia que alli não podia durar muito tempo; meu pae todos os
dias a ameaçava com a enxada e a custo a tinhamos defendido. Resolvemos
transplantal-a. Deitámos mãos á obra essa manhã, e, no fim de alguns
segundos, estava a faia mudada. Trouxemol-a para onde a deixassem em paz
os hortelões, e para junto da agua que ella já tinha procurado. Conheces
a arvore hoje?

--Não--disse o conselheiro, olhando em roda, como á procura de algum
pequeno arbusto.

--Olha que ha quarenta annos; a planta é hoje arvore. É esta a que me
encosto.

O conselheiro levantou então os olhos para os ramos vigorosos da arvore,
como se lhe parecesse impossivel ter sido removida para alli por suas
mãos.

--É singular como os annos correm, e as arvores crescem depressa--disse
elle, distrahidamente.

--Depois da nossa tarefa, sentámo-nos--proseguiu o herbanario.--Tu
ficaste, exactamente como estás agora, á beira d'este tanque. Então,
lembra-me bem; olhando para os ramos tenros d'este arbusto, que ainda
não sabiamos se viveria, tu disseste: «Fizemos uma obra que durará mais
do que nós.» E eu respondi: «Quem sabe? O machado vem, quando menos se
espera.»

--Como te lembras bem d'essas coisas!--disse o conselheiro, sorrindo
constrangidamente, porque não agourava bem do exordio que abrira a
entrevista.

--Ai, eu tenho boa memoria!

Houve um momento de silencio, que Vicente interrompeu subitamente,
dizendo:

--Mas a final o que te trouxe hoje aqui?

O conselheiro respondeu com resolução:

--Vêr-te, como disse, e ao mesmo tempo falar-te de um objecto grave.

--Sim? E commigo é que vens tratar os objectos graves?

--Por que não? sempre foste homem de bom conselho.

--Nem sempre, Manoel, ou nem sempre pensaste assim.

--Não poderás dizer que deixasse alguma vez de te respeitar. Os nossos
genios differem, os nossos diversos habitos da vida ensinaram-nos a
pensar diversamente a respeito de muitas coisas. D'ahi procedem
divergencias naturaes, que comtudo nos não obrigam a deixar de nos
estimarmos, julgo eu.

--Bem, então dizias tu que vinhas?...

--Trata-se de um negocio de muita importancia, Vicente.

--Dize.

--Responde-me primeiro: tens ainda animo para sacrificios?

--Pouco tenho que sacrificar.

--Tens, e é um sacrificio doloroso.

--Acaba.

--Trata-se de te desapossar d'esta casa e d'este quintal, para abrir por
aqui a estrada em projecto.

O herbanario, contra a expectativa do conselheiro, acolheu sem surpreza
estas palavras, e respondeu, com certa ironia:

--E para que me vens consultar? Posso eu oppôr-me a isso? Avisas-me para
eu me arredar a tempo da sombra d'estas arvores, mais velhas do que eu,
a fim de que não me esmaguem ao caírem decepadas? És generoso, Manoel,
em teres ainda em conta a vida de um homem inutil.

--Ahi estás já com as tuas recriminações. Acredita que eu...

--Não mintas, Manoel, não mintas. Ias dizer que não tinhas tomado parte
n'este projecto. Tem coragem e lealdade, homem, e dize tudo. Entre
mortificares o coração de um velho e pobre amigo e offenderes os
interesses de algum rico e poderoso influente, tomaste o primeiro
partido; e, como os differentes habitos de vida te ensinaram em muitas
coisas, como dizes, a pensar differente de mim, não déste a isso o nome
de ingratidão.

--Ouve.

--Sê franco, que eu te ouvirei.

--Pois bem, serei franco. Sim, confesso-t'o; era indispensavel que esta
estrada se fizesse. Bem o sabes. Estava n'isso empenhada a minha palavra
e a minha honra. Ha muito que os meus adversarios me fazem guerra por
causa d'ella. Trabalhei e consegui, apesar d'esta situação politica me
ser contraria. Tres traçados se offereciam. Um sacrificava uma grande
parte dos bens de meus filhos, de Angelo que não é muito rico, que está
no principio da existencia e que só Deus sabe se no decurso d'ella não
teria occasião de maldizer a imprevidencia de quem devera olhar por os
seus interesses. Querias que o sacrificasse? Sabes que os Brejos,
vendidos hoje, nada valiam; e que dentro em pouco tempo,
convenientemente trabalhados, podem ser de um valor importante. Querias
que o fizesse? ou não me desculpas por o não ter feito?

--Fizeste bem--respondeu o herbanario.

--O outro traçado cortava os bens do brazileiro Seabra. Conheces este
homem? Um elemento que, nas mãos de quem lhe saiba lisonjear e conduzir
a vaidade, pode ser de utilidade para esta terra; mas tambem uma cabeça
que, entregue a si, não faz coisa de geito. O homem oppunha-se
formalmente a esse traçado; se o não attendesse, declarava-se, por
despeito, no campo contrario ao meu. Se vencia (e algumas armas tem para
luctar), imagina a calamidade que seria para este circulo o confiar
áquellas mãos os seus destinos; vencido, era perder a esperança de tirar
dos bem fornecidos cofres, que o homem possue, alguma coisa mais util do
que um sino para a igreja ou vestimentas novas para as imagens dos
altares. Eu ando a catequisar o homem, para vêr se consigo d'elle uma
casa para escolas, melhor do que esse albergue que ahi temos, e um
estabecimento sericicola; se o desattendesse, lá iam as esperanças
d'estes melhoramentos tão uteis, e que o mais que nos poderão custar é
um diploma de visconde ou uma commenda. Sei que te não agradam estes
meios, porém olha que em politica são dos mais innocentes que podem
empregar-se. Já vês pois que o segundo traçado tinha desvantagens para o
circulo, por cujo interesse me empenho devéras; podes crel-o. Resta pois
o terceiro traçado que, lealmente o confesso, não era o melhor, nem
scientifica nem economicamente considerado; eu sabia de mais o que valia
para o teu coração o sacrificio que se te vinha exigir; eu mesmo possuo
memorias ligadas a estas arvores, e não ha homem que, aos cincoenta
annos, veja sem repugnancia desapparecerem os vestigios dos seus tempos
de infancia e de juventude; mas sabia tambem que tu eras uma alma
generosa e heroica, e que não duvidarias comprar, á custa das tuas dores
e saudades, um melhoramento para esta terra, que tanto amas. Esta
estrada, promettida ha tanto, e concedida ainda agora de má vontade,
corre risco de se não fazer, se, quanto antes, não principiarem os
trabalhos; a menor opposição dos proprietarios, o menor embargo
dilatorio, podem ser motivo para o seu adiamento, porventura indefinido.
Por isso tambem me animei, porque contava comtigo, Vicente. Enganei-me?

O herbanario estava cada vez mais pensativo.

--Pensaste bem. A velhice é assim; e eu queria dar mais importancia a
dois annos de vida que me restam, do que á vida nova que vae haver para
esta terra. Fizeste bem.

--Esperava ouvir isso mesmo de ti, Vicente. Além de que, dissipa as
apprehensões com que estás; em toda a parte terás arvores...

O herbanario interrompeu-o:

--Se não entendes o amor que eu tenho a estas, não faças por
consolar-me, Manoel, porque me affliges mais.

--Porém deixa-me dizer-te, Vicente, que no Mosteiro, ou em qualquer das
nossas propriedades, tens sempre um logar vago á tua espera, tanto á
mesa, como ao canto do fogão, e amigos que te receberão com prazer.

--Não receio ficar sem abrigo, Manoel. Em cada choupana de pobre teria
tecto e pão. Conto com a colheita de algum bem que semeei.

--Eu farei com que o contracto da expropriação seja o mais favoravel
possivel. Vejamos, em quanto avalias...

--Não falemos n'isso. A avaliar por o que eu lhe quero, ninguem m'o
pagaria; a não attender a isso, tudo será pagal-o bem.

--Mas...

--Não falemos n'isso, homem. Tenho medo de que estas arvores me ouçam
propôr o preço por que as vendo. Se alguma coisa posso pedir-te,
então...

--Tudo. Dize em que te posso servir.

--Peco-te que decidas a pretenção d'aquelle pobre rapaz, de Augusto; que
te lembres um dia de que aqui na aldeia ha um homem, que tem vinte
annos, um coração e uma cabeça como tu sabes, e que de ti e dos teus, da
gente que dá e vende graças, honras e empregos, só quer um favor... mais
uma justiça: lembra-te d'isso.

--Falas do despacho effectivo para professor? É uma coisa facilima; mais
que elle queira... E antes elle quizesse mais; esse rapaz perde por
modesto. Acredita, ás vezes é mais facil servir os ambiciosos. Nem eu
sei o que tem empatado esse negocio. É certo que ha um competidor, por
quem alguem trabalha; mas não importa; conta com isso, como negocio
concluido.

--Emquanto não vir...

--Hoje mesmo escrevo para Lisboa. É só isso que pedes? Vê lá.

--E que me deixes agora só.

--E não me ficas querendo mal, Vicente?

--Não. Estou a acreditar que tiveste razão, ou pelo menos que suppões
que a tens. Basta-me isso para te perdoar.

--Vêr-te-hei no Mosteiro antes de partir? Depois do dia de Reis volto a
Lisboa, e só tornarei para a campanha eleitoral.

--Não prometto.

--Adeus.

O conselheiro estendeu a mão ao herbanario, que não retirou a sua, e
partiu.

--Está feito!--ia pensando o conselheiro á saída--não foi tão difficil
como julgava. Está razoavel o homem. Quem o viu e quem o vê! O que faz a
idade! Bem! Agora é apressar os trabalhos para antes das eleições, a vêr
se acalmam algum fermentosito de opposicão, que por ahi possa haver, que
pequeno será.

N'estas cogitações chegou á igreja. Magdalena esperava-o no adro.

--Então?--perguntou ella, com anciedade.

--Tudo está remediado; entendemo-nos perfeitamente--respondeu o
conselheiro, com manifesta satisfação.

--Devéras! Eu logo vi que o pae havia de ceder!--exclamou Magdalena, com
alegria.

--Como ceder?--tornou o pae.--Elle é que foi mais condescendente do que
eu esperava. Não oppôz a menor resistencia, nem se queixou muito
amargamente.

--Pois consentiu?!

--Sem grande custo, ao que parecia.

--Ó meu Deus! meu Deus! agora é que eu temo devéras. Pobre tio Vicente!
assusta-me isso que diz, meu pae!

--Ora vamos; a tua imaginação é que te illude. Mas deixa-me aqui falar
com o morgado das Perdizes e com o brazileiro, que julgo que teem que me
dizer. Vae para a igreja, que eu vou já ter comvosco.

E separando-se da filha, o conselheiro dirigiu-se ao grupo, em que
estavam aquellas duas notabilidades.

--Dou-lhes uma boa nova, meus senhores--disse o conselheiro, depois de
cumprimental-os--dentro em pouco temos os alviões a trabalhar cá na
terra. Estive agora com o Vicente; receei resistencias da parte do
homem, que nos obrigassem a expropriações judiciaes, sempre demoradas.
Mas não, achei-o nas melhores disposições; e assim, dentro em poucos
dias...

--Mas, para deante da casa d'elle, talvez os outros proprietarios não
sejam tão doceis--lembrou o brazileiro.

--Bem sabe que são terras insignificantes, cujos possuidores com pouco
se contentam.

--Os antigos possuidores talvez se contentassem com pouco--disse o
brazileiro, sorrindo velhacamente--mas os modernos...

--Pois mudaram de senhorio?

--Por contracto de venda assignado e legalisado hontem mesmo.

--E quem os comprou?

--Este seu criado.

O conselheiro teve vontade de o esganar; conteve-se, porém, dizendo:

--Tanto melhor; quero-me antes com proprietarios illustrados e
independentes, que comprehendam a importancia dos melhoramentos
publicos, do que...

--Isso historias, meu caro amigo; em primeiro logar estão os
melhoramentos particulares. Eh, eh, eh.

--De certo que não ha de querer pôr estorvos a uma empreza como esta.

--Estorvos, não, mas emfim... Amigos, amigos, negocios á parte.

O conselheiro sorriu, emquanto que interiormente mandava ao diabo o
espirito mercantil e interesseiro do seu antigo condiscipulo.

--Pode-me dar duas palavras, sr. conselheiro?--requereu do lado o sr.
Joãozinho das Perdizes.

--Mil que pretenda--acudiu o conselheiro; e tomando o braço do morgado
afastou-se do grupo.

--Eu tenho a pedir-lhe um favor--principiou o morgado.-- Eu, como sabe,
interesso-me muito pelo mestre-escola do Chão do Pereiro, que quer vir
ensinar para aqui. Este negocio está empatado, como sabe; por isso
queria que o senhor escrevesse para Lisboa a este respeito.

--Pois sim, mas...--fez-lhe notar o conselheiro--não sabe que é Augusto
o outro concorrente?

--Então que tem isso?

--Não lhe parece que seria uma injustiça? Um rapaz de merecimento, como
elle é, aqui da terra, que já exerce o emprego ha tres annos e com tanta
intelligencia? e haviamos de...

--É verdade,--atalhou o outro--pois isso é verdade, mas... Emfim, elle
que passe para outra parte.

--Mas se o rapaz quer isto?

--Quer! quer!... tambem o outro quer. Ora essa é fresca. E vamos, sr.
conselheiro, a gente tambem não ha de estar só a fazer favores, sem os
receber quando os pede. Com este já são tres. Pedi-lhe para o meu tio
abbade ser conego; foi tanto conego como eu. Pedi umas caudelarias lá
para a freguezia... estou á espera d'ellas... Ora isto não se faz. O
senhor sabe que eu lhe tenho vencido as eleições com a gente da minha
freguezia, que vae para onde eu a levo. Pois agora não sei o que será. A
não se decidir este negocio depressa...

--Ora não será isso motivo para tanto.

--Com certeza que é--insistiu o sr. Joãozinho.--Então digo-lhe mais: a
mim já me falaram. Ha ahi alguem que não desgostaria dos votos de que eu
disponho, e votar pelos que já estão no poleiro não sei se lhe diga que
não é peor.

O conselheiro, mortificado como estava, disse, sorrindo:

--Não posso convencer-me de que o meu amigo seja capaz de fazer isso por
qualquer causa que possa dar-se. Mas deixe estar que, em relação ao que
me diz, eu verei.

--Mau! Não é «eu verei». Então falo-lhe claro. Se d'aqui até ás eleições
não estiver feito o despacho, não conte commigo.

--Mas quem lhe diz que não ha de estar?

--Pois lá isso...

--Socegue. Hoje mesmo escrevo para Lisboa.

--Bem.

O sino tocava a chamar para a festa.

Terminou o dialogo.

--O peor--ia pensando o conselheiro--o peor é que prometti ao Vicente
que apressaria o despacho de Augusto. Não tem dúvida; é tão magra a
posta, que não vale a pena disputal-a. Para Augusto arranjarei alguma
coisa melhor. É preciso ter ambição por elle. Se elle quizesse ir para
Lisboa?... Mas, pelo que me disse este basbaque, já se maquina no campo
contrario! Hei de sondar o Tapadas, a vêr o que sabe.

Estas conferencias com o brazileiro e com o morgado tinham mortificado o
pae de Magdalena a ponto de não conter um movimento de impaciencia,
assim que viu que o Pertunhas se approximava d'elle, e, á fôrça de
cortezias e cumprimentos, lhe pedia um momento de attenção.

Sabidas as contas, tratava-se do tal emprego de recebedor, que o
latinista com tanto ardor namorava.

O conselheiro descarregou sobre este pouco influente eleitor o mau humor
que os outros lhe causaram, e respondeu desabridamente:

--Ora adeus! O senhor é uma sanguesuga que se não farta de chupar.
Contente-se com o que tem; vá conjugando o _laudo, laudas_, que outros,
com mais merecimentos, nem isso conseguem; e deixe-me.

O mestre Pertunhas ouviu com humilde sorriso a admoestação, e curvou-se
para deixar passar o conselheiro.

Mas lá comsigo dizia:

--Sim? Elle é isso?! Pois veremos se a sanguesuga te não pica.

E entrou tambem para a igreja, com não muito christãs disposições de
espirito.

 


XVIII


Do dia de Natal ao dia de Reis passou o tempo para o conselheiro em
visitas ás freguezias e aos influentes d'aquelle circulo eleitoral,
visitas a que o acompanhava Henrique de Souzellas, que tomava parte, com
gôsto, n'estas excursões politicas.

Em casa do sr. Joãozinho das Perdizes, na freguezia de Pinchões,
passaram elles um dia. Nos solares do morgado tudo era desordem e
desmazelo; a cada passo se tropeçava n'um podengo ou se trilhava a cauda
a um perdigueiro. Henrique sustentou uma verdadeira lucta com o
proprietario, para esquivar-se a engulir todas as enormes dóses de carne
de porco e de vinho, com que elle, á viva fôrça, o queria regalar.

No quarto em que os hospedes pernoitaram estavam amontoados no meio do
chão uns poucos de alqueires de milho e de castanhas, e aos pés dos
leitos dormiram enroscados dois galgos, que elles não conseguiram
desalojar, e que toda a noite os incommodaram com latidos ao menor rumor
que escutavam fóra.

Henrique lamentou a influencia eleitoral do morgado das Perdizes, que o
obrigava a esta noitada.

Outro dia jantaram em casa do brazileiro, que lhes mostrou toda a sua
propriedade, tendo Henrique de obrigar a sua eloquencia a esgotar-se em
affectadas exclamações, deante dos prodigios de mau gôsto reunidos alli.

As estatuas de louça, os alegretes de azulejo, os arcos feitos de cana,
por onde se entrelaçavam magras trepadeiras; um pequeno modelo de
fragata brazileira com tripulação de altura dos cestos de gavia,
fluctuando n'um tanque circular; uma gruta estucada de azul e com
assentos de palhinha, para onde vinha ler as folhas o sr. Seabra, eram
as principaes maravilhas do jardim. Nas salas mobilia rica, mas vulgar;
lithographias coloridas em custosas molduras douradas; bordados,
diplomas de socio de não sei quantas sociedades brazileiras; tudo
encaixilhado, e no logar de honra a estampa das capellas do Bom Jesus de
Braga. Á impertinencia de admirar estas preciosidades accrescia a de
ouvir e de ter de achar graça a um papagaio que cantava o hymno
brazileiro.

Henrique saíu de lá exhausto de paciencia.

Com estas visitas politicas, passou, como dissemos, todo o periodo das
festas do Natal, sem que entre as personagens da nossa historia
occorresse coisa que mereça nota.

Entre Magdalena e Henrique mantinha-se a mesma lucta moral; nem um nem
outro recordavam declaradamente a scena nocturna, em que tão acerbas
palavras se haviam trocado. Augusto não voltára ao Mosteiro desde então.
Era tempo de férias para as creanças, o que fazia natural esta ausencia,
contra a qual Angelo em vão protestava. Magdalena nunca porém alludia a
ella. Christina passava o tempo, querendo-se mal por a sua timidez, e de
quando em quando amuando de ciumes com Magdalena, que ria d'elles e os
dissipava com uma palavra.

Chegou emfim o dia de Reis, aquelle em que devia realisar-se no pateo do
Mosteiro o auto que, havia muito, mestre Pertunhas andava ensaiando.

Henrique e D. Dorothéa vieram jantar ao Mosteiro, e ficaram para
assistir á solemnidade popular.

Já por vezes temos ouvido falar n'este auto, que promettia ser coisa
memoranda nos annaes dos festejos publicos da terra. Havia mezes que o
sr. Pertunhas esgotava os thesouros da sua sciencia dramatica a
ensaial-o, e vimos com antecipação andar Ermelinda decorando a parte da
Fama, que lhe competia desempenhar.

Estes autos e entremezes, que nas aldeias se representam, são como os
restos grosseiros que da nossa arte primitiva a varredura estrangeira
deixou ficar pelo chão.

Não obstante as extravagancias e as modelações toscas e risiveis de
muitos, é certo que nos mostram que a Euterpe rustica tem conservado
mais fiel a indole peninsular, do que sua irmã, a civilisada musa das
cidades, a cujo paladar já sabem mal as popularissimas redondilhas, tão
apreciadas ainda na Hespanha.

Em occasiões de festa levanta-se em qualquer terreiro ou pateo de quinta
um tablado; veem adornal-o as mais vistosas colchas de chita, das quaes
tambem se formam os bastidores; alugam-se nos depositos mais modestos da
cidade ou villa proxima vestidos de reis, de principes e de guerreiros,
em que se combinam os elementos de épocas e de nacionalidades
disparatadas, e perante uma plateia rustica, ao ar livre, como no
theatro antigo, desfiam-se em cantada choradeira as sentimentaes
peripecias da vida de qualquer santo, ou, entre gargalhadas, os
episodios comicos do algum enredo popular.

A circumstancia de ser o auto d'esta vez desempenhado no pateo do
Mosteiro, e que fôra em parte por deferencia ao deputado do circulo, em
parte por conveniencia dos emprezarios, pela apropriação do terreno a
todos os effeitos, e pela ajuda de custo, que sempre em taes casos
recebiam de s. ex.^a, essa circumstancia, dizemos, augmentava o numero
de espectadores.

Das janellas do Mosteiro gosava-se, como de um camarote de frente, do
espectaculo popular.

O terreiro era destinado para o povo, em grande parte attrahido tambem
pela pipa de vinho, que o conselheiro n'estes dias mandava pôr á
disposição dos seus representados.

Desde a vespera havia grande agitação e azafama no pateo do Mosteiro. Os
artifices levantavam o tablado scenico; pregavam e despregavam taboas;
serravam barrotes; os directores, e á frente d'elles o infatigavel e
imaginoso Pertunhas, davam ordens contradictorias; e os curiosos
estacionavam em magotes, difficultando tudo, censurando o que viam
fazer, e aventando alvitres absurdos.

Herodes, o pae de Ermelinda, andava em brazas. Approximava-se a hora dos
seus triumphos. O genio dramatico palpitava n'elle, cheio de, vida e de
enthusiasmo.

Ia mais uma vez pousar nos hombros o manto da realeza judaica; brandir a
espada infanticida, carregar aquelles sobrecenhos com que fazia chorar
as creanças e estremecer as mães; ia resuscitar Herodes, o déspota
legendario.

Trabalhando e suando, resmoneava os versos do seu papel de tyranno e
insensivelmente fazia gestos e esgares promettedores de effeitos
scenicos futuros.

Os seus collegas eram menos ardentes pela arte. O Herodes olhava-os com
a sobranceria de um Talma, e muitas vezes lamentava sinceramente a
ausencia de vocações dramaticas que auxiliassem a d'elle.

E não sorriam os leitores a esta velleidade artistica do recoveiro; alli
havia fundamentos para ella. O Cancella era o minerio de um tragico,
deixem-me assim dizer. No meio de uma escoria de rusticidade continha
abafado mineral de lei.

Tivessem sido outras as contingencias da sua vida, vêl-o-hiam porventura
arrebatar plateias inteiras com as revelações do genio, que ás vezes
n'um grito, n'um sorriso, n'um gesto se manifesta; mas ainda assim
inculto, não mentia n'elle o verdadeiro enthusiasmo, o sentimento da
arte que lhe afogueava as faces e os olhos, e lhe animava o gesto no
calor do desempenho; não mentia aquella embriaguez que lhe causavam os
applausos da multidão. Não ha verdadeiro genio artistico, que se não
namore do publico, embora o saiba caprichoso, inconstante e ingrato. O
homem, indifferente aos applausos das turbas, nunca será poeta nem
artista de verdadeira inspiração. O amor vivo da gloria adeantou a meio
caminho os emprehendedores d'esta nova conquista de vellocino.

Ermelinda, essa tremia com a commoção de artista novel, á lembrança do
espectaculo, em que pela primeira vez ia entrar.

As senhoras do Mosteiro, ou antes Magdalena e Christina, tinham querido
encarregar-se da _toilette_ da Fama.

Logo de manhã fôra pois a pequena Linda para o Mosteiro, e passava das
mãos de Magdalena para as de Christina e das d'esta para as d'aquella, e
sempre com recato preciso para que ninguem mais lhe puzesse os olhos,
pois que pretendiam reservar para a occasião a surpreza toda. Contra a
curiosidade de Angelo é que mais tiveram que luctar.

Logo depois da uma hora da tarde começou a povoar-se o pateo de
espectadores e, os actores a reunirem-se na parte do tablado, occulto
por as colchas de chita aos olhares da multidão.

Principiava a ensaiar os instrumentos o pessoal da philarmonica,
dirigida por mestre Pertunhas, cuja trompa celebre servia tambem de
batuta.

Chiava já o clarinete, assobiava o flautim, roncava o figle, uivava a
flauta, e todos promettiam aos ouvidos a mais inharmonica das torturas.

Mestre Pertunhas, distribuidas as partituras, e vendo todos a postos,
deu o signal de principiar.

Um, dois, tres; um, dois--dizia ou fazia elle com os olhos e com os
movimentos da cabeça e pés, porque a bôca, essa já estava applicada á
embocadura da trompa. O segundo «tres» era o tempo fatal. Os musicos,
porém, ou por distrahidos, ou por a commoção propria dos actos solemnes,
não corresponderam ao signal, e a nota furiosa, extrahida da trompa do
mestre Pertunhas, achou-se só no espaço, e fugiu envergonhada a
esconder-se na concavidade dos montes vizinhos, deixando na passagem os
ouvidos quasi em sangue.

Este successo foi saudado com uma gargalhada geral, que redobrou quando
as notas dos outros instrumentos, vendo partir desacompanhada a nota
chefe e reconhecendo a falta, saíram alvoroçadas atraz d'ella, cada uma
por sua vez. Foi uma debandada musical de indescriptivel effeito.

O auditorio, o sempre implacavel auditorio popular, apupava. Henrique e
o conselheiro riam, os actores do auto espreitavam detraz da cortina a
vêr o que era aquillo. Mestre Pertunhas barafustava por entre os da
banda, berrando, ralhando, cheio de cólera e de razão.

Uma symphonia com quatro mezes de ensaios! A falar a verdade!

Ordenadas as coisas, rompeu emfim a symphonia.

Os typos dos artistas, marcialmente uniformisados com fardas que fôram
de um corpo de infanteria, eram para tentar o lapis de um Cham ou
Gavarni. Alli um gordo e rubicundo merceeiro, que ameaçava estalar todas
as costuras da farda, primitivamente feita para um individuo de metade
das dimensões d'elle, com as faces insufladas, a testa contrahida e os
olhos injectados para extrahir de um obsoleto serpentão, que embocava
com arreganho assustador, as mais destemperadas notas; acolá um flautim,
de braços compridos e tibias esquinadas, com meio braço fóra das mangas,
com meia perna de fóra das calças, figura em que havia não sei o que de
onomatopaico, tão bem se casava com os silvos, horripilantemente agudos,
que arrancava do exiguo instrumento. O artista pratilheiro era um velho
recurvado, de nariz adunco, faces escavadas, olhos de coruja, suissas em
tufos no meio das faces, e oculos na ponta do nariz. Um zarolha evacuava
os pulmões dentro de um figle; um corcovado e semi-anão repicava os
ferrinhos com uma prodigalidade assustadora; as baquetas da caixa
estavam confiadas ás mãos callosas de um moço de lavoura, de rêpas
hirsutas a cobrir-lhe a testa, olhos esbogalhados e labio pendente. E,
no meio d'estas e analogas figuras, a alma de tudo, o sr. Pertunhas,
torcendo-se, batendo com o pé, suando, arregalando os olhos,
piscando-os, marcando o compasso com a cabeça armada de enorme trompa,
que lhe dava então não sei que apparencias de proboscidiano.

Tal era a philarmonica da terra, que Henrique, o conselheiro e toda a
familia do Mosteiro escutavam das janellas, e á qual tiveram de
dispensar elogios, que o regente acceitou com a modestia de artista que
se conhece. Henrique foi quem mais sublimes esforços fez para soffrer
com paciencia aquellas torturas acusticas. Elle que nem á orchestra de
S. Carlos perdoava uma desafinacão, obrigado a escutar com um sorriso
aquella banda pandemonica!

--Coragem! coragem!--murmurava-lhe o conselheiro, impassivel como
perfeito politico.--Nas occasiões é que os homens se conhecem! Coragem.

--É em extremo forte a provação!--respondia-lhe, gemendo, Henrique.

--Firmeza; que a pallidez do susto nos não atraiçoe--continuava aquelle.

Isto obrigava Henrique a nova lucta; d'esta vez para manter a seriedade.

A final calou-se a banda, sem que se pudesse dizer o que tinha querido
tocar. Succedeu-lhe um intervallo de silencio. Passou pela assembleia o
estremecimento que precede as occasiões solemnes. Os olhares de tantos
espectadores fixavam-se na coberta de chita que já se via ondular.
Ouviu-se um surdo rumor, significativo de anciedade, como se fôra a
resultante do palpitar de tantos corações.

Appareceu emfim a primeira personagem do auto. Era o Herodes.

A alta e membruda figura do pae de Ermelinda, com os seus hombros
largos, as faces injectadas, o olhar faiscante, os cabellos e barbas
negros e espessos, o andar grave e pesado, sob o qual gemiam as
juncturas do tablado, o timbre volumoso de voz e certo arreganho
selvatico, com que falava e gesticulava, imprimia na multidão um quasi
pavor, que nem o conhecimento intimo que tinha do homem conseguia
dissipar.

Herodes trazia manto real e turbante musulmano, borzeguins vermelhos,
corpete de velludilho azul, calções golpeados. Pendia-lhe á cinta um
alfange e uma pistola; ao peito algumas condecorações.

Apparencia geral, a dos prophetas nas procissões.

O auto rompe com um monologo de Herodes.

O tyranno da Judéa, sobresaltado e meditabundo, faz considerações
substanciosas sobre a condição dos reis em geral e a sua em particular.
Principia elle assim:


  Não ha vida mais inquieta,
  Nem mais cheia de cuidados,
  Do que a de um rei que pretende
  Conservar os seus estados.


O Cancella dizia isto em tom pausado, com os braços cruzados, medindo o
palco a passos largos.

Continuavam varias proposições de physiologia do throno, e, do caso
generico baixando ao particular, da these á hypothese, principia a falar
de si. Cancella, conhecedor dos segredos da arte, começava aqui a dar
mais vida á recitação, como para mostrar o maior empenho que tomava a
alma n'este capitulo da especialidade. Referia-se aos annuncios da vinda
do Messias, e inquietava-se; a maré das paixões subia; a voz
traduzia-lhe o crescimento. Depois seguia-se um como reflexo de
desalento, para com mais violencia se exaltarem os affectos. Nos
paroxismos da furia, o Cancella, dando toda a fôrça á sua voz potente,
soltava berros, que participavam da natureza dos do tigre.


  Começarei desde logo
  A publicar leis tyrannas,
  Que aterrem os meus montes,
  Os palacios e as choupanas.

  Será tal o meu furor,
  Tal a minha indignação,
  Que ninguem se atreverá
  A conquistar meu brazão.


O interesse do espectaculo augmentava. Os olhos do publico principiavam
a fixar-se. A excitação de animos a que os transportes de Herodes,
inquieto pelo seu brazão, levára o publico, foi serenada por um chorado
côro de anjos que cantavam atraz da cortina:


  Não temas, ó rei cruel,
  Que te conquiste o docel.


Herodes pára aterrado, ao escutar estas vozes, apesar de lhe afiançarem
a segurança do docel, pela qual elle parecia receioso. Vacilla,
entra-lhe o mêdo no coração, mêdo que procura afugentar com bravatas, em
que ameaçava pôr tudo por terra. O Cancella exprimia tudo isto com
abundancia de gestos e de movimentos.

Aqui é que subia a toda a altura o genio dramatico do Herodes. Para este
final do monologo reservava todos os segredos da arte; apoderava-se
d'elle a musa do palco; desappareciam-lhe deante dos olhos os
espectadores, via o mundo; perdia a consciencia da individualidade
propria; suppunha-se Herodes; e até... ó fôrça da arte!
offuscavam-se-lhe os bons instinctos da indole generosa e quasi chegava
a ter verdadeira ancia de sangue e carnificina. O publico era dominado
por o artista, e n'um d'estes silencios que todos prevêem se
desencadeiará em brados de enthusiasmo e phrenesi, escutava-lhe as duas
quadras finaes:


  Porém o furor me incita!


Dava, ao dizer isto, tres passos á frente, desembainhava o alfange e
abria os braços. Tinha o que quer que era de Adamastor, visto assim.


  O brio dá-me ousadia.


Levantava os braços acima da cabeça, espalmando a mão esquerda.


  Para defender o sceptro
  A favor da tyrannia!


Aqui agitava os braços como azas de moinhos.


  Será cada lança um raio!


E, dizendo isto, tinha nos olhos o fulgurar do relampago.


  Cada espada um corisco,


E o braço, armado do alfange, baixava com a rapidez do simile.


  Cada soldado um trovão,


E trovejava-lhe a voz.


  Cada golpe um basilisco!


E na posição e gesto em que ficava, não era menos terrivel e pavoroso do
que a fera da comparação.

Uma tempestade de applausos rompeu de todos os lados; só as mulheres e
as creanças ficaram silenciosas e immoveis, porque lhes parecia um
peccado applaudirem Herodes. E não sei se, o que fizera menos
escrupulosa n'este ponto a parte masculina, fôra o exemplo partido das
janellas do Mosteiro; porque é certo que em geral os tyrannos no palco
são admirados, mas raras vezes applaudidos.

Herodes, depois de agradecer os applausos publicos, senta-se e segue o
auto.

Dariamos de bom grado na integra tão importante peça dramatica ou pelo
menos circumstanciada noticia d'ella, se não receiassemos o recheio
excessivo para esta ordem de alimentos litterarios, que se querem leves.
Não podemos comtudo resignar-nos a passal-a por alto inteiramente.

Além do Herodes, são figuras do auto: o caixeiro do dito--assim se lhe
chama pelo menos no folheto, o que dá a entender que Herodes era homem
de escripturacão regular,--o capitão das tropas reaes, os tres reis
magos, o anjo, a Virgem, S. José e o menino Jesus, a criada de Santa
Isabel, dois cidadãos de differentes cidades, o criado de um d'elles, a
Fama e duas creanças, chamadas Giraldinho e Amorzinho.

As scenas passam-se successivamente nos paços de Herodes, na lapa de
Belem, e em diversas paragens da estrada do Egypto.

A imaginação do espectador era a encarregada da mudança do scenario.

O poeta corre toda a clave das paixões humanas, vibra todas as cordas do
coração.

Ao terror despertado por Herodes e suas ameaças, succede a sympathia
pelos tres reis, personificados d'aquella vez por tres moços de lavoura,
de manto, luvas de algodão e turbante, os quaes, em lamuria nasal e com
profusão de _xes_, cantarolavam as quadras do seu papel, em uma das
quaes, patrioticamente anachronica, pediam aquelles bons magos ao Deus
nascido a protecção para Portugal.

Excitava a piedade a familia sagrada. O velho S. José, como carpinteiro
que era, apparelhava um madeiro a enxó e plaina, emquanto a Virgem
dormia. A Virgem era um rosado barbatolas, em quem principiava a
despontar o buço da puberdade. O anjo apparecia, como nas procissões,
carregado de cordões de ouro.

No transe da fugida para o Egypto ha uma scena da mais que homerica
simplicidade. Quando os sagrados esposos estão para partir, chega a
elles a criada de Santa Isabel, prima da Senhora, outro mocetão em
trajes femininos, e da parte da ama offerece aos foragidos algum
dinheiro e refrescos; pedindo desculpa por não poder dar quanto queria,
o que tudo a Senhora agradece com as phrases da tarifa, recommendando-se
muito a sua prima.

O comico caminha ao lado do pathetico, como no drama moderno. Ha
personagens, reflexões e scenas sempre apreciadas e já aguardadas pelo
publico, que as saúda com sinceras gargalhadas. D'estas a principal é
evidentemente a que se passa entre um cidadão, de quem a sacra familia
recebe gasalhado, e o criado do mesmo.

É uma scena de disputa domestica, cheia de allusões satyricas á classe
dos criados de servir, a qual era sempre applaudida. O cidadão, depois
de mostrar ao criado, de relogio em punho--anachronismo shakspeareano--a
demora excessiva que elle tivera fóra de casa, diz para o auditorio:


  Não se pode ter criados
  Hoje em dia, n'esta vida,
  Ou quem houver de os ter
  Não lhes deve dar guarida.


N'este ponto do auto houve aquella tarde um pequeno, mas gracioso
episodio.

D. Victoria, que achava esta a parte melhor pensada e mais conceituosa
de toda a peça, de afinada que estava pelo seu modo de sentir, não pôde
conter-se, que não exclamasse:

--Aquillo é que é uma verdade!

A espontaneidade da reflexão fez rir a familia do Mosteiro, riso que
teve ecco em baixo, entre o povo, que enchia o pateo.

A scena comica prolonga-se, mandando o patrão distribuir pelo caixeiro o
rapé ao auditorio; outra liberdade que produzia sempre o maior effeito.

O criado trazia uma enorme tabaqueira, um verdadeiro bahu, e offerecia
pitadas ao publico, dizendo:


  O meu amo, com ser rico,
  Gosta d'estas patuscadas.
  Nunca os senhores tiveram
  As pitadas tão baratas.


Os risos e as galhofas desordenaram, segundo o costume, por muito tempo
a regularidade do espectaculo. Todos tiravam pitadas, todos falavam,
riam e guinchavam, todos fingiam espirrar e não se ouvia senão: «Dominus
tecum» e «Deus te salve» no meio de toda aquella confusão. Porém a um
signal de mestre Pertunhas, que deixou por um pouco folgar o espirito
das massas, tudo entrou na ordem.

Preparava-se nova transição dramatica. O criado, que vae a saír, volta,
dizendo com gesto espantado e tom exclamatorio:


  Jesus, Jesus, que é isto?
  Jesus do meu coração!
  O signal da cruz me livre
  De tão terrivel visão.


Era a Fama que apparecia.

Ermelinda entrava em scena.

No meio d'aquellas figuras rusticas, e mais ou menos grosseiras, que
entravam no auto, a figura delicada e angelica de Ermelinda produzia tão
completo contraste, que um murmurio significativo de profunda sensação
correu o auditorio.

Ermelinda estava surprehendente de formosura. Haviam-se associado ao que
era n'ella dotes naturaes os cuidados de Magdalena e de Christina, para
lhe darem a apparencia superior.

O proprio Henrique, que até alli estivera commentando maliciosamente o
espectaculo, não pôde reter uma exclamação de surpreza, que foi
secundada por o conselheiro. É que parecia que um verdadeiro anjo
occupava agora a scena.

A simplicidade do vestir concorria para esse effeito.

Ermelinda trazia uma longa tunica alvissima e de amplas mangas, que lhe
descia solta dos hombros sem sacrificar a menor belleza dos graciosos
contornos e esbeltas proporções d'aquella creança, que promettia ser uma
mulher esculptural. Os cabellos, cuja côr loura era de uma pureza rara,
caíam-lhe desatados e profusos sobre os hombros, brilhando como fios de
ouro, na alvura dos vestidos; a fronte ficava-lhe livre, e o oval das
faces sobresaía n'aquella moldura natural. Com os braços descaídos, os
dedos encruzados, e a cabeça ligeiramente pendida, em expressão de
melancolia, e os olhos elevando-se para procurarem os de Magdalena e de
Christina nas janellas do Mosteiro, mas que de longe parecia procurarem
o céo, Ermelinda adeantava-se vagarosa, serena, tendo no gesto o encanto
da innocencia, tendo nos passos a hesitação da timidez. Havia tanto de
sobrenatural no vulto candido, franzino e melancolicamente suave
d'aquella creança, que o actor que estava em scena não teve de simular
espanto, porque o sentia real, e não podia desviar os olhos d'aquella
apparição.

O silencio era profundo; parecia que em todos estava actuando a fôrça de
um encantamento.

Como na antiga tragedia, o facto principal da acção, a carnificina dos
innocentes, passava-se fóra de scena. Á Fama competia narral-o.

Ermelinda, a meio do palco, parou. Com uma voz argentina e leve tremor
de commoção, principiou lentamente e no meio de um religioso silencio a
recitar os versos da narração, os quaes, como o leitor já sabe, não eram
os do auto, que mestre Pertunhas se estafára a ensaiar.

Os versos que Ermelinda recitou diziam assim:


  Desci dos celestes córos,
  Por Deus mandada a escutar
  Da infancia as queixas e os choros,
  Para lh'os ir confiar.

  Desci. Na terra, nos mares
  Tanta miseria encontrei.
  Que os meus magoados olhares
  Da terra e mar desviei.

  Desci. E tantos gemidos,
  Tão dolorosos ouvi!
  Que, turbados os sentidos,
  Quiz recuar... mas desci.

  N'esta colheita de dôres
  Pelo mundo todo andei,
  No pranto dos peccadores
  As minhas vestes molhei.

  Vagueando dias e dias,
  Chegára á Judéa emfim,
  Quando um clamor de agonias
  Veio de longe até mim.

  O sol, o sol inflammado
  D'estas terras orientaes,
  Tinha no disco afogueado
  Não sei que estranhos signaes.

  Soavam menos distantes
  Sinistros brados de dôr,
  Choros de mães e de infantes,
  Cantos de morte e terror.

  Vi anjos de azas nevadas
  Em bandos subir ao céo,
  Quaes pombas amedrontadas
  Fugindo á voz de escarcéo.

  «Onde ídes? Quem vos persegue?
  A que tormentas fugis?»
  Um, que triste o bando segue,
  Estas palavras me diz:

  «Somos as almas de infantes
  Mortos em guerra feroz;
  Inda das mães delirantes
  Nos chama a sentida voz.

  «Só a materna saudade
  Nossa carreira detem,
  Embora no céo, quem ha de
  Esquecer, o amor de mãe?»

  Disse e o semblante formoso
  Com as azas encobriu,
  E ao bando silencioso
  Silencioso se uniu.

  Eu segui. Na impia cidade
  Aterrada penetrei...
  Ai, da fera humanidade
  Os meus olhos desviei!

  Que scena! Corre nas praças
  Sanguinaria multidão,
  Como nuvem de desgraças
  Semeando a desolação.

  Cáem por terra sem vida
  Tenras creanças ás mil,
  E uma turba enfurecida
  Corre á matança febril,

  As mães pallidas, chorosas,
  Supplicam, pedem em vão!
  N'essas feras sanguinosas
  Não palpita um coração.

  Outras tentam em delirio,
  Os seus filhos disputar,
  E com elles no martyrio
  Gostosas se vão juntar.

  Sobre a terra ensanguentada
  Eu soluçando, ajoelhei,
  E de intensa dôr magoada,
  A Deus piedade implorei.

  Findava a prece, e uma estrella
  No horisonte despontou,
  Pura, scintillante, bella
  O caminho me traçou.

  Á humilde e escondida estancia
  Da venturosa Belem
  Cheguei; vi um Deus na infancia
  Nos ternos braços da mãe.

  Minha colheita de dôres
  N'aquelle berço depuz,
  Da humanidade aos rigores
  Pedi remedio a Jesus.

  No olhar do divino infante
  Raiou a luz e fulgor,
  Foi a aurora radiante
  Que annuncia um redemptor.


Não se descreve a impressão causada por estes versos, que assim
transformavam a Fama do auto no Anjo da guarda da infancia. Muitas
causas concorriam para produzir este effeito: a figura, a voz e o gesto
de Ermelinda, que lhe davam uma apparencia verdadeiramente angelica, e
depois aquellas palavras inesperadas, aquella exposição desconhecida e
em versos a que a melancolia da toada, em que eram recitados, parecia
augmentar a cadencia metrica. Emquanto debaixo da impressão d'aquella
voz sonora e infantil, ninguem procurava explicar o mysterio. Milagre
lhes parecia e quasi como milagre o acceitavam, e de ouvidos attentos,
collos estendidos e bôcas semi-abertas parecia recolherem, uma a uma,
aquellas palavras, como se de um verdadeiro emissario celeste as
escutassem. O tablado enchera-se pouco a pouco de gente, e ninguem dera
por isso. Os actores que estavam atraz da cortina tinham sido feridos
pelos primeiros versos, differentes dos que elles esperavam; isto
obrigou-os a espreitar. Depois, como arrastados pela magia d'aquella voz
e d'aquelle gesto, vieram adeantando-se, adeantando-se, e cêdo formaram
circulo á volta de Ermelinda. O primeiro da frente era o Herodes. O
espanto, os affectos, o orgulho de pae, a exaltação de artista
combinavam-se para dar-lhe ao rosto uma expressão quasi de extase.
Olhava para a filha como se a visse animada de inspiração divina.

Pertunhas, o ensaiador do auto, que franzira o sobr'olho, prevendo
trapalhada aos primeiros versos recitados por Ermelinda, agora, de bôca
aberta, era de todos o mais espantado. No Mosteiro só Angelo sorria,
elle só interpretava o milagre. Todos os mais escutavam silenciosamente
aquella voz de creança, que, em campo descoberto e no meio de tantos
espectadores, soava distincta e vibrante como se effectivamente tivesse
alguma coisa de sobrehumana.

Depois que ella terminou, persistiu por algum tempo o silencio, sem que
os espectadores pudessem voltar logo a si, nem os actores se lembrassem
de continuar o auto. Henrique foi quem primeiro rompeu este quasi
encantamento. Profundamente impressionado tambem por aquella scena,
exprimiu n'um «bravo» todo o enthusiasmo que sentia. Foi o signal.

O silencio degenerou na mais altisona ovação.

O Herodes esqueceu o papel que desempenhava, o caracter que tinha a
sustentar, a logica da situação, e tomando nos braços musculosos o corpo
debil e franzino da filha, levou-a em triumpho para a beira do palco; os
outros actores disputavam-lh'a; do pateo estendiam-se centenas de braços
para a receberem; das janellas do Mosteiro acenavam-lhe, victoriando-a,
os lenços das senhoras; os homens applaudiam-a com palmas. Herodes
parecia devorar a filha com beijos, afagal-a com lagrimas de enthusiasmo
e de paixão; e Ermelinda foi de braços em braços, entre beijos e afagos,
transportada do tablado para a sala do Mosteiro, onde não foi menos
calorosa a recepção.

Do auto ninguem mais se lembrou, e, apesar dos esforços do mestre
Pertunhas, todos o deram por terminado alli e prescindiram de vêr as
restantes scenas, com grande desgosto dos actores que entravam n'ellas.

O Herodes, ainda vestido de rei, andava como doido pelas salas do
Mosteiro. Seria para rir aquelle enthusiasmo, se não fôsse bastante
pathetico para commover.

--Mas como foi isto, meu Deus? Como foi isto? Que milagre foi este? Ai
que versos, Maria Santissima! Que versos! E como ella os
dizia!--exclamava elle, quasi convencido da milagrosa natureza da scena
que vira.

Magdalena, chamando Angelo de lado, perguntou-lhe:

--Foi Augusto que fez aquelles versos?

Angelo sorriu.

--Por que me perguntas isso a mim?

--Porque o deves saber.

--Então não crês no milagre?

--Responde.

Angelo ia a responder, quando Henrique disse em voz alta para o
conselheiro:

--Se eu digo a v. ex.^a que o Bernardim existe.

--Mas quem é?--perguntou o conselheiro.

--Não sei; porém posso afiançar a v. ex.^a que não são estes os
primeiros vestigios que encontro d'elle. As paredes das capellas dos
montes são as suas confidentes. Não está certa, prima Magdalena, de umas
quadras sentimentaes, que lemos na ermida da Senhora da Saude?

--Sim; recordo-me.

--Não acha entre essas e as do auto analogia de estylo, que a levem a
attribuil-as á mesma pessoa?

--Estou pouco habituada a analysar estylos, primo.

--Mas talvez este lhe seja habitual.

Magdalena fitou Henrique com um olhar de altivez, que o obrigou a
accrescentar:

--Por muito o vêr por ahi desperdiçado por paredes de capellas e ruinas,
e nos troncos das arvores.

Ermelinda foi de uma discreção impenetravel. Quando lhe perguntavam quem
lhe ensinára os versos, sorria, respondendo que não sabia, ou que não
podia dizel-o.

--Apostemos que n'isto entra Angelo?--disse o conselheiro.

O Herodes cada vez parecia mais convencido de que fôra pura inspiração.

Henrique, aproveitando uma occasião em que estava proximo da morgadinha,
disse-lhe ao ouvido:

--Parece-me que ia pôr o dedo no rouxinol silvestre, que tão bem canta
sem se mostrar.

--Sim?

--Não ha muitas noites que eu o vi vaguear n'estas immediações. Estas
aves melancolicas amam as inspirações nocturnas.

--Pois as noites nem sempre são boas conselheiras, primo. É a hora
favoravel á espionagem e ás... calumnias... Mas se sabe quem é, diga-o.
Aqui em minha casa e no seio de minha familia, é sempre bem recebida a
verdade. Não ha quem se tema d'ella.

E a morgadinha, dizendo isto, deixou-o desdenhosamente.

--D'esta vez foi de uma severidade!!--pensou Henrique.--Cada vez me
convenço mais de que o idyllio existe e que vae já muito adeantado. Mas
agora me lembro; e o meu duello com o Romeu, que nunca mais vi? Não foi
má tolice aquella minha! Preciso de procurar o homem para lhe dizer que
o caso não vale a pena.

O despeito de Magdalena pelas palavras de Henrique fôra d'esta vez mais
intenso; quasi chegou a fazel-a desesperar da tenção que alimentava
ainda, pois disse a Christina:

--Ai, filha, que não sei se deva curar-te antes a ti do que a elle.

--Que dizes?!

--Nada. Ha doenças que fazem desesperar os medicos.

Era já noite. Os grupos, que ainda depois do auto se conservaram no
pateo do Mosteiro, a brindarem a hospitalidade dos proprietarios, fôram
dispersando pouco a pouco.

A banda de mestre Pertunhas saiu tambem com o fim de se preparar para as
serenatas a casa do brazileiro e de varias personagens da terra, a quem
era devido o cantar os Reis.

Angelo saíra da sala. Fôra para o fim da rua de sobreiros, anterior ao
pateo da quinta, esperar por Ermelinda para lhe dizer adeus.

Á medida que a noite se cerrava, parecia que se estendiam as sombras á
fronte e ao coração do pobre rapaz.

Era a noite de Reis, a ultima dos dias de férias; na manhã seguinte
devia partir com o pae para Lisboa.

Que amarguras as d'estas ultimas horas! que intensas saudades não se
amontoam no coração das creanças ao expirar o termo d'esse feliz espaço
de tempo, que viveram para os carinhos da familia e para os folguedos
despreoccupados!

Percebe-se em nós mesmos aquella imminencia de lagrimas, que á menor
palavra rebentam.

Quem não terá recordações de infancia a falar-lhe d'isto?

O pateo despovoára-se de gente; através das vidraças da casa viam-se já
brilhar as luzes interiores. Com o olhar fito no chão, a cabeça
inclinada, Angelo permanecia immovel. Cortejavam-o, ao passar, homens e
mulheres, sem que elle désse por isso.

De repente voltou-se, porque ouviu atraz de si uns passos conhecidos.
Era Ermelinda, que voltava para casa. O pae ficára atraz a pôr em ordem
as roupas e mais objectos que serviram no auto.

--Esperava por ti, Ermelinda, para te dizer adeus--disse Angelo.

--Então vae-se embora?

--Vou ámanhã--respondeu Angelo, com a voz presa de commoção.

--Muito cêdo?

--De madrugada.

Os dois calaram-se por algum tempo, olhando para o lado.

--E agora quando volta?

--Eu sei lá? agora... só para agosto.

Novo silencio.

--Então... adeus...

--Adeus, Ermelinda.

E com a voz quasi sumida e os olhos ennevoados de lagrimas, Angelo
estreitou contra o peito aquella que de pequena tratára como irmã, e que
chorava ainda mais do que elle.

Que melancolico fim de dia tão alegre!

A este tempo uma sombra escura passou por elles e estacou.

--Ermelinda--disse logo a voz esganiçada e colerica, que saiu d'aquelle
vulto.

Ermelinda estremeceu ao ouvil-a.

Era a mulher do Zé P'reira que voltava das suas devoções e ficára
surprehendida com o espectaculo que vira. A assustadiça castidade
d'aquella matrona toda se alvoroçou com a tocante despedida das duas
creanças.

Ermelinda approximou-se, a tremer, da madrinha, que rudemente a agarrou
pelo braço e a levou comsigo.

Angelo esteve quasi resolvido a ir tirar das mãos d'aquella harpia a
innocente victima; mas a chegada de Herodes estorvou-o.

A sr.^a Catharina do Nascimento de S. João Baptista ia dizendo, ao levar
comsigo a afilhada:

--Que terão ainda de vêr meus olhos, meu Divino Pae do Céo? Que mundo
este de abominação, meu doce Jesus! Ó Virgem das Dores, isto é para se
vêr e não se crer! Uma creanca, uma creanca de dois dias, se pode dizer,
e já assim com a alma perdida! Ó meu Jesus crucificado!...

--Minha madrinha--dizia Ermelinda, chorando.

--Anda, anda, anda, minha amiga, que já os demonios saltam e riem de
contentes. Teu pae é que tem a culpa. Isto são lá modos? trazer-te por
entremezes, que são artes do demonio, e arredar-te da igreja, que é a
casa do Senhor! É a missa dos domingos, e acabou-se. Os resultados são
estes!... Ai, filha, que muita penitencia te é já precisa para salvares
a alma!

--Minha madrinha, minha madrinha, por as almas não me diga
isso--exclamava Ermelinda, aterrada.

--Os tres inimigos da alma te farão guerra, creatura, assanhados como
cães raivosos... Eu previa isto... É o lucro de andar por essas casas de
Satanaz, onde não ha religião nem temor de Deus... Ó meu divino Jesus, e
para isto tanto padeceste por nós! E nós tão pouco caso fazemos dos
vossos preceitos, meu doce Jesus, filho de Maria Virgem... Depois
queixamo-nos da vossa justiça, quando já ardemos nos fogos do
inferno...!

A pequena Ermelinda tremia cada vez mais.

A velha proseguiu, em todo o caminho, n'estas exclamações, bramando
contra o peccado, contra a familia do Mosteiro, que acoimava de herejes,
contra o pae de Ermelinda e contra esta, e, no seu fervor religioso,
desenvolvia sobre o thema do peccado dissertações não em demasia
apropriadas aos ouvidos de uma creança.

O resultado foi apoderar-se da pequena Linda um excessivo terror. Das
palavras da madrinha, que nem bem entendia, ficára-lhe uma horrivel
convicção de que tinha a alma perdida, e com lagrimas ardentes pagava a
pobre creança bem caro as alegrias d'aquella tarde, de que já tinha
remorsos. Este desalento e pavor quasi a fizeram doente.

Quando o pae voltou, estranhou-a. Elle, que vinha orgulhoso com os
triumphos proprios e com os da filha, sobresaltou-se ao abraçal-a,
Interrogou-a; pediu, ordenou; nada pôde saber que explicasse os
vestigios de lagrimas que descobria n'ella; se instava, provocava-lhe o
pranto; desistiu pois.

Pobre pae! não pôde dormir aquella noite! Logo de madrugada teve de
levantar-se, porque tinha de partir para o Porto em recovagem.

Deixou Ermelinda a dormir; não a quiz acordar; beijou-a na fronte
desmaiada, abençoou-a e saiu.

--Comadre,--disse ao passar por casa do Zé P'reira--ahi lhe deixo a
pequena. Olhe-me por ella, que não está lá muito boa.

--Vá com Deus--disse uma voz de dentro.

Era a sr.^a Catharina.

O recoveiro partiu, silencioso e triste.

 


XIX


No dia seguinte ao dos Reis partiram para Lisboa, como estava
determinado, o conselheiro e Angelo, o que deu logar no Mosteiro a
muitas saudades. O conselheiro devia voltar sómente por occasião das
eleições geraes que estavam proximas.

Alguns dias depois, n'um domingo em que se festejava na aldeia o
padroeiro Santo Amaro, de quem reza a Igreja a quinze de janeiro, estava
Henrique de Souzellas na sala de jantar de Alvapenha, escutando sua tia
e Maria de Jesus, que ambas o entretinham com longas conferencias de
coisas de pouco interesse e ás quaes elle ligava a minima attenção.

Tinham acabado de jantar havia pouco tempo. A mesa conservava-se ainda
posta; Henrique fumava um charuto, recostando-se para o espaldar da
cadeira; D. Dorothéa, de mãos cruzadas deante da cinta, falava; Maria de
Jesus que, depois de pôr em arranjo a cozinha, viera, segundo o costume
patriarchal, tomar parte na sala na conversa do pospasto, auxiliava a
memoria da ama sempre que esta emperrava, corrigia-lhe as involuntarias
e frequentes inexactidões em que a via cair.

Henrique habituára-se já a estes placidissimos habitos; e apesar de não
ligar attenção á conversa, ou por isso mesmo que lh'a não ligava,
achava-lhe certas virtudes estomacaes, que lh'a tornavam agradavel.

Depois de muitas voltas a conversa caíu sobre as occorrencias do auto
dos Reis.

--Eu ainda estou para saber como aquillo foi!--dizia D.
Dorothéa.--Quando me lembro! Como aquella rapariga falava!

--Ó senhora; olhe que já me disseram que a pequena tinha espirito--disse
Maria de Jesus, com ar de mysterio.

--Olhem o milagre!--respondeu D. Dorothéa.--Por essa estou eu.

--Diz que desde aquelle dia anda amarella e triste, que nem parece a
mesma.

--Então é mais do que certo.

--Ai, a tia Dorothéa tambem com crendices!--disse Henrique,
rindo.--Então parece-lhe que traz espirito aquella creança?

--Pois, menino, aquillo a falar a verdade!

--E não é mais natural suppôr que alguem lhe ensinou os taes versos?

--Mas quem? se o Pertunhas diz que os versos eram outros e até que
aquelles não calhavam bem nas lôas?

--O Pertunhas é um parvo. Houve alguem que ensinou aquillo á pequena e
até suspeito com que fim.

--Não, sr. Henriquinho, olhe que alli anda coisa ruim. Tambem o filho do
Ceboleiro, quando trazia o espirito, dizia coisas tão bonitas, que nem
um livro. A senhora não se lembra?

--Ora se lembra!

--Digam-me--insistiu Henrique.--Quem ha aqui na aldeia que faça versos?

--Versos!--repetiu a D. Dorothéa, admirada.--Ninguem, que eu saiba.

--Ó senhora! Então o João do Trolha? Não deita tão bonitos versos nos
desafios?

--Sem ser o João do Trolha--tornou Henrique, sorrindo.

--Ai, não se ria, sr. Henriquinho; olha que os deita muito bem! Ainda no
outro dia, na noite de Janeiras, não se lembra, senhora, dos versos que
elle botou?


  Viva a senhora D. Dorothéa,
  Raminho de bem-me-queres,
  Quando põe a sua touca
  É a rainha das mulheres.


--E depois a mim:


  Viva a senhora Maria,
  A perola das criadas,
  Quando se chega á janella
  Ficam as estrellas pasmadas.


--Ora com o que você vem, mulher! Não tinham as estrellas mais que fazer
do que pasmarem--disse D. Dorothéa.

--Isso é por dizer, senhora; já se sabe que... sim... como o outro que
diz...

--E além do João do Trolha, quem ha mais que faça versos?--perguntou
Henrique.

--Que eu saiba...--disseram as duas.

--E aquelle Augusto?

--O Augustito do doutor? O filho! Coitado do pobre rapaz. Elle sim!
Credo! Não, aquillo é um rapaz de muito juizo.

--Isso não tira. Então a tia julga que só os tolos fazem versos?

--Tolos não digo, mas...

--Mas um pouco feridos na aza, não é verdade?

--Ora pois então dize-me tu, menino, se um homem sério... sim... um
homem de respeito, faz versos?

--Por que não?

--Versos?!

--Versos, sim, senhora.

D. Dorothéa fez um gesto de incredulidade.

Henrique ia redarguir, quando ouviram passos no patamar de pedra da
entrada e após algumas pancadas á porta da sala.

--Abra, tia Dorothéa--disseram de fóra as vozes de Magdalena e de
Christina, que fôram logo reconhecidas.

E cêdo depois entravam alegremente na sala, em companhia de D. Victoria,
que vinha mais retardada.

D. Dorothéa levantou-se para recebel-as.

--Bons dias ou boas tardes, tia Dorothéa, porque me parece que já
jantaram. Vimos aqui para confiar aos seus cuidados a tia Victoria, que
não nos quer acompanhar a ouvir a palavra eloquente do
missionario--disse a morgadinha.

--Eu não; para apertos e barafundas é que não estou.

--E tu vaes, Lena? perguntou D. Dorothéa.

--Então? Não quero passar por impenitente. Ainda o não ouvi. Pode crer?
Além de que percebi na Christe um fervor, com o qual quiz condescender.

--Dizem que préga tão bem--atalhou Christina.

--Pois prégará, mas eu é que já não estou para sermões--ponderou D.
Victoria.

--Vou eu tambem ouvir o missionario--disse Henrique, levantando-se.--Já
m'o mostraram ha dias. Se os dotes oratorios do homem corresponderem á
figura...

--Então?--interrogou D. Dorothéa.

--É um homem gordo e vermelho, de pulso grosso e, em geral, typo da
grossura do pulso.

--Pois bom é que vás, menino--disse D. Dorothéa--para acompanhares as
pequenas.

--Como quizer, primo,--acudiu Magdalena--mas não se constranja. O
Torquato tambem vae.

--Que quer dizer? Que me dispensa?

--Não; mas que se é só por condescendencia que...

--É por prazer. É por devoção.

--N'esse caso...

E Henrique foi procurar o chapéo para acompanhar as duas primas á
igreja.

O Santo Amaro fôra festejado com espavento na freguezia da sua
invocação. Vesperas, missa cantada, duplo sermão, e procissão á volta da
igreja, nada faltára para solemnisar a festa.

O sermão da manhã fôra prégado por o abbade; o da tarde havia sido
concedido ao missionario, que o aproveitára para uma das suas
catechéses.

A procissão já tinha recolhido, quando chegaram á igreja a morgadinha e
Christina, na companhia de Henrique e de Torquato. Havia no adro muita
gente, e algumas barracas de doce e de café, como n'um arraial.

Pela porta principal da igreja engolfava-se a multidão, como em bôca de
sorvedouro, subitamente aberto no leito de um rio, se precipitam as
aguas impetuosas.

A fama, que pelas aldeias circumvizinhas apregoava o nome do
missionario, attrahira immensa gente a escutar o sermão.

As senhoras do Mosteiro romperam a custo por entre a compacta massa
popular, que se amontoava á porta da igreja, e conseguiram, por
deferencia excepcional dos mesarios, entrar pela sacristia para a
capella-mór.

Tinha um aspecto melancolico o interior da igreja n'aquella occasião.
Pobre de si e pouco alumiada, mais escura e lugubre parecia com a
extraordinaria quantidade de gente que a enchia, na maior parte mulheres
de roupas escuras e em que só alvejava o lenço branco que usavam á
cabeça.

Apesar da quadra ir fria, como de janeiro que era, respirava-se alli
dentro uma atmosphera quente, abafadiça e pouco salutar.

Um surdo murmurio formado por centenares de vozes rezando, a meio tom,
orações e ladainhas, contrastava com as altas vozes de festa, que se
escutavam lá fóra, e requintava a triste impressão que se recebia ao
entrar. Alli um grupo de mulheres, de joelhos, escutavam a leitura de
pias orações, que uma fazia em tom lutuoso, e respondiam em côro com
Padre-Nossos e Ave-Marias; além viam-se outras com as faces rojadas no
chão, batendo no peito e desentranhando exclamações, para commoverem a
Divindade; outras em extase, como Santas Therezas, de braços abertos
deante da imagem da Virgem; outras amortalhadas, em cumprimento de
promessa feita a algum santo. Cavados na espessura das paredes havia uns
pequenos cubiculos, que serviam de confessionarios. Ás portas d'estes
nichos, munidas de um crivo de folha, adheriam, como as lapas nos
rochedos, os vultos escuros das penitentes, fazendo para dentro a
circumstanciada exposição dos peccados da semana, e recebendo de lá
regras de bem viver, preceitos de devoção, ás vezes exaggerada e
inspirada de certa moral de convenção, com que a ignorancia ou a má fé
porfiam em falsificar os simples e luminosos dictames da moral, que a
consciencia reconhece e que o Evangelho apregôa.

Ás vezes despegava d'aquelle crivo de peccados uma das confessadas; e
exhausta de fôrças, abatida de animo, descrendo da misericordia divina,
ia cair com desalento nos degraus do altar de Deus, que o fanatismo
cego, senão hypocrita, lhe pintára inexoravel verdugo. Quando outra se
não succedia a esta, via-se rodar nos gonzos a pequena porta d'estes
cubiculos, e sair de lá um padre de batina, sócos e capote de cabeção,
satisfeito de si, e revendo-se n'aquelles corpos prostrados, n'aquelles
gemidos surdos, n'aquellas lagrimas humedecendo o pavimento do templo,
tristes indicios de desalento moral, com que conseguira quebrantar os
ingenuos espiritos que dirigia pela intimidação cruel.

De tudo isto vinha o aspecto sombrio e lugubre á igreja, que nem as
luzes dos altares, nem as sanefas e cortinas de damasco, que com tanta
arte dispuzera mestre Pertunhas, conseguiam dissipar.

Henrique estava sendo desagradavelmente impressionado por o que via.

Olhava com desgosto para aquelles signaes de um terror supersticioso, e
sentia exacerbarem-se-lhe as prevenções que nutria contra o clero, cuja
influencia moral, aliás justa e vantajosa, é cada vez mais diminuida por
aquelles dos seus membros que pretendiam augmental-a por meios
improprios da sublimidade da sua missão e até dos preceitos da religião,
de que se dizem ministros.

Henrique fez algumas reflexões n'este mesmo sentido a Magdalena, que não
pôde deixar de apoial-as, tanto mais que sabia o animo de Christina, que
os escutava, não de todo superior a este apparato terrorifico.

A hora marcada para o sermão approximava-se; haviam-se já evacuado os
differentes confessionarios, e o povo cada vez se apertava mais em todos
os pontos da igreja e trasbordava para fóra das portas do templo. Quem
de dentro olhasse para a porta principal veria que a grande distancia,
na rua, se prolongava a multidão.

Apenas um confessionario permanecia ainda occupado. Havia mais de uma
hora, que alli estacionava de joelhos uma penitente com a cabeça coberta
por a capa de panno, com que rodeava o crivo do confessionario.

Nem o menor movimento revelava animação n'aquelle vulto.

Henrique notára essa immobilidade, que ao principio o fez sorrir; depois
causou-lhe espanto e acabou, emfim, por o indignar. Qual, porém, não foi
a sua surpreza e a de Magdalena, quando, ao terminar a confissão,
reconheceram as feições da penitente por as de Ermelinda, a filha do
Herodes, a formosa e amoravel creança, que, dias antes, tanto
enthusiasmo causára, agora pallida, abatida, sem aquelles sorrisos nos
labios, que tanta graça lhe davam!

E era esta creança que tão longos peccados tinha a narrar, para assim
ficar tanto tempo aos pés do confessor?

Ermelinda, vagarosa, trémula, tendo claros os vestigios de lagrimas, e,
como que enleiada de vergonha, caminhou por entre os grupos de mulheres
ajoelhadas na igreja e veio cair de joelhos ao lado da madrinha e cêdo
rojava com ella a fronte no chão, que regava de lagrimas ferventes.

Pobre creança! Que negros crimes lavariam aquellas lagrimas? Que culpas
teria a expiar aquella inconsolavel dor?

O confessionario d'onde ella se afastára, abriu-se, emfim, e ás vistas,
que para alli se voltaram, mostrou um padre gordo, córado, de olhos e
fronte pequenos, cabellos grisalhos, rompendo-lhe a um dedo das
sobrancelhas. O homem parou algum tempo a fitar o auditorio.

Espalhou-se no templo um sussurro particular; um movimento commum animou
aquellas cabeças todas, quando este homem appareceu.

Era o missionario.

A sua passagem para a sacristia foi uma passagem verdadeiramente
triumphal. Curvaram-se até ao chão as beatas, beijando-lhe a mão ou as
borlas da batina, e pedindo-lhe a benção, que elle distribuia com
profusão.

Mas a meio caminho da sacristia, para onde se dirigia, surgiu-lhe quasi
do chão um estorvo.

Zé P'reira, o desconfortado marido, estava deante d'elle, gesticulando e
realisando um triplice e admiravel esforço para firmar as pernas, para
abrir os olhos, e para desembaraçar a lingua.

Dizia o homem:

--Ó sr. aquelle... ó sr. padre, ou missionario, ou lá o que é... eu
quero-lhe perguntar uma coisa. Deus disse... sim, Deus disse... A
religião manda... Quando um homem se casa...

O missionario não esperou pelo fim da inesperada interpellação; com
modos rudes e pulso vigoroso arredou de si o atrevido, e bradou, fulo de
cólera:

--Então que desafôro é este? Deixam um homem n'este estado vir ter
commigo?!

E com maneiras e palavras igualmente asperas impoz silencio ao povo, que
rira do desengano do Zé P'reira. Os mordomos acudiram logo para
afastarem o Zé P'reira d'alli para fóra. Elle deixou-se ir, limitando-se
a dizer mansamente:

--Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! Então uma pessoa não pode
dizer o que sente?

Ia elle já fóra da igreja e ainda se lhe ouvia a voz repetir:

--Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!

Quando depois d'esta scena, o missionario passou por Henrique, murmurou
este em voz perceptivel, ao ouvido da morgadinha:

--Diga se este todo e este modo de tratar ovelhas não é mais de magarefe
do que de pastor?

O missionario ouviu estas palavras, pois que se voltou como se uma
vibora o picasse, e faiscou-lhe no olhar o fulgor de um odio pharisaico.
Henrique arrostou-o com audacia provocadora.

O padre entrou para a sacristia.

No entretanto o auditorio dispunha-se para escutar o sermão, o mais
commodamente que era possivel n'aquelle pequeno recinto.

No fim de alguns minutos apparecia no pulpito a figura bem nutrida e
pouco attrahente do famigerado educador dos povos.

Fitou com sobranceria os ouvintes e com particular insistencia fixou em
Henrique, que lhe ficava fronteiro, um olhar, que elle sustentou com
firmeza.

Esta tacita provocação durou alguns minutos, no fim dos quaes poderia
talvez, quem estivesse prevenido, distinguir nos labios do padre um
sorriso rancoroso e perceber-lhe um movimento de cabeça quasi ameaçador:

Emfim soltou o texto latino do sermão.

Seguiu-se nova pausa, e principiou.

Apesar do exemplo de Sterne, que não duvidou entresachar nas paginas
humoristicas da _Vida e opiniões de Tristam Shandy_, um sermão sobre a
consciencia, eu não ouso transcrever para aqui o modelo de eloquencia
sacra, recitado pelo missionario n'aquelle dia.

Ainda se eu pudésse transmittir aos leitores o tom rouco de voz, a
extravagancia de gestos, o decomposto dos movimentos com que o orador
acompanhava a recitação dos descosidos periodos d'aquella indigesta
prática, talvez me animasse á empreza, para lhes dar um exemplo da
vigorosa eloquencia, com que se anda atrazando a civilisação do povo e
prejudicando a verdadeira religião, a despeito dos bons sacerdotes, cuja
voz é abafada por aquella gritaria.

As mais tetricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.

Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as
fornalhas ardentes, innumeras torturas, a que o menor delicto, tal como
um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma involuntaria falta á
missa, uma penitencia esquecida, uma oração supprimida, arriscava as
almas por toda a eternidade. Para cada peccado venial uma perspectiva de
tormentos sem fim. O tribunal de Deus foi arvorado em tribunal de Santo
Officio, onde os autos de fé, os pôtros, e cavalletes aguardavam os
delinquentes arrastados até alli; eis o resumo da oração. A fatal e
desesperadora sentença, que o poeta florentino esculpiu no portico do
inferno, traçava-a este sobre os umbraes do tribunal do Eterno.

Na esculptura de Christo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto
de um accusador, surgindo alli a pedir vingança, e não o do Redemptor
sublime a implorar e prometter perdão. E tudo isto de mistura com
imprecações contra as modernas instituições sociaes, contra a obra do
seculo, contra os descobrimentos, contra a sciencia, contra tudo em que
se descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e
as ideias em sentido menos favoravel á propaganda reaccionaria.

Á medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador; augmentava
a desordem dos gestos e refinava a selvageria das imagens.

Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditorio, e
principalmente da parte feminina d'elle iam crescendo em choro
manifesto, em gritos e alaridos. Cêdo era já um angustioso clamor em
toda a igreja. Magdalena, que se sentia, ella propria, um pouco
impressionada por este espectaculo de desolação, voltou os olhos para
Christina. Viu-a trémula, pallida, com as faces banhadas em lagrimas,
tendo no gesto todos os signaes de um intenso pavor.

Assustada com o estado da prima, a morgadinha fez notal-o a Henrique, e
tacitamente lhe communicou as apprehensões que sentia.

Henrique comprehendeu a necessidade de dissipar a funesta influencia que
se estava exercendo no animo timido de Christina.

Sentou-se por isso junto das duas raparigas e principiou a distrahil-as
com commentarios satyricos ás palavras do sermão e á figura do orador,
que ambas offereciam farto alimento para elles.

D'ahi a pouco Magdalena instava já com Henrique para que se calasse.

Previa o perigo que poderiam correr, persistindo n'aquelles commentarios
improprios do logar.

Effectivamente não tinham passado despercebidos, do padre os
commentarios de Henrique, nem os sorrisos mal disfarçados de Magdalena;
e a raiva despertada pela descoberta cada vez inflammava mais o orador,
exacerbando-lhe a virulencia da phrase.

Já não podia tirar os olhos d'aquelle grupo, e por vezes a cólera,
estrangulando-lhe quasi a larynge, interrompera-lhe o discurso.

Alguns ouvintes, seguindo a direcção d'aquelles olhares faiscantes,
haviam attingido já a causa d'elles.

D'ahi algumas murmurações que principiaram a sussurrar pela igreja.

No grupo das beatas, em que estava Ermelinda, fôram ellas mais acerbas
do que nenhumas. A sr.^a Catharina e as suas companheiras fartaram-se de
anathematisar a impiedade e a heresia da gente do Mosteiro, e no coração
da filha do Cancella, dominado pelo terror que o sermão levára ao
cumulo, calavam aquelles dizeres, que a faziam quasi olhar, como se
fôssem já prezas do inferno, para Magdalena e Christina, a irmã e a
prima de Angelo, do seu amigo de infancia, em quem já não se atrevia a
pensar.

N'uma occasião em que o missionario fulminava com mais vehemencia os
progressos da industria moderna e chamava redes do demonio e caminhos do
inferno aos telegraphos electricos e ás vias-ferreas, Henrique
approximando-se dos ouvidos das duas primas, fez não sei que reflexão
tanto a proposito, que a morgadinha não conteve o riso; a propria
Christina sorriu tambem.

Era de mais! O padre pulou no pulpito. Com os olhos em chammas, as faces
apopleticas, os labios espumantes, os punhos cerrados e os braços hirtos
e estendidos na direcção de Henrique, rompeu n'estes violentos termos:

--Fóra do templo, pedreiros livres, que vindes aqui escarnecer da
palavra do Senhor! Fóra do templo, impios libertinos, que não respeitaes
os ministros de Deus, nem o seu altar! Andam lobos no povoado e vieram
esconder-se entre as ovelhas na casa do Senhor! Escorraçae-os, irmãos,
se não quereis que se vos pegue a lepra do peccado e que Deus arraze
esta aldeia, como arrazou Gomorrha e Sodoma. São esses os que trazem das
cidades a peste para as aldeias; são estas as pragas que nos veem com as
estradas e com a civilisação. Fugi d'elles, que trazem o demonio na
alma! Homens sem religião, mulheres sem temor de Deus, mações, pedreiros
livres, vindes para aqui tentar as almas? Eu vos esconjuro! eu vos
requeiro! Vade retró, Satanaz, vade retró! vade retró!...

E de cada vez que repetia a fórmula exorcista, o missionario estendia o
braço na direcção de Henrique.

Este, desde que viu que a imprecação lhe era dirigida, levantou-se e
fitou o padre com ousadia imprudente. Preparava-se para lhe responder
alli mesmo.

Quando o missionario concluiu, o sussurro da igreja degenerou em
desordem. Das beatas transmittiu-se a revolta aos homens do campo, cuja
má vontade, para com a gente das cidades, cresce sempre que se suspeitam
alvo dos desdens ou zombarias d'esta. As ameaças soavam já distinctas,
os varapaus mexiam-se pouco pacificamente, o escandalo tomára proporções
assustadoras.

Christina quasi desfallecia; Magdalena, pallida, mas sem perder a
presença de espirito, que nunca a abandonava, segurou o braço de
Henrique e queria obrigal-o a retirar-se da igreja.

Henrique resistia e procurava falar.

O velho Torquato, trémulo e enfiado, puxava tambem por elle como podia.

O alarido, a confusão, a desordem recrudesciam. O padre tinha perdido a
cabeça, e do pulpito animava a anarchia, berrando e bracejando.

Alguns homens prudentes, e entre elles o santo homem de um cura que
havia na freguezia, obrigaram, quasi á fôrça, Henrique a sair da igreja
por a porta da sacristia.

Ao vêl-o retirar, acompanhado das senhoras, o povo precipitou-se em
confusão para a porta principal, para os vir esperar á saída da
sacristia, e correu clamando atordoadoramente.

E de feito, quando alli chegaram, viram-se em frente de uma impenetravel
parede humana, de centenares de rostos que os fitavam furiosos, de
braços que os ameaçavam, e de bôcas d'onde partiam gritos de «morte aos
pedreiros livres, aos libertinos e aos herejes.»

Magdalena recuou; Christina encostou-se-lhe ao hombro, quasi desmaiada.

Henrique parou á porta, pallido, mas sem recuar deante d'aquella gente
furiosa e ameaçadora.

--Que querem de mim e d'estas senhoras?--perguntou elle, com voz firme.

Em vez de responder-lhe, berraram com mais violencia:

--Morra o pedreiro livre!

--Ensinem esses senhores da cidade!

--Pouca vergonha!

--Isto não fica assim! Isto é de mais!

--Mação!

--Hereje!

--Quero passar!--repetiu Henrique, no mesmo tom imperioso.

--Havemos de ensinar estes fidalgos.

--Excommungados!

--Havemos de lhes dar os risinhos na egreja.

Henrique não podia já reprimir a impetuosidade do genio; deu um passo
para elles, levantando o chicote que trazia na mão.

Era uma imprudencia perigosa. N'um momento uma verdadeira nuvem de
varapaus cruzou-se sobre a cabeça d'elle.

E os gritos de «morra! mata! abaixo os pedreiros livres e herejes!»
levantaram-se mais ameaçadores do que antes. Magdalena susteve, a
tremer, o braço de Henrique.

E o tumulto crescia cada vez mais e cada vez mais augmentava o perigo.

Uma grande pedra, impellida de longe, veio bater na verga da porta da
sacristia, e na quéda ameaçava ferir a cabeça de uma creança que,
entremettendo-se no grupo dos amotinadores, conseguira collocar-se junto
de Magdalena, e de olhos espantados assistia áquillo tudo com infantil
curiosidade, emquanto a mãe afflicta a chamava em altos gritos,
procurando-a no adro. A morgadinha, estendendo as mãos para proteger a
cabeça da creança, foi ferida nos dedos pela pedra. Com gesto sereno, e
em tom desaffectadamente reprehensivo e ao mesmo tempo placido, disse
para toda aquella gente:

--Não vêem que iam matando esta creança?

Esta simples acção, e estas palavras da morgadinha, produziram mais
effeito do que todos os arrazoados e todas as resistencias. Havia
n'ellas claros indicios de uma indole generosa, e a generosidade foi e
será sempre um dos mais poderosos elementos para dominar e commover as
massas. Sabem-o os especuladores politicos, que tanto se esforçam por
simulal-a, quando precisam do povo.

--Quem foi que atirou a pedra?--perguntou um.

--Temos tolice!

--Nada de pedra, olá!

--Então isto é coisa de garotos!

Estava a quebrar-se a furia da onda popular. Os que antes gritavam
«morra» achavam já reprehensivel a primeira tentativa de lapidação. E
comtudo era a pedra a arma mais prompta para executar a sentença. Era
evidente que o maior perigo passára e que um pouco de prudencia
resolveria a crise.

O peor era que Henrique possuia em pequeno grau essa qualidade, e,
irritado pelo insulto, ia commetter talvez algum acto irreflectido,
apesar dos esforços de Christina e de Torquato para o reprimirem.

Uma circumstancia, porém, veio inesperadamente em auxilio d'elles, e
concorreu para dissipar a tempestade.

Foi o caso que, depois de ser posto fóra da igreja o Zé-P'reira, que,
pelas razões que o leitor já sabe, e inda mais depois do mallogro da
interpellação ao missionario, não olhava com bons olhos para este, veio
desconsoladamente sentar-se no adro, sobre os degraus de um cruzeiro,
tendo ao seu lado o popular tambor, instrumento das suas glorias, e que
ainda n'aquelle dia servira á frente da procissão.

Ahi se conservou em quanto durou o sermão. Junto do artista deitára-se a
dormir o seu satellite, o rapaz do bombo, o que, a passadas compassadas
e valentes, secundava os rufos rapidos e febris que o outro executava na
caixa--pancadas que eram, por assim dizer, as virgulas d'aquelles
floridissimos periodos acusticos.

Em posição de cansaço e desalento o Zé P'reira monologava, como era
habito seu, sempre que tinha o cerebro repassado do espirito familiar.

Lamentava comsigo, o bom do homem, o desmazêlo domestico da sua cara
metade; a influencia funesta dos missionarios na paz das familias, e
sobre tudo a indifferença que principiava a perceber nas massas para as
maravilhas do predilecto instrumento, que elle conhecia a preceito.

Era de facto esta uma das causas dos pesares secretos do hortelão.

Desde que, por influencia do mestre Pertunhas, se instituira a
philarmonica na aldeia, Zé P'reira andava triste e desassocegado.

N'aquillo viu elle a morte da sua arte. Um _ceci tuera cela_, como o que
preoccupava e entristecia o arcediago de Notre-Dame de Paris,
analogamente inquietava o nosso homem. O espirito e gôsto publico
entravam em nova phase, preparava-se uma revolução na arte. O reformador
era o mestre Pertunhas; instituindo a banda marcial, verdadeira
extravagancia romantica comparada á simplicidade e nobreza classica dos
portentosos rufos do Zé P'reira, o mestre de latim realisou um
commetimento digno de menção na historia da arte.

Pobre Zé P'reira!

Estas reflexões estavam-lhe acudindo todas, e mantinham-o, havia perto
de uma hora, em uma posição contemplativa deante do tombado instrumento
de seus ruidosissimos triumphos. Lia-se n'aquelles olhares fixos uma
melancolia quasi poetica.

N'esta contemplação o surprehendeu a tumultuosa e subita saída do povo
pela porta da igreja, e as scenas de motim que se lhe seguiram. A
intelligencia pêrra de Zé P'reira não achou logo a explicação do que
via. Pouco a pouco porém os varapaus no ar, os gritos, a confusão,
principiaram a dar-lhe uma vaga consciencia da desordem popular.

Os instinctos ordeiros e pacificos de Zé P'reira acordaram, e o homem
ergueu-se.

Olhou algum tempo para o logar do maior tumulto, e em seguida passou ao
tiracollo a alça do tambor.

Olhou outra vez, e com um pontapé acordou o seu satellite, que,
estremunhado, tomou automaticamente para si o bombo do acompanhamento.

Olhou outra vez, e viu nos ares a pedra que feriu Magdalena. Então o Zé
P'reira não esperou mais nada, tomou uma resolução, fez um signal ao
rapaz, e...

_Pom_--fez a baqueta d'este, caindo com toda a fôrça sobre a retesada
superficie do bombo.

_Taplão, taplão, rataplão, rataplão_...--responderam as baquetas movidas
pelas amestradas mãos do Zé P'reira.

Muitas cabeças de amotinados voltaram-se na direcção do som.

O Zé P'reira proseguiu; adquiria cada vez mais velocidade o jogo das
baquetas; começava a ganhal-o o vapor do enthusiasmo.

Principiou a acudir o povo para junto do artista.

Este tomára-se já do _raptus_, do phrenesi musical. Já não eram só as
mãos, eram os cotovelos, eram os joelhos, era a cabeça que rufavam. De
olhos fechados, dentes ferrados nos labios, ventas offegantes,
contrahidos quasi tetanicamente os musculos do pescoço, a vergal-o para
traz, Zé P'reira parecia endemoninhado. Não via, não ouvia, não sentia,
não tinha consciencia de si, nem dos seus actos; todo elle era fogo,
delirio, convulsão, febre, loucura. Parecia que poderosas correntes
electricas se transmittiam do tambor ao cerebro, e do cerebro ao tambor,
desafiando aquelles movimentos choreicos, aquelles grunhidos surdos,
aquellas visagens extravagantes, aquellas contracções geraes, que o
torciam, desconjunctavam e desfiguravam.

Vencera-o completamente a febre; sangue, nervos, musculos, cerebro, tudo
era dominio seu; congestionado, allucinado, louco, rufou, rufou, rufou
com desespero, rufou até as baquetas se não avistarem, de rapidas que se
moviam; rufou até o ouvido quasi não perceber a descontinuidade dos
sons; rufou finalmente até cair por terra exhausto, no collapso que
succede ás convulsões do espasmo. Se tinha de ser aquelle o declinar de
uma gloria, todos os astros lhe invejariam tão esplendido crepusculo.

O povo inteiro applaudiu o artista.

E quando voltaram a si do extase em que elle os tivera, acharam já
fechadas as portas da sacristia e nem vestigios da familia do Mosteiro.
O povo dispersou pacificamente.

 


XX


Passados dias voltava o Herodes do Porto, quando nas proximidades da
aldeia encontrou alguns homens a cavallo, que lhe eram desconhecidos.

O leitor que tenha sempre vivido n'uma cidade populosa, onde lhe é
impossivel conhecer todos os que com elle habitam na mesma terra, mal
pode fazer ideia da sensação que produz no habitante de uma aldeia,
villa ou cidade pequena, a presença de uma cara estranha.

Formam-se-lhe logo no espirito mil conjecturas, e a mais inquieta
curiosidade instiga-o a decifrar a significação d'aquelle apparecimento.

Isto aconteceu com o Cancella.

Desde que avistou os desconhecidos, que dissemos, não tirou mais os
olhos d'elles. Eram tres em numero, traziam grandes botas, e largos
chapéos, mantas ao hombro, usavam bigodes e lunetas escuras.

--Passaros de arribação...--pensava o Herodes comsigo--que vento traria
isto para aqui?

E, chegando-se mais de perto, saudou-os cortezmente.

Um d'elles dirigiu-lhe a palavra:

--Olá, ó amigo, onde ha por aqui uma casa habitavel, em que nos
alojemos?

--Por pouco ou por muito tempo, meu amo?

--Por o tempo que levar a construir uns quinze kilometros de estrada.

--Ah! então v. sr.^{as} são engenheiros?

--Julgo que sim.

--Então, visto isso, as estradas sempre vão principiar?

--Antes de arranjarmos casa em que fiquemos, de certo que não.

--Ai, sim, querem uma casa... Eu lhes digo, não tem nada que saber; os
meus amos vão por ahi sempre a direito, e lá adeante, chegando ao pé de
uma oliveira, tomam á sua mão esquerda por um caminho estreito, que tem
uma cancella no fim; depois, logo que virem uma nora, carregam á
direita, seguem sempre ao lado de um muro branco, até chegarem á eira;
ahi tomam por um outro atalho, que está ao lado e vão dar a um
larguinho... Depois não tem que saber, deitam pela rua em frente e
perguntando alli pela estalagem da Mouca, logo lhe dizem.

Os tres cavalleiros olharam uns para os outros, consternados com a
explicação.

Iam a dirigir mais algumas perguntas, quando passou por alli uma
rapariguita, guardando porcos, que parou pasmada a olhar para os
engenheiros.

--Se v. s.^{as} querem, esta pequena vae ensinar-lhes o caminho.

Acceitaram contentes, e cêdo partiam, precedidos por a pequena cicerone.

--Grande novidade!--ficou dizendo o Cancella comsigo--sim, senhor; com
que vão principiar as estradas! Pois nunca cuidei que fôsse nos meus
dias. Então... querem vêr que sempre sae certo o que eu ouvi dizer, que
vae abaixo a casa e o quintal do tio Vicente?... Pois se querem vêr... O
pobre homem estala de paixão, se isso assim é; isso é com certeza...
Pois, senhores... isto de estradas... é bom, é; pois não é? Sempre é
outro arranjo para quem tem de ir á cidade...

Nova surpreza esperava o Herodes n'este regresso aos lares. De longe
ainda, divisou affixado á porta da igreja um edital. Outra circumstancia
que nas cidades nem nos obriga a desviar a cabeça, porém que nas aldeias
toma as proporções de um grande successo.

--Ui! Temos novidade--disse o Herodes ao vêl-o.--Edital á porta da
igreja!--e approximou-se para ler.

Proclamava o chefe do concelho aos seus administrados que, por ordens
terminantes do governo, eram, desde aquella data, expressamente
prohibidos, sob as mais severas penas, os enterramentos no interior da
igreja, e que todos se fariam no cemiterio, para esse fim já construido.
Havia no logar um grupo de populares commentando a ordem e murmurando
contra o governo e contra o conselheiro, e falando de opposição e motim.

--Bom, mais outra!--dizia o Herodes, ao apartar-se do logar.--Grandes
coisas se passaram cá na terra, emquanto eu andei por fóra! O peor é que
não sei se a coisa irá assim ás mãos lavadas; ao que já ouço por ahi
rosnar!... É o diabo!... Eu digo, não sei se é do costume em que uma
pessoa se põe... mas... lembrar-se, a gente de que fica assim á chuva e
ao sol... Mas é do costume, é... Bem sente lá uma pessoa o frio depois
de morta.

E fazendo estas reflexões proseguiu no seu caminho.

Passou por uma pequena capella, erecta á borda de um pinheiral, sob a
invocação da Virgem da Esperança, e reteve-se a fazer oração. Áquella
imagem costumava encommendar a filha, sempre que saía da aldeia, e no
regresso pagava-lhe em fervorosas orações a protecção obtida, e
separava-se d'alli mais consolado e tranquillo. D'esta vez, porém, ficou
triste e sobresaltado. Porquê?

É que se lembrára de que tinha, ao partir, deixado Ermelinda doente, e
estremecia agora na incerteza de como a iria achar.

Esta ideia fel-o apressar o passo, como se quizesse, quanto antes,
tirar-se d'aquella incerteza; mas desde que avistou os telhados e muros
da casa parou irresoluto.

Parece que os objectos inanimados nem sempre teem para nós um mesmo
aspecto. Ha occasiões em que as casas, as arvores, os muros, as portas,
se nos mostram com certos ares melancolicos, e quasi direi pensativos,
que nos enchem de sombras o coração; outras em que umas apparencias de
sorrisos lhes dão uns ares de festa que alegram e convidam.

Ao Herodes apparecia-lhe triste d'esta vez a casa, que de ordinario, ao
avistal-a, lhe enviava um sorriso a dar-lhe as boas vindas.

Seria o effeito das tintas desmaiadas, que dá aos objectos o sol
crepuscular? Seria o reflexo dos presentimentos proprios, que lhe
estavam confrangendo o coração? Mas como lhe acudiram tão de subito
esses presentimentos, a elle, ainda pouco tempo havia tão
despreoccupado! Como lhe occorrera de repente a memoria d'aquelle dia em
que, voltando tambem de fóra, viera encontrar quasi morta a mulher, que
chorava ainda, a mãe de Ermelinda? Phenomenos que se perdem na parte
obscura da vida moral, da qual ainda a analyse não conseguiu devassar as
sombras.

Crescia o sobresalto do pobre homem ao pousar os pés nos primeiros
degraus da escada de pedra. Ao passar pela porta do compadre, não tivera
coragem de perguntar; receiou sair da incerteza.

Foi quasi a tremer que empurrou deante de si a porta da casa, que
encontrou aberta.

Logo ao entrar, recuou espantado e não reprimiu uma exclamação de
surpreza.

Fôra a causa o achar novidades na primeira sala.

Deu com os olhos n'uma fileira de pequenas cruzes de pau preto que
cercavam as paredes, e em alguns caixilhos com imagens de santos, que
não deixára alli ao partir. E ninguem a recebel-o.

--Crédo!--disse o Cancella, desgostoso.--Para longe o agouro! Cruzes
negras á chegada! São coisas da comadre. Maldita velha! Jurou metter-me
scisma em casa e na cabeça da rapariga, e se não lhe
acudo...--Ermelinda!--exclamou, chamando por a filha.

Como não recebesse resposta, passou para os aposentos interiores.

Á entrada do corredor descobriu uma pequena pia de louça cheia de agua
benta, em que mergulhava um ramo de alecrim.

--Mau!--disse o Herodes, cada vez mais descontente.--Vou vendo que a
minha comadre fez por aqui das suas. Ora queira Deus... queira Deus...
Ermelinda!

E correu toda a casa, que não tinha muito que correr, e explorou o
quintal, e sem achar a filha; já inquieto, chegou a um quarto mais
retirado, o unico que ainda não revistára. A porta estava fechada por
dentro, porém a péquena cravelha fraca resistencia oppoz á pressão que
na porta exerceu o Herodes.

Franqueando assim a passagem, parou no limiar.

Moveu-se, ao ruido que elle fez, um vulto que parecia ajoelhado n'um
canto escuro do quarto.

--És tu, Linda? Estás ahi?--perguntou o Cancella, affirmando-se
n'aquelle vulto, sem ainda o reconhecer,

--Meu pae... respondeu com voz fraca.

--Que fazes tu aqui mettida e fechada n'este quarto, filha? no quarto
mais escuro e mais abafado de toda a casa? Chega-te cá, rapariga,
quero-te abraçar e beijar... Então que é isso?... Tens hoje tão pouca
pressa de abraçar teu pae?... D'antes, até ao caminho me vinhas
esperar... Vem cá, minha filha, vem cá... Se soubesses como me
consola...

E estendia os braços para a filha, que lhe viera emfim ao encontro.
Quando, porém, a viu mais perto da luz, calou-se subitamente e
principiou a examinal-a com inquieta anciedade. Depois, como se lhe não
bastasse a luz d'aquelle recinto para desvanecer não sei que suspeitas
assustadoras que o devoravam, trouxe, silencioso ainda, a filha para o
corredor, e continuou ahi a fital-a com os olhos eloquentes de paixão e
de espanto, bradando emfim, com voz consternada:

--Que é isto!... Que tens tu, filha?... Estás doente? Estas não são as
tuas feições... Os olhos pisados... as faces abatidas... sem côr... sem
risos... sem saude!... Linda, tu que tens? Dize: choraste, filha? Estás
doente? Fala! Anda, fala!... por piedade!... por amor de Deus, Linda,
fala!

A rapariga, em vez de responder, desatou a chorar.

--Meu Deus! Isto que é, meu Deus?--exclamava, mais assustado, o
pae.--Choras ainda mais? Que te fizeram, filha? Ó Linda, tu não tens
pena de mim? não chores!... Ou chora, chora, se te faz bem chorar;
mas... fala, dize-me o que tens, dize-me por que choras, filha... Então?

E com voz trémula, com as mãos unidas e o susto no gesto, como no
coração, o pobre homem quasi ajoelhava a implorar da filha a explicação
d'aquelle doloroso mysterio.

Como ella não respondesse ainda, continuou o afflicto pae, cada vez mais
commovido:

--Ai os presentimentos do meu coração! Não sei o que me dizia isto! Não
sei! Meu Deus, meu Deus! E como te pareces com tua mãe n'aquelle dia em
que... Nem quero imaginar... Ó filha, filha, não vês que me matas assim?
Fala!

E beijava-a e afagava-a, e cobria-a de lagrimas ardentes, que mais
lagrimas desafiavam á creança, sem que a fizessem falar.

Nos movimentos desordenados que fazia, o desgraçado parecia louco. Elle
apertava as mãos da filha, levava-as aos labios, abraçava-a, tomava-a ao
collo, pousava-a no chão; ora a attrahia a si, ora a afastava, sem saber
o que fizesse, n'essa incoherencia de actos que produz um espirito
inquieto.

Como para melhor examinar aquellas feições queridas, cujo abatimento e
pallidez tanto o assustavam, afastou da fronte da creança, com as mãos
trémulas, o lenço que lhe envolvia a cabeça; mas de repente retirou-as,
soltando um grito medonho, ergueu-se e recuou com terror.

Depois, fitou a filha com olhar desvairado, e, sem pronunciar uma
palavra, quasi que a arrastou para mais perto da luz, que entrava no
corredor pela porta aberta do quintal; ahi, arrancou com impeto febril o
lenço da cabeça de Ermelinda; um novo grito, mas d'esta vez rouco,
abafado pela dor, cortado pelos soluços, saíu-lhe do seio, e elle, o
desgraçado pae, desatou a chorar como uma creança.

É que aquelles formosos cabellos louros de Ermelinda, que com tanto amor
beijava, que com tanta soberba lhe desatava pelos hombros, o orgulho, o
enlevo do seu coração de pae, aquelles cabellos louros haviam caído aos
golpes de uma tesoura desapiedada e quasi irreverente.

Só quem fôr pae pode conceber toda a desesperadora afflicção em que esta
descoberta lançou o coração d'aquelle.

Ermelinda caiu-lhe aos pés, de joelhos, chorando tambem.

Por algum tempo, nada mais se ouviu alli dentro senão os soluços de
ambos.

A reacção não se fez, porém, esperar muito no animo violento do
Cancella.

Afastou com vivacidade as mãos do rosto, ergueu a cabeça, e, com os
olhos inflammados de raiva e de cólera, disse para a filha, tremendo e
gaguejando, tal era a impetuosidade dos sentimentos que se lhe
amontoavam no coração:

--Quem foi?!... Responde! De quem foi essa mão atrevida que fez isto?...
Fala! Não ouves? Quero sabel-o, para cortal-a mais rente do que te
deixou os cabellos... E tu, desgraçada, tu, consentiste! Má filha, filha
desagradecida e sem coração, que assim deixas que me roubem as minhas
riquezas e alegrias! A teu pae!... É assim que pagas o amor com que te
tenho creado?... a adoração com que de pequenina te tratei? É assim? É
com este desamor?! e com esta ingratidão?!

--Meu pae! meu pae!--implorava Ermelinda, suffocada pelo
pranto.--Perdôe! Não se affiija assim, meu pae, que me mata! Não vê?...
Escute... Para servir a Deus... foi para servir a Deus que eu os
cortei... A vaidade é um peccado grande.

--Quem te ensinou isso?... Quem te aconselhou a que os cortasses?
Fala!...

--Por alma de minha mãe, não me fale assim, que me assusta!

--Vá! Pois já não falo... Eu estou socegado... Mas então? eu não hei de
saber?... Bem vês que eu precíso de saber!... Vá!... Eu sou teu pae.
Ordeno... Peço... Dize, filha, quem foi?

--O missionario...--ia a dizer Ermelinda.

O pae não a deixou proseguir.

--Ah! Já sei! O missionario! É isso! Os padres... as beatas... tua
madrinha! A bruxa a quem eu confiei a filha e que m'a entrega assim!
Vendeu-m'a ás mãos d'esses malvados sem dó, sem consciencia, sem
religião, sem Deus...

--Meu pae, não diga isso! Não fale assim, que é peccado.

--Cala-te que grande, maior peccado fizeste tu, affligindo assim teu
pae! Os missionarios! Quem lhes deu o direito? Quem lhes ordenou...
Deus? Se Deus é assim, se Deus quer estas crueldades... Deus não é Deus,
e eu não o reconheço nem adoro!

Ermelinda tremia de terror, ouvindo estas palavras, que a irritação e o
desespero estavam dictando ao pae. A timida e nervosa creanca
horrorisava-se, ouvindo aquellas phrases audaciosas, e quasi blasphemas,
e a cada momento esperava vêr cair um raio fulminador a castigal-as.

--Por amor de Deus--murmurava ella, com a voz chorosa e quasi
sumida--por alma de minha mãe!...

--Cala-te! não fales em tua mãe, que não mereces dizer esse nome! Tua
mãe! Aquella sim, que sabia como eu lhe queria; que sempre lidou para me
não causar penas, e que só com a sua morte me fez chorar lagrimas, tão
amargas e tantas, como eu choro agora!

E chorava cada vez mais, chorava, como um fraco, aquelle homem forte e
valente, chorava, porque tinha um coração de pae.

Ermelinda lançou-se-lhe nos braços, cobrindo-o de afagos e beijos.

--Perdôe-me, meu pae! perdôe-me!--dizia ella.--Se soubesse... Fui eu que
pedi... Fui eu que sonhei... Não chore assim, meu pae! Não culpe
ninguem, fui eu, eu que pedi a minha madrinha!... Foi por a salvação da
minha alma, porque...

--E foi tua madrinha que t'os cortou?

--Foi, mas... É que o missionario tinha dicto... O missionario é um
santo!... Não olhe para mim d'esse modo, meu pae, que me faz mêdo.

E cobria os olhos com as mãos, para não ver a expressão do rosto do
Cancella.

--Querem matar-me a filha--bradava elle.--Ó meu Deus! pois não é isto um
grande peccado? fazer da creança, linda e alegre, que eu deixei aqui,
esta desgraçada rapariga, sem côr, sem risos, sem alegria! Não é isto um
crime, meu Deus? Não se vos pode amar e servir, Senhor, senão com
lagrimas, com penitencias e com tristezas? Não! Mentem elles! mente esse
missionario! mente essa mulher! mentes tu, filha! e maldicto seja quem
traz assim o desespero ao coração de um pae.

E o Cancella levantou-se exasperado, sacudindo rudemente de si a filha,
cada vez mais gelada de terror e afflicção. Deu alguns passos no
corredor, e voltou ao quarto onde a encontrára. Ella seguiu-o de mãos
postas, chorando, pedindo-lhe que se não affligisse assim. Mas o
Cancella era dominado pela impetuosidade do seu genio. Nem a ouvia. De
repente, parou, fitando os olhos no registo do Coração de Maria, que
alli fôra introduzido por a mulher do Zé P'reira. Estava adornado com
jarras de flores e vélas de cêra; era a esta imagem que Ermelinda fazia
oração, quasi extatica, quando o pae entrou.

--Coração de Maria!--disse o Cancella, quasi desvairado, conservando a
vista fixa na imagem, e como falando para si.--Coração de mãe, e de mãe
extremosa, que foi esta, e bem lanceada de dores. Soube o que é querer a
um filho, o que é vêl-o padecer... o que é perdel-o... E será ella a que
deseja as lagrimas, as tristezas e a morte d'esta creança?... as
desventuras de um pae?... Ella! Não! E se tu o queres--continuou
allucinado, voltando-se para a imagem--e se não podes ser adorada senão
assim, é porque és falsa, falsa como a mão que ahi te pintou, falsa como
as bôcas que te prégam os milagres. Vae-te!

E no accesso de raiva, que cada vez mais crescia n'elle, fez voar o
caixilho, as jarras e os castiçaes pelo ar, e tudo veio fazer-se pedaços
no pavimento.

Ermelinda soltou um grito dilacerante e agudissimo ao vêr aquillo. O
terror seccou-lhe as lagrimas. Com o olhar espantado, as faces quasi
lividas, as mãos juntas, quiz falar, mas não pôde; moviam-se-lhe os
labios descórados, mas não lhe saía a voz da garganta.

Cada vez mais cego pelo desespero, o pae já não a attendia. Passou outra
vez ao corredor, derrubou, em igual accesso de furia o vaso da agua
benta, bradando:

--Vae-te, que estás empestada tambem pelo bafo maldicto da impostura.

Ermelinda lançou-se-lhe aos pés, abraçou-o pelos joelhos para o reter,
mas elle não a sentia, e, continuando a caminhar desorientado, quasi a
levou de rastos á outra sala.

Ahi, imagens, cruzes, esculpturas, tudo lançou por terra, tudo
despedaçava ou rasgava.

N'este impeto de loucura, n'esta cegueira de raiva, não viu a filha que,
como se galvanisada pelo terror, ergueu-se arquejante, com os braços
estendidos, fazendo esforços para falar, e caindo por fim no pavimento
inerte e fria como um cadaver.

Attrahida pelos gritos e rumor que partiam da casa do Cancella, a
madrinha de Ermelinda acudiu a vêr o que era aquillo.

Chegando ao limiar da porta, assistiu ainda ao final da scena que
descrevemos; ia a gritar, mas o olhar e gesto com que a fitou o Cancella
cortou-lhe a fala na garganta.

Era de facto um olhar selvagem e sinistro.

A sr.^a Catharina parou.

--Que vem fazer aqui, mulher?--dizia-lhe o Cancella com voz cavada.

--Eu...

--Vem acabar de matar-me a filha, serpente? Vem empeçonhar estes ares,
onde metteu a tristeza?

E, a cada pergunta que fazia, dava para ella um passo e ella recuava
outro.

Crescia outra vez a impetuosidade nas paixões e nas palavras do Herodes.

--Saia! saia da minha vista, se não quer que eu lhe faça como fiz a
esses feitiços com que me enfeitiçou a filha, com que m'a quiz matar.

A velha ganhou animo ao vêr-se fóra da porta e por isso disse:

--Lá se vê quem a matou. Repare e diga se não tem remorsos, carrasco!

Estas palavras fizeram quebrar a vehemencia do desespero do Cancella.

Voltou-se, e vendo a filha estendida no chão, quasi como morta, com a
pallidez, com a immobilidade, com a apparencia de um cadaver, correu
para ella, soltando um grito angustioso, e principiou a chamal-a pelo
nome, beijando-a, chorando, pedindo misericordia a Deus, pedindo perdão
a ella, soltando palavras sem nexo, arrepellando-se, ferindo-se.

A velha, que já não o temia, ao vêl-o assim, vingava-se agora
chamando-lhe impio, hereje, malvado, assassino da filha, condemnado de
Deus... e elle, o desgraçado, tudo escutava humildemente, com remorsos,
e implorando misericordia.

--Não! ella não ha de morrer-me assim... Deus não pode consentir n'isto.
Não deixará que eu tenha assassinado minha filha. Ah! senti-lhe o
coração!... vive!... senti-lhe o coração bater... Olhe! venha vêr...
pouse aqui a mão, comadre, no peito d'ella, aqui... Não sente? É o
coração, não é? Não lhe parece que não morreu? Ar, ar, é do que ella
precisa.

E erguendo-se, correu, com a filha nos braços, para o meio da rua.

Ermelinda ainda estava sem accôrdo. Juntaram-se algumas mulheres,
attrahidas pelo espectaculo e pelas arguições da beata, que não cessára
de falar.

Foi voz unanime que a pequena estava a expirar. O Cancella tremia e
pedia por amor de Deus que lhe não dissessem aquillo.

Subitamente, soltou um grito de triumpho e poz-se a rir como doido.
Ermelinda tinha aberto os olhos.

Mas, ao fital-os no pae, instinctivamente desviou a cabeça, como se o
aspecto d'elle lhe causasse terror.

--Filha! disse o Cancella, tremendo de interpretar aquelle gesto e com
maior consternação na voz e no olhar.

Ermelinda, sempre com os olhos fechados, começou a tremer
convulsivamente e n'uma anciedade extrema.

--Deixe a pequena!--disse a beata--não vê que lhe faz mêdo? E com razão,
pobre creança! depois do que viu!

--Pois eu hei de fazer mêdo a minha filha?--repetiu timidamente o
pae.--Eu?! Ó Ermelinda... pois tu...

Um estremecimento, que correu pelos membros da rapariga, fel-o calar.
Commovido, consternado, passou-a para os braços da velha, e sentou-se a
soluçar como uma creança, dizendo entre gemidos:

--Perdi o amor de minha filha! perdi o amor de minha filha! Ai que
desgraçado que eu sou!...

A scena era bastante commovente, para que se não sentissem
impressionadas todas as pessoas que ella attrahira alli.

Houve um longo silencio, só interrompido pelos roucos soluços do
infeliz, em quem entrára o desespero no coração.

Este silencio permittiu ouvir-se um vago som, como de musica longinqua,
que, a pouco e pouco, se percebeu ser um côro de vozes femininas; cêdo a
toada e depois da toada a lettra, principiou a tornar-se distincta.

Ouviram-se perfeitamente estas palavras:


  Vinde, vinde, ó missionarios,
  Com a palavra de Deus
  Libertar-nos do peccado,
  Encaminhar-nos aos céos.


O Cancella ergueu a cabeça e poz-se a escutar.

As vozes continuaram:


  Minha alma por vós anceia,
  Ó ministros do Senhor!
  E o meu peito em chammas arde,
  Em chammas do vosso amor.


O Cancella principiou a abanar a cabeça, e os olhos animaram-se-lhe de
um fulgor extranho.

O côro soava cada vez mais perto, e dentro em pouco desembocou na rua,
em que se passavam estas scenas, um singular cortejo.

O missionario, que nós já conhecemos, por o termos visto em pleno
exercicio de suas funcções predicatorias, vinha seguido por uma cohorte
de mulheres de roupas escuras e cabellos cortados, que cantavam em
chorada cantilena estas e analogas quadras, que os missionarios ou os
agentes seus teem quasi sempre o cuidado de vulgarisar como
preparatorios dos animos impressionaveis das mulheres e das creanças.

Ia em meio uma d'estas quadras, quando se approximava a procissão da
casa do Cancella.

Este já estava em pé no meio da rua, á espera d'ella.

O missionario viu aquelle homem grande e immovel no meio do seu caminho,
aquelle agigantado vulto que, virado de costas para o poente, se lhe
apresentava escuro como um phantasma, e não conjecturou bem do que via.
Por isso parou tambem, olhando para elle. O côro suspendeu-se.

O Cancella fitou por algum tempo em silencio o padre, e perguntou-lhe:

--Sabe quem sou?

O padre fez um signal negativo com a cabeça.

--Sou um homem desesperado, um homem que, n'este momento, nem ouve Deus.

O padre olhou inquieto para traz de si e para os lados, como quem
procurava uma saída para caso de necessidade, pois dizia-lhe a razão que
um homem que não ouve Deus não estaria muito disposto a escutal-o, a
elle, humilde creatura.

--Sabe o que lhe quero? Perguntar-lhe por a alegria e por a saude de
minha filha; perguntar-lhe por o amor d'ella, que me roubou;
perguntar-lhe a que demonio offereceu os cabellos d'aquella creança sem
culpa nem maldade; perguntar-lhe com que veneno lhe envenenou o coração,
e depois... depois matal-o.

O padre enfiou; ia a abrir a bôca para falar, mas viu caminhar para elle
o Cancella, viu no ar aquella mão musculosa e larga, e, calculando a
violencia do embate pelo volume do braço, julgou-se de antemão esmagado,
e só pôde encolher os hombros, fechar os olhos, contrahir comicamente as
feições, e suspender a respiração, aguardando n'esta postura o golpe,
que não podia evitar.

Este de facto não foi suave. A mão do Cancella caíu em parte sobre o
cabeção, em parte sobre o pescoço do padre, e com tal fôrça, que este
foi constrangido a ajoelhar.

--Anda, meu impostor do inferno!

E uma forte sacudidela o impelliu para deante e restituiu de novo á
primeira posição. O chapéo rolou a alguns passos de distancia.

--Anda, meu envenenador de almas!

Nova sacudidela seguida de iguaes resultados; e os oculos seguiram o
caminho do chapéo.

--Anda, meu calumniador de Deus!

E d'esta vez o Cancella principiou por collocar o padre em pé, e após,
dando-lhe um forte impulso e soltando-o das mãos, deixou-o ir á mercê da
fôrça transmittida.

O padre estendeu os braços instinctivamente para se amparar na quéda
provavel, e, pé aqui, pé acolá, a passos descommunaes, escapou
miraculosamente de cair, porém não conseguiu parar senão a muitos metros
de distancia.

Escusado é dizer que esta scena não correu entre o silencio dos
espectadores. Mal o Cancella levantou a mão sobre a cabeça do padre, as
beatas ergueram um alarido de atroar céo e terra.

--Aqui d'El-rei!

--Aqui d'El-rei sobre o Herodes!

--Aqui d'El-rei, que matam o sr. fr. José!

--Quem acode ao sr. fr. José?!

--Ai, que matam o santinho do missionario!

E estas e outras vozes pipilavam, uivavam e chiavam aquellas esganiçadas
mulheres, sem que o zelo religioso as decidisse, porém, a intervir mais
activamente.

A celeuma attrahiu gente, e, no numero, alguns cabos de policia, que, em
cumprimento de seus deveres, se acercaram do Herodes, mas com respeito.

Este, porém, não oppoz resistencia.

Tinha-lhe passado a furia e voltou-lhe o desalento.

Assim deixou-se levar em prisão, acompanhado das imprecações das beatas
e dos gritos de indignação dos homens.

As devotas mulheres correram para o missionario.

Umas levavam-lhe o chapéo, outras os oculos, outras o capote.

--Magoou-se, sr. fr. José?

--Doe-lhe alguma coisa?

--Feriu-se?

Mas o padre não se demorou a informal-as. Limitou-se a abanar com a
cabeça negativamente e deitou a correr, como se visse atraz de si ainda
a mão espalmada do Cancella, prompta a cair-lhe outra vez sobre a
cabeça.

Quando o Cancella chegou a casa do regedor, já a multidão engrossára e
em altos gritos pedia o castigo do criminoso.

O regedor tinha a precisa finura para saber condescender com a multidão.
In continenti, redigiu um officio ao administrador, no qual foi tão
feliz que escreveu tres palavras com boa orthographia; e, falando ás
turbas, disse que estavam dadas as providencias, e que o crime havia de
ser punido com todo o rigor das leis.

 


XXI


O acto violento do Cancella, contra a pessoa do missionario, foi
assumpto das conversações geraes de toda a aldeia. Era com indignação
que se commentava a façanha. Dizia-se que o Cancella fôra apenas o
instrumento de que se servira a gente do Mosteiro para se vingar do
padre, pela occorrencia da tarde do sermão.

Os adversarios do conselheiro aproveitaram o ensejo que se lhes
offerecia para lhe alienarem sympathias e tentarem um cheque, pelo qual
havia muito suspiravam.

O missionario e os seus ardentes sequazes fôram dos mais acerbos
propugnadores d'estas ideias, que reforçavam com muitas accusações, de
hereticos e de impios, contra todos os membros da familia do
conselheiro.

A politica viu n'isto uma arma favoravel para combater o adversario, e
não a desprezou; depois, veio a portaria a respeito do cemiterio,
manifestamente devida á iniciativa do pae de Magdalena, e
impopularissima na aldeia, augmentar a irritação dos animos e servir de
thema a uma violenta diatribe do missionario contra a impiedade da
época, que nem aos fieis concedia a santa consolação de repousar á
sombra dos templos.

Tudo isto começou pois a fomentar uma reacção contra o conselheiro, a
qual ameaçava o resultado da sua candidatura.

Não pequena parte n'esta guerra surda, que principiára a lavrar, tomava
o seu companheiro de infancia e particular amigo o brazileiro Seabra.

Nunca elle sentira entranhada no coração metade da bem-querença que
apparentemente ostentava para com o conselheiro: mas depois de uma
conferencia que tivera com mestre Pertunhas tornára-se mais manifesta a
sua hostilidade e menos observadora de etiquetas e rebuços.

Foi elle, por exemplo, quem teve o cuidado de lembrar que a familia do
conselheiro estava de posse de bens religiosos; circumstancia que o
missionario attendeu, clamando do pulpito contra os delapidadores dos
bens da Igreja.

Foi tambem o brazileiro quem trouxe á flor de agua os antigos excessos
demagogicos, que caracterisaram o principio de carreira politica do
conselheiro, e referira, com modos de horrorisado, a substancia dos
exaltados discursos que elle proferira nas camaras, advogando ideias
cuja só exposição ferira de pavor a imaginação dos povos.

Finalmente, até o principio dos trabalhos para as estradas, cujo
protrahido adiamento fôra até aquelle tempo um capitulo de accusação
contra o pae de Magdalena, servia agora de arma á opposição.

O brazileiro, em attenção a quem se adoptára o traçado que ia ser posto
em execução, era o que provava á saciedade com grande exhibição de
cifras e de razões economicas, ser esse traçado, sobre dispendioso,
irracional.

E cumpre advertir que estes argumentos ouvira-os elle ao proprio
conselheiro, quando este os allegava para vêr se conseguia demovel-o do
empenho que mostrava em que o traçado em questão fôsse preferido aos
outros. Tal era o estado das coisas publicas na terra no dia em que
principiaram os primeiros trabalhos de campo.

Tinham-se passado alguns dias depois da prisão do Herodes.

A aldeia vira-se invadida por um bando de sêres desconhecidos, que
vieram alterar a perenne serenidade de animo de uma população habituada
a considerar como occorrencias de maximo interesse a reforma dos muros
ou das cancellas de qualquer proprietario da localidade.

A cohorte de engenheiros, conductores, apontadores, cantoneiros e mais
operarios vinha, com seus habitos e costumes novos, fazer tantas ou
maiores mudanças na vida moral da aldeia do que nas condições physicas
d'ella as bandeirolas, os niveladores, as enxadas, as pás, alviões,
picaretas, carros de mão e padiolas, de que era armada essa cohorte.

Por isso corria uma verdadeira romagem para o logar onde com a maior
actividade tinham começado os trabalhos. Era como já dissemos, na casa
do herbanario. Pela demolição d'ella, e do quintal que a rodeava,
principiaram as obras.

O velho Vicente assignára dias antes o auto de expropriação e recebera o
preço da venda, estipulado, o qual, por influencia do conselheiro, não
lhe foi muito regateado.

Elle, porém, o desconsolado velho, recebeu-o comovido. Por as arvores
nada quiz; não podia resignar-se a vendel-as. Podia vêl-as cair, como
amigos sacrificados no cadafalso, mas mercadejar-lhes com os restos,
isso não.

O desinteresse e o escrupulo do herbanario serviu á Fazenda Nacional de
compensação ao excessivo preço por que fôram expropriados os bens de que
o brazileiro se apossára, com o patriotico intuito de promover os seus
melhoramentos particulares, preço que por empenho do conselheiro não foi
litigado.

Ao principiarem os trabalhos, alguns grupos populares tentaram resistir,
mas refrearam-se, em parte pelo respeito devido á cohorte de operarios
melhor armados do que elles, em parte cedendo ás imperiosas ordens do
herbanario, que, ao sair pela ultima vez da casa, onde envelhecera, lhes
disse, com voz irritada e severa:

--Quem lhes pediu que defendessem estas arvores? Que amor lhes tendes
vós, para vos amotinardes por causa d'ellas? Para traz!

Os instigadores das massas conheceram que não era aquella a occasião nem
aquelle o pretexto proprio para os seus projectos, e adiaram, em vista
d'isso, a empresa prudentemente.

Era ao fim da tarde de um dia ennevoado e frio, de um d'esses dias em
que os animos mais fortes se deixam dominar de uma melancolia profunda.

Na baixa em que ficava a habitação do herbanario, ia uma azafama
extraordinaria.

O machado demolidor e a alavanca principiaram a sua obra de destruição;
desconjuntavam-se as pedras dos muros, desfazia-se em pó a argamassa
secular, caíam a golpes de machado as vigas dos tectos e os troncos das
arvores, alastrava-se de tijolo e caliça a verdura dos taboleiros, e
cêdo, de toda aquella vivenda tão amena e virente, só restavam ruinas.

Numerosos grupos de já pacificados espectadores seguiam com curiosidade
as operações de devastação; mas, longe d'alli, a maior distancia do que
os indifferentes, assistiam ao espectaculo os unicos olhos que elle
orvalhava de lagrimas, o unico coração que elle devéras apertava de dor.

O herbanario foi sentar-se na encosta de um outeiro vizinho, d'onde se
divisava toda a scena. Com a cabeça pousada na mão e o braço apoiado
sobre o joelho, com voz commovida, dizia adeus a cada arvore, que d'alli
via vacillar e cair, como se fôsse um amigo que o precedesse no tumulo.
Parecia ter fugido para longe, para pelo menos não lhes ouvir o estertor
da agonia.

Ao lado do velho estava Augusto.

Não era tambem sem tristeza que elle seguia os progressos da demolição.

Mais do que uma vez tentára arrancar o herbanario d'aquelle sitio. O
velho, porém, resistiu; queria estar alli até vêr cair a ultima arvore.

Ao pinheiral d'onde assistia á scena, chegava em confusão o alarido dos
trabalhadores, o rumor do manobrar dos instrumentos, e até o da quéda
das arvores cortadas.

O herbanario sempre que via brilhar o machado sobre uma nova arvore,
recordava sentidamente algum episodio do seu passado, a que ella estava
ligada.

--Lá vae aquella faia!--dizia elle, com intensa melancolia--pobre velha!
Era á tua sombra que meu pae me ensinava a ler! Encostava-se áquelle
tronco sobre a grossa raiz que elle tem á flor da terra e pegando em mim
ao collo, guiava-me nas primeiras lições! E viver eu para te vêr cair!

E, ao perceber-lhe balançar as sumidades, o velho fechou os olhos
instinctivamente. Cêdo ouviu um estrondo... Quando os abriu, estava por
terra a faia.

--Agora é a tua vez, pobre carvalho!--dizia algum tempo depois--muito
queria minha mãe áquella arvore! Por suas mãos a plantou bem tenra.
Nunca me sentei áquella sombra, que me não lembrasse da santa mulher!
Parecia que eram vozes tuas, que m'a recordavam, infeliz! Barbaros! Olha
com que desamor a decepam! Perdôa-me, meu velho amigo, mas bem vês que
te não posso valer.

E o carvalho caíu.

--Eil-os agora comtigo, cerdeira. Mal adivinhavas tu, quando o anno
passado te enfeitavas com aquellas cerejas escarlates, que tanto
cubiçavam as creanças, que pela ultima vez o fazias!... Adeus, pobre
amiga, adeus.

E caía a cerdeira tambem.

E caíam, uma após outra, todas as arvores do quintal, os limoeiros, as
nogueiras, os salgueiros e toda a familia vegetal do velho Vicente, que
sentia ir-se-lhe com ella a alma. Memorias de infancia, sonhos de
juventude, e reminiscencias de velho, como aves invisiveis, occultas nas
copas d'aquellas arvores, surgiam agora, espavoridas e desnorteadas, a
procurar o refugio que não encontravam fóra dalli.

Por outro lado os delicados sentimentos do herbanario eram dolorosamente
feridos, ao desmoronarem-se as paredes d'aquella pequena casa, onde elle
envelhecêra e contava morrer, e ao patentear-se indiscretamente aos
olhos irreverentes e curiosos do povo aquelle recatado asylo.

A demolição proseguia com ardor e actividade. Em pouco tempo, só
restavam da casa os muros, meio derrocados; e, no quintal, a serra e o
machado principiavam a exercer no tronco da ultima arvore a sua obra
destruidora. Era o castanheiro da entrada, gigante de outro seculo, que
desafiára os raios de muitos invernos successivos.

A exaltação do herbanario cresceu n'aquelle momento. Ergueu-se, pallido
e trémulo, apoiou-se no hombro de Augusto, murmurando:

--Tambem o castanheiro! Já era arvore quando eu nasci! Como elles se
encarniçam contra elle! Mas não te parece, Augusto, que não soffre muito
o castanheiro?... Sabes? É que elle já não agradeceria a vida, porque
tinha de viver assim desamparado dos seus outros companheiros, que vê
caídos no chão... Tarda-lhe talvez o deitar-se ao lado d'elles... É como
eu.

O castanheiro principiou a oscillar.

--Repara--disse o herbanario, cada vez em tom mais baixo, e apertando o
braço de Augusto.--Elle já treme! Não vês!... Lá lhe deitam a corda...
Vae cair!... Parece-me que estou a sentir aquelle estalar de fibras...

E a arvore caíu com fragor no chão, que por tanto tempo cobrira de
sombras.

Estava ultimada a obra.

O herbanario encostou a cabeça ao hombro de Augusto e rompeu em soluços.

--Então, tio Vicente, tenha animo--dizia-lhe Augusto, igualmente
commovido.

--Se tu soubesses, Augusto, o que eu estou sentindo! Olhar para acolá e
não ver em pé uma só das arvores que eu conheci em pequeno! Parece-me um
sonho isto, um sonho de afflicção! Sinto-me tão só no mundo! Ai! se a
morte me ferisse agora!

A dor, a saudade e o desalento davam uma uncção de poesia elegiaca á
figura, ao gesto e ás palavras do velho, que desvanecia tudo o que
n'elle pudésse haver, nas situações ordinarias da vida, capaz de
desafiar um sorriso nos labios de quem o observasse friamente.

Conceda-se uma lagrima a estas obscuras victimas dos progressos
materiaes, lagrima que não importa uma ironia á civilisação. Exalte-se
embora a rapida carreira da locomotiva, que atravessa, como meteoro, as
povoações e os êrmos; mas não seja isso motivo para condemnar a
compaixão pela violeta dos campos, que as rodas deixaram esmagada á
beira do carril. Inda quando um vencedor tem um papel providencial a
cumprir, e o seu triumpho seja uma obra de redempção, o vencido, desde
que cáe, tem direito a um olhar compassivo, a uma lagrima de saudade.
Não tenteis a louca empresa de anniquilar o sentimento, espiritos áridos
que infundadamente o temeis, como coisa desconhecida á vossa alma sêcca
e esteril. Quem devéras confia nos destinos da humanidade não tem mêdo
das lagrimas. Pode-se triumphar com ellas nos olhos.

Passado algum tempo, e quando já as sombras da noite se condensavam nos
valles e subiam lentamente as encostas dos outeiros, o velho disse para
Augusto:

--Agora que não tenho casa, dá-me por alguns dias o abrigo da tua.

--Por alguns dias?--repetiu Augusto, admirado.--Pois quer deixar-me
depois!

--Quero. Vou com ellas.

E apontou, ao dizer isto, para as arvores derrubadas.

Atravessaram a aldeia á hora a que vibravam nos ares os sons
melancolicos das Avé-Marias.

Em silencio chegaram a casa de Augusto, agora commum para os dois.

--Mettes em tua casa um triste hospede, pobre rapaz!--disse o
herbanario, ao transpor o limiar.--Má companhia te fará a minha velhice.

--Boa companhia me faz sempre a sua amizade, tio Vicente. Nem a sua
presença podia desalentar quem na mocidade é mais fraco e desalentado do
que ninguem o pode ser na velhice.

--Custou-me muito este golpe de hoje! Não contava com elle! Desde hontem
envelheci muitos annos. Podes crêl-o.

Quando Augusto ia a replicar, interrompeu-o uma voz que dizia de fóra da
porta:

--Dão licença?

E no limiar appareceu a figura do mestre Pertunhas, animada de cordiaes
sorrisos.

O herbanario e Augusto não reprimiram um gesto de impaciencia.

O homem entrou.

--Ora Deus seja aqui! Tão grande é o dia como a romaria, sr. Augusto!
Ainda ninguem o viu hoje!... Disseram-me que tinha ido de manhã para
casa do tio Vicente; vou lá... estava um mundo de gente no sitio... Mas
qual sr. Augusto, nem tio Vicente! Então com que escorraçaram-n'o do seu
ninho?... Pobre homem! A falar verdade, n'essa idade! Já sei que vem
para casa do nosso Augusto. Hontem vi para ahi entrar os fardeis. Ainda
bem que o temos por vizinho... Faremos boa camaradagem... Olhe que
tambem fizeram-n'a fresca com o tal projecto de estrada! Uma coisa
assim!... Coisas cá do sr. conselheiro! Vae-se fundir um dinheirão na
tal estrada! E já por ahi se rosnam coisas! Emfim, politicos! politicos!
Todos são os mesmos... Vae por ahi uma poeira dos meus peccados com a
ordem a respeito do cemiterio; e com a historia do Herodes! Sabem que
elle esteve hontem para matar o missionario?... E valha a verdade, dizem
que por ordem de alguem do Mosteiro... Que eu não acredito, mas emfim,
aquella historia no sermão do outro dia... E o tal sr. Henrique, que é
unha e carne com elles... Elle será muito boa pessoa, mas não me
calha... Lá feliz, isso como não sei de outro, com dinheiro e sem
cuidados! E sempre se faz o casamento d'elle com a morgadinha?... Ouvi
dizer que sim.

O herbanario levantou os olhos para fitar Augusto; a apparente
impassibilidade d'este não illudiu o velho.

O Pertunhas não se exgotára ainda:

--Ora agora, quem anda fulo é o brazileiro, o Seabra. Pelos modos, eu
não sei o que ahi houve; o conselheiro não o tratou muito bem, dizem,
n'uma carta que escreveu ao ministro, ou creatura do ministro. Umas
historias muito complicadas, que eu não entendo, mas que promettem dar
de si... Veremos em que ficam as eleições este anno... O conselheiro bem
pode trabalhar, senão... Elle cuidava que era só apresentar-se, e
emquanto a fazer vontades... Que me dizem do sr. Joãozinho das Perdizes?
Será fiel esse? Já me disseram tambem que...

--Ó sr. Pertunhas,--atalhou o herbanario, enfastiado--antes queremos não
saber. Importa-nos pouco a politica.

--Estão como eu... Isto tambem não é politica, mas emfim... Pelo que
vejo estão cançados? Eu tambem não os maço mais... E antes que me
esqueça, ha muitas horas que estou de posse de uma carta para vossemecê,
tio Vicente. É de Lisboa, veio por o correio de hoje. Não lh'a mandei a
casa, porque... não sabia o que era feito d'ella. Eh, eh, eh... Mas como
o vi passar, conjecturei que viria para aqui, e por isso...

O herbanario recebeu a carta, que o mestre Pertunhas lhe deu, e olhando
para o sobrescripto, disse com indifferença:

--É do Manoel.

E abriu-a lentamente.

O mestre de latim deixou-se ficar, na esperança de ouvir novidades.

A meio da leitura o herbanario ergueu-se com impeto e exclamou, cheio de
indignação e de colera:

--Mentiu-me como um vil! Mentiu-me aquelle homem sem dignidade nem
sentimentos! Aquelle homem importa-se menos com a felicidade dos amigos,
com a justiça das causas e com a voz da propria consciencia, do que com
os caprichos e interesses dos poderosos com quem vive!

--Mas que é?--perguntou Augusto, sem atinar com a significação
d'aquellas palavras.

--Lê.

E passou a carta para as mãos de Augusto.

O conselheiro participava n'esta carta ao herbanario que se vira
obrigado a ceder, na questão do despacho de Augusto, a fortes
influencias que se empenhavam n'isto muito mais do que elle julgava; que
mais tarde lhe explicaria tudo. Quanto a Augusto, accrescentava elle,
talvez fôsse isto até uma vantagem; que o logar que pedia era a sua
annullação perpetua, e que elle, conselheiro, havia de luctar contra a
grande modestia do rapaz, trazendo-lhe á luz os merecimentos reaes,
dando-lhe melhor collocação, e que esperava ainda empregal-o na capital.

Era uma carta toda de homem politico, que tudo espera da diplomacia.

Ao acabar de ler, Augusto disse, com um sorriso amargo nos labios:

--Eu sou pouco ambicioso; contento-me com morrer aqui.

--A mim me deu elle, ao partir, a sua palavra de que te faria despachar,
e breve; e quebrou-a como um pêrro! Oh! o que fizeram d'aquelle homem!

--Quê?! Pois é possivel?--perguntou, exaggerando a sua consternação e
espanto, o officioso Pertunhas.--É possível que o sr. Augusto não fôsse
despachado?!

E dizendo isto, passou a desfiar uma série de consolações, qual d'ellas
mais tôla e sem cabimento.

Até que emfim, tendo já novidades para contar, e almejando communical-as
aos frequentadores da taberna do Canada, onde devia estar reunida grande
e luzida assembleia, o Pertunhas saiu, a pretexto de não ser mais tempo
incómmodo, e deixou-os outra vez sós.

--Estão-me guardados para o fim da vida todos os desenganos! todas as
amarguras! todos os desesperos!...--disse o herbanario momentos
depois.--É para se odiar o mundo e os homens vêr um, que conhecemos
generoso e innocente, contaminado tambem!... Pobre Augusto! Não basta
que sejam modestos os teus desejos... nem assim t'os deixam realisar.

Guardados alguns momentos de silencio, continuou, com amargo sarcasmo:

--Por que te não fazes politico? Por que não vaes tambem para a taberna
do Canada dizer tolices sobre a governança do paiz? Talvez levasses
comtigo alguns tôlos, e tinhas n'isso uma recommendação poderosa. Olha
para aquelle basbaque do morgado das Perdizes... ahi tens um
influente... Imita-o... Mas dize: o que tencionas fazer?

--Ficar--respondeu Augusto, com firmeza.

O herbanario fixou-o com um olhar penetrante.

--Ainda?... Mas... não te vae ser suave agora a vida, rapaz. Para se
viver não basta uma... uma loucura. Repara bem. Se quizeres... O Manoel
é leviano, mas creio que ainda não perverso; eu lhe escreverei... talvez
que em Lisboa...

--Não lhe escreva. Sabe que não partiria para Lisboa...

--Mas... repara!... Estás muito novo, Augusto... Tens um longo futuro
deante de ti. E, ficando, o que te espera?...

--A morte que fôsse, a morte de miseria e de fome, ficava. Mas resta-me
ainda o trabalho. Tenho coragem para acceital-o.

O herbanario baixou a cabeça, pensativo.

Soaram n'isto á porta da sala duas pancadas lentas.

O herbanario fez um gesto de enfado.

--Não abras sem eu sair,--disse elle a Augusto, que se erguera--não
estou de animo para aturar importunos.

E passou para uma sala contigua.

Augusto foi abrir ao novo visitante.

Achou-se na presença do brazileiro Seabra.

A grave personagem entrou pausada e sisuda, como homem que sabe fazer
valer a honra que dispensa, visitando um rapaz sem dinheiro.

Augusto offereceu-lhe cadeira para se sentar, sem inquirir do motivo de
tão inesperada visita. O brazileiro sentou-se e principiou:

--Acabo agora mesmo de saber da injustiça que lhe fizeram. Senti-a como
se fôra propria, e venho aqui declarar-lh'o.

Augusto curvou-se, em signal de agradecimento.

--Mas então que quer?--proseguiu o homem.--Hoje em dia é tudo assim.
Padrinhos e mais padrinhos, e o mais são historias. Estamos n'uma época
de corrupção e de immoralidades, e ninguem sabe onde isto irá parar.

Augusto ouviu em silencio os threnos do capitalista, que proseguiu:

--Tôlo é quem não faz como os mais. O mundo está para os velhacos.

Parou, assoou-se, tossiu, e puxando a cadeira para mais perto da de
Augusto, continuou, em tom differente e mais baixo:

--Quando um homem tem uma gotta de sangue nas veias não pode receber as
offensas e ficar-se com ellas assim. O perdão evangelico é muito bonito,
mas não é para homens. Não lhe parece? Eu por mim não gósto de genios de
lama. Falemos como amigos. Nós ambos somos victimas de um mesmo homem. O
sr. Augusto foi enganado e escarnecido por o conselheiro, que se
apregoava seu protector. Ahi temos a protecção que elle lhe deu. Eu
tambem lhe devo finezas.

--V. s.^a?--perguntou Augusto, que não podia saber o que lhe queria no
fim de tudo o brazileiro.

--Eu, sim, senhor. Eu lhe digo como isto foi.

E o brazileiro, puxando a cadeira, approximou-se mais de Augusto, e deu
principio á exposição dos seus aggravos:

--O conselheiro, que joga em politica com pau de dois bicos, andou-me a
causticar, para que eu acceitasse um titulo qualquer... Queria fazer-me
visconde por fôrça. Coisas de que eu me estou rindo... Mas... emfim,
para me livrar d'aquelle importuno, disse-lhe que... fizesse lá o que
quizesse... Pois, senhores, não teve o petulante o atrevimento de
escrever ao ministro, com quem, apesar de se dizer da opposição, mantem
aturada correspondencia; não teve a audacia de lhe dizer que eu andava
sonhando com viscondados, e que a minha mania era attendivel, pois
promettia ser uma fonte de melhoramentos locaes muito baratos ao Estado,
visto que com tão pouco me contentava, e outras coisas n'este gôsto? O
petulante!...

Augusto, apesar dos pensamentos pouco alegres que o preoccupavam,
luctava para se conservar sério perante aquella indignação do sr.
Seabra.

--Mas tem a certeza d'isso?--perguntou elle.--Ás vezes são calumnias...

--Eu vi a carta do ministro em resposta a esta; do ministro não, mas do
secretario, que é o mesmo... Um acaso fez com que ella me chegasse á
mão... O ministro fazia-me o favor de me conceder o titulo; mas era de
parecer que, por cautela, se tirasse antes de mim tudo quanto eu pudésse
dar, porque... porque... por umas tolices de que eu me lembrei a
tempo... Ora ahi tem como elles são!... Que venham para cá com os seus
melhoramentos... Eu lh'as cantarei; prometto-lhes que se hão de
arrepender.

--Mas... talvez haja equivoco.

--Equivoco? Ora essa! Pois eu não li a carta? Ella ha de apparecer em
publico; oh! se ha de! Isto é, não a parte que me diz respeito,
porque... porque emfim são negocios particulares, que não interessam a
terceiros; mas umas ultimas linhas d'ella, umas promessas do ministro,
que põem a calva á mostra a este Catão, que nos anda aqui a prégar
liberdade e independencia! Isso ha de apparecer, e ha de ser lido com
muita vontade.

--Acaso tenciona?...

--Se tenciono?! Pudéra não! Eu lhe afianço que o homem ha de saber com
quem se metteu. Deixe vir as eleições, deixe-as vir. Já ha de achar o
caldo azedado, quando quizer comel-o; isso lhe prometto eu... A lição ha
de leval-a breve.

--Vão guerrear a eleição do conselheiro?

--Faço essa tenção.

--E quem lhe oppõem?

--O candidato que a auctoridade propuzer; um individuo de Lisboa.

--Que nem o circulo conhece?

--Que importa? É uma lição. Aqui não ha politica nem meia politica. Eu
não morro pelo governo, porque eu tambem fui offendido pelo ministro.
Mas é preciso aproveitar tudo. E assim temos por nós a auctoridade, além
dos padres.

Augusto não se sentia com disposições para discutir esta questão
politica; por isso nada mais lhe replicou.

O Seabra proseguiu:

--O que eu quero saber é se o amigo quer entrar na nossa alliança e
acceita uma proposta que eu lhe vou fazer. A vingança é o prazer dos
deuses, e visto que foi tambem offendido...

--Não, senhor, não acceito--acudiu com vivacidade Augusto.

--Escute. Deixe-me concluir. Não sabe do que falo. Pouco se exige. A
coisa é esta: na carta a que me referi, e que por acaso me chegou ás
mãos, fala-se n'uma outra, ou em outras anteriores, em que se tratava,
mais por miudo, de uma curiosa transacção politica que n'esta se revela
claro. O conselheiro é pouco acautelado; haja vista ao extravio d'esta,
e por isso...

Augusto olhava admirado para o brazileiro, como se não pudésse
comprehender onde elle queria chegar.

O Seabra proseguiu:

--Ora, a mim lembrou-me... como o senhor vae muito pelo Mosteiro... sim,
porque julgo que continúa a ensinar os pequenos, e, já se sabe... como
mestre, entrando a qualquer hora no mais intimo da casa, sim... demais
como a D. Victoria é... um tanto descuidada, como todos nós sabemos...
Não sei se me percebe?... Dizia eu... sim, que se ás vezes, por acaso,
encontrasse coisa que valesse...

Augusto levantou-se, indignado.

--Sr. Seabra!--exclamou, cheio de cólera.

--Valha-me Deus, eu não quero dizer... Não me entendeu... Bem vê que se
o senhor devesse obrigações ao conselheiro, eu não ousava... Mas...

--Obsequeia-me muito, sr. Seabra, se não insistir...

--Entendamo-nos. O senhor está no principio da vida. Precisa do auxilio
de alguem. Offerece-se-lhe occasião para fazer serviços ao governo, que
é finalmente quem pode pagal-os; e que se lhe pede para isso? Quasi
nada... O senhor sabe perfeitamente que se não trata aqui de desgraçar
ninguem, de levar ninguem á forca.

--Visto que v. s.^a insiste, sou obrigado a retirar-me.

--Espere, sr. Augusto--acudiu o brazileiro, segurando-o.--Repare no que
faz. Não seja precipitado. Eu estou prompto a fazer alguns sacrificios,
se vir que nas suas circumstancias...

--Visto que v. s.^a não se cala, nem quer que eu me retire, ouça então o
que tenho para lhe dizer. A sua proposta seria para mim o maior dos
insultos, se não fôsse tal a baixeza d'ella, que até despe de toda a
imputação a pessoa que a faz. Os homens, faltos de sentimentos de honra,
não offendem, quando insultam; não se lhes pode pedir razão da infamia,
porque não a conhecem como tal; identificaram-se com ella. Por isso, só
me resta um partido, é convidal-o a sair.

O brazileiro fôra erguendo-se á medida que Augusto falava. Estava
espantado por vêr que um rapaz, sem um vintem de seu, ousasse falar com
tal irreverencia a um homem que tinha dinheiro e crédito em tantos
bancos! A ordem do mundo estava perturbada!

--Ora esta!--disse elle no fim.--Então o senhor ordena-me?...

--Que saia!--respondeu Augusto, indicando-lhe a porta.

O brazileiro estava pasmado. Olhou para Augusto como se duvidasse do que
ouvia; deu dois passos para a porta e tornou a olhar, seguiu outra vez,
e, no limiar, parou para dizer:

--Veja lá o que faz! Eu só lhe digo que me não convem dar a minhas
filhas um mestre de soberbas.

--Decerto que lhe não poderá convir a educação que eu désse a suas
filhas; é natural não querer educar consciencias que sejam juizes da sua
corrupção. Deixe-as ignorantes, para não ser castigado pelo desprezo
d'ellas.

--Quer então dizer...

--Que lhe desejo muito boas noites, sr. Seabra.

O brazileiro saiu, bufando.

Augusto, que ficára só, sentiu-se apertar nos braços de alguem que
entrou, sem elle sentir.

Era o herbanario.

--É assim, é assim que te vingas de todos, rapaz! Esmaga-m'os com a tua
nobreza!

Augusto sorriu-se tristemente.

--O peor é, meu amigo--disse elle--que é a segunda subtracção que hoje
se opéra no meu orçamento, e... a nobreza não nutre!

--Mas consola!--replicou o velho.

 


XXII


Dias depois das scenas descriptas no anterior capitulo, estava a
morgadinha occupada a escrever n'uma das salas do Mosteiro, quando ouviu
atraz de si correr o reposteiro da entrada.

Julgando que era algum criado, nem se voltou e proseguiu na escripta.

--Retiro-me, se sou importuno--disse a pessoa que entrára, e que ficára
no limiar da porta.

Magdalena voltou-se então e reconheceu Henrique de Souzellas.

--Ah! é o primo Henrique? Pode entrar.

--Eu sei? Ha correspondencias tão delicadas, que demandam a applicação
de todas as nossas faculdades, e a presença de um importuno...

--Mas não se dá agora esse caso; nem quanto á delicadeza da
correspondencia, nem quanto á importunidade do visitante.

--Então utiliso-me da concessão.

--Occupava-me a escrever áquelle pobre Cancella, para o tranquillisar em
relação á filha. Pobre homem! Ainda se lhe não pôde obter fiança, apesar
de meu pae tratar d'isso, a pedido meu. Ha quem trabalhe contra elle. E
como ha de ter padecido na cadeia na incerteza em que está? Quem ha de
dizer que n'aquelle corpo, robusto e forte, se aloja uma alma de tão
delicados sentimentos? Inda lhe hei de mostrar a carta que elle escreve
a pedir-me que trouxesse para o Mosteiro a filha, e a tirasse de casa da
madrinha, que com o seu fanatismo a perdeu... É um modelo para seguir.

--E como vae a pequena?

--Mal. Estou aqui a mentir, fazendo conceber áquelle pobre homem
esperanças, que eu mesma não tenho.

--Que disse o cirurgião?

--Nada animador.

--Como capitulou a molestia?

--Não sei quê de cerebro; nem eu quiz saber. Nunca pude comprehender a
necessidade que tem certa gente de conhecer a natureza da doença que
lhes ameaça roubar uma pessoa querida. Perdel-a ou salval-a, é a questão
que me interessa. Tudo o mais me é indifferente. N'uma pessoa doente
vejo um espirito que hesita entre deixar-me e permanecer. Aos medicos
peço que removam, se podem, aquillo que o faz partir, mas não quero
saber o que é. Julgo natural ao sentimento o considerar assim a molestia
e a morte.

--Á maneira da arte, ainda que hoje o diagnostico entrou na litteratura,
prima. Mas a proposito do Herodes; deixe-me dizer-lhe que está sendo
muito commentada na aldeia a violencia d'elle contra o missionario. É
voz constante que fizera aquillo por influencia nossa, e as honras
d'aquella bem empregada sóva são-nos tambem concedidas inteiras. Imagine
o clamor que por ahi vae!

--Deixe clamar--respondeu Magdalena, encolhendo os hombros.

--Deixo, deixo. Eu sou odiado como um Lucifer, feito homem; seguem-me,
quando eu passo, uns olhos rancorosos, e adivinho que na ausencia não
sou muito bem tratado.

--É bom acautelar-se. Não os irrite. Viu que não era prudente.

--Não receie. Esta gente a final é cobarde.

--Tanto peor. O inimigo cobarde é mais para temer. Bem sabe. Foi uma
desastrada ideia aquella da nossa ida ao sermão do missionario.

--Parece-lhe? Eu não estou arrependido. Bastava-me, como recompensa, o
ter presenciado o accesso de furor rabico do homem.

--Vamos, primo Henrique; confessemos que a situação não foi das mais
agradaveis.

--Sinto-a, principalmente por o incómmodo que tiveram as senhoras e
talvez por esse episodio dar vigor á opposição, que alguem por ahi se
interessa em organisar contra o sr. conselheiro.

--Ah! pois trata-se d'isso?

--Se se trata?! E muito sériamente. A portaria a respeito do cemiterio,
a historia do sermão, e agora o episodio do Cancella, teem feito um
grande mal.

--Oh! se meu pae perdia!...

--Não entendo essa exclamação, prima Magdalena. Ia jurar que era a
expressão de um desejo.

--E por que não? Se isso fôsse motivo para meu pae abandonar de uma vez
para sempre a politica, pedil-o-hia a Deus.

--Conhece pouco ainda o coração humano, prima. Seu pae está votado á
politica para toda a vida. Desengane-se. E se o prendesse n'esta aldeia,
aqui mesmo faria a mais deploravel, impertinente e inutil de todas as
politicas, a politica local.

A morgadinha suspirou, como se reconhecesse a verdade que Henrique
dizia.

Henrique proseguiu:

--Está organisado um club opposicionista na taberna de um tal Canada. O
brazileiro capitaneia a phalange, os padres são os tribunos e a
propaganda estende-se assustadoramente. É preciso olhar por isto e
sobretudo não perder de vista o sr. Joãozinho das Perdizes, cujo voto
seu pae tinha em grande conta, porque representa o de uma freguezia
inteira. É de suppor que o requestem muito e... o homem é fragil. Já vê,
prima, que eu tomo muito a sério os preceitos hygienicos, que me deu o
meu medico, quando parti de Lisboa, e que a prima approvou. Estou a
interessar-me pelas questões locaes, como se aqui estivesse, ha annos.

--E é um bom indicio de cura, pode crer.

--E ainda tem empenho de me curar?

--Empenho, todo; esperança é que menos.

--Ó meu Deus! que sinceridade de medico tão cruel! Seja; escutarei a
sentença com coragem. Diga-me o que pensa de mim. Ha muito que não
falamos n'isto. A ultima vez que o fizemos, um tanto categoricamente,
foi n'uma occasião bem critica. Julgo que o meu procedimento de então
até hoje lhe terá feito conceber do meu caracter um não muito
desfavoravel conceito. Bem vê que não abusei...

--De quê?--perguntou Magdalena, contrahindo a fronte, n'um gesto de
altivez.--É certo que tem em todo esse tempo dado provas de discreção,
no que se mostrou mais contricto que generoso. Pelo menos é assim que eu
interpretei o seu silencio, e approvo-o em vez de agradecel-o.

--Seja contricção, visto que assim o quer. Mas não lhe merecerá ella
alguma misericordia para com o peccádor?

--Escute. Sinto sincera misericordia de si, pode acredital-o. Ella só me
obriga a perdoar-lhe algumas impertinencias, nem sempre demasiado
delicadas, com que me mortifica.

--Está sendo tão amavel!...

--Perdôe, mas a sinceridade tem d'estas exigencias.

--Curvo-me perante as exigencias da sinceridade. Continue, prima
Magdalena.

--Vae mais longe ainda a minha misericordia, porque apesar da rebeldia
do mal, inda não desisti de cural-o.

--Inda bem. E como? Ser-me-ha licito penetrar no segredo do tratamento?

--Ha já agora uma unica maneira de o salvar.

--E é?...

--Apaixonal-o.

--Ah! n'esse caso estou salvo!--exclamou Henrique, n'um impeto, que não
pôde passar sem um sorriso da morgadinha.

--Ouça. É preciso andar com tento na escolha do objecto d'essa paixão,
sob pena de aggravar o mal em vez de minoral-o.

--E como hei de escolher?

-De modo que lisonjeie a opinião que o primo tem de si proprio.

--A opinião que eu tenho de mim! Se pudésse ser mais clara...

--De boa vontade. O primo Henrique tem uma forte necessidade de
persuadir-se de que representa no mundo um grande papel, uma missão
heroica e generosa, quasi providencial. Exigencias de uma vaidade de boa
indole, que se lhe não pode levar a mal. Repugna-lhe a ideia da
inutilidade, da insignificancia da sua existencia. Não se resigna ao
papel de comparsa, ambiciona o de protector. Se o acaso, ou uma
inconsideração de momento, o associasse, por toda a vida, a um caracter
igualmente forte, que, em constante opposicão, pretendesse provar-lhe
que prescindia da sua protecção, grandes desgostos e amarguras o
esperavam no futuro. Uma indole branda, docil, fraca, um d'estes seres
nervosamente delicados, que tremem ao verem-se sós, cheios de poeticas
superstições, que tenha a dissipar; que se lhe apoie ao braço, como se
n'elle encontrasse a coragem que não sente em si, e que, ao mesmo tempo,
domine pela fraqueza e pela doçura, domine sem consciencia do imperio
que exerce e sem vaidade, portanto; um caracter d'estes é que deve
procurar para salvar-se; só d'elle pode esperar a realisação da vaga
ideia de felicidade, que todos concebem na vida.

--E se essa theoria engenhosa fôsse verdadeira, parece-lhe que poderia
encontrar á mão o tal anjo salvador, que precisa do meu braço para se
apoiar?

--Julgo que pode, e que já o teria encontrado, se pensasse sériamente
nas necessidades do seu coração.

Henrique ia a responder, quando entrou na sala um criado com as cartas
do correio.

--Trégoas á nossa conferencia, emquanto eu leio a carta de meu
pae--disse Magdalena, examinando a carta recebida.

--Concedidas, e eu aproveito-as para correr a vista pelos periodicos que
chegaram.

E emquanto Magdalena lia a carta, Henrique passava pelos olhos as folhas
de Lisboa.

Não tinham decorrido muitos instantes, quando a morgadinha interrompeu a
leitura, exclamando:

--Ó meu Deus! mas de que se trata? Que quer dizer isto?

Ao ouvir estas palavras, Henrique desviou para ella os olhos.

Viu-a agitada e lendo com vivacidade e commoção a carta do conselheiro.

--Ha alguma má nova?--perguntou Henrique, ferido por aquella expressão.

Antes, porém, de responder-lhe, a morgadinha seguiu com ardor a leitura
até o fim.

Henrique continuava a observal-a e cada vez mais evidentes descobria
n'ella os signaes de uma funda agitação. Ao findar a leitura, passou a
mão pela fronte como para desviar uma ideia amarga.

--Por amor de Deus, prima Magdalena, que diz essa carta, para assim a
perturbar?--perguntou Henrique, já assustado tambem.

--Não sei bem; não posso ainda dizer a que se refere meu pae; mas
sinto-me interiormente sobresaltada, como se o adivinhasse.

--Mas a final o que se diz ahi?

--Leia, e veja se, melhor do que eu, pode comprehender esse enigma, por
certo doloroso.

Henrique examinou a carta, que a morgadinha lhe passou para as mãos.

N'esta carta queixava-se o conselheiro á filha de ter sido victima de um
abuso de confiança commettido por alguem, que elle ainda não sabia dizer
quem fôsse. N'um periodico de Lisboa fôra publicada por aquelles dias
uma carta dirigida tempos antes ao conselheiro por não menor personagem
politica do que o secretario intimo do ministro.

O proprio conselheiro confessava ser esta carta demasiado
compromettedora, e assim tambem o demonstrava a excepcional irritação
que transparecia em todos os periodos, da que escrevêra á filha. O
periodico que, para fins politicos, fizera a publicação, havia occultado
os nomes, porém muitas circumstancias referidas tornavam inutil a
discreção; e em Lisboa ninguem hesitou em aprontar as personagens entre
quem se passara o facto. Durante uma das suas demoras na aldeia,
recebêra o conselheiro essa carta; alli, no seio da familia, a confiança
que depositava em quantos o rodeavam impediu-o de ser previdente, como
por hábito o era; facil foi portanto o extravio. O conselheiro dizia á
filha que era preciso descobrir o traidor, para evitar futuros abusos; e
por isso, que se lembrasse de que o alcance da carta não era para todos
comprehendel-o, e portanto não se limitasse a indagar entre os da baixa
classe. «A vingança, concluia o conselheiro, de uma maneira mysteriosa,
como de quem deseja e receia, ao mesmo tempo, fazer uma allusão--a
vingança, bem ou mal fundada, obriga ás vezes os mais nobres caracteres
a uma acção baixa e vil; entre os que por mim se possam julgar
offendidos, é natural encontrar o criminoso.»

--Esclareça-me este mysterio! disse Magdalena, consternada.--De que se
trata aqui?

--Alguma correspondencia politica extraviada. Seu pae diz bem; é
necessario descobrir o traidor por cautela. Além de que, para todos os
que, como eu, teem entrada n'esta casa, é isto um mysterio em que a
nossa honra está empenhada, porque v. ex.^{as} teem direito a alimentar
suspeitas.

-Por amor de Deus!--acudiu, interrompendo-o, a morgadinha.--Não
pronuncie essa palavra! Suspeitas! Esse envenenamento moral, que eu até
aqui não conheci, quer meu pae que voluntariamente o contraia.

--Seja envenenamento, muito embora, mas é um envenenamento salvador,
prima, como o da vaccina; é um preservativo de traição.

--Viver para desconfiar! procurar nas palavras que se ouvem um sentido
occulto! nos gestos uma expressão denunciadora! nos affectos uma
intenção egoista! Oh! isto é horrivel! Mas... que carta é essa, meu
Deus? Que correspondencia pode ter meu pae, que não deva vêr a luz do
dia? Meu pae!... Ha por fôrça illusão n'isto! Meu pae não tem crimes;
meu pae não tem acções que o envergonhem; meu pae pode franquear a todos
as portas da sua casa sem receiar-se de indiscreções. Pois não é assim?

--Por certo, prima; mas... na politica ha actos que... sem serem
criminosos...

--A politica! Sim, é isso! Eu devia prevêr que essa palavra viria para
explicar este mysterio! Por politica é-se cruel, por politica
sacrifica-se um amigo, por politica força-se a consciencia, e depois...
ella justifica tudo. Que obras são as obras politicas que precisam da
sombra e do mysterio para se fazerem? Pois para dirigir ou salvar uma
nação, pois para se tratar dos interesses de um povo, é sempre
necessario o disfarce, a dissimulação, o mysterio?

--Quando se não pode contar com a boa fé dos outros, perde sempre quem
fôr escrupulosamente fiel á sua.

--Mais valeria então abandonar por uma vez essa carreira cruel... Oh!
ainda agora reparo... Tem ahi as folhas de Lisboa... deixe-m'as vêr...
quero saber que carta é esta.

Henrique procurou dissuadil-a. Um numero avulso de um periodico, que não
costumava vir ao Mosteiro, havia-lhe já feito suspeitar que era esse o
que publicava a carta em questão. Não fazendo do conselheiro tão subido
e ideal conceito como a morgadinha, achava muito natural que
effectivamente o comprometesse a carta alludida. Conhecendo bastante
Magdalena, sabia quanto seria cruel para o seu extremoso coração de
filha, e para o seu caracter apaixonado por tudo quanto era idealmente
nobre, generoso e justo, o descobrir no pae uma d'essas máculas
frequentes na vida dos homens politicos, por minima e desvanecida que
fôsse. Por isso quiz evitar-lhe a leitura. Não o conseguiu, porém.
Magdalena, com aquella firmeza de resolução que energicamente se lhe
revelava na voz e no gesto, disse, estendendo a mão para receber os
periodicos:

--Deixe-me vêr, primo Henrique. Não é possivel que de meu pae se diga
ahi alguma coisa que não devam ler os olhos de uma filha.

E quasi arrebatou das mãos de Henrique a folha, justamente aquella de
que elle mais receiava.

E, abrindo-a, examinou-a com anciedade quasi febril.

Henrique observava com curiosidade os movimentos e a physionomia de
Magdalena.

Viu-a tornar-se de repente mais attenta á leitura; os olhos, que até
alli vagueavam por diversas secções do periodico, fixaram-se n'um ponto;
contrahiu-se-lhe a fronte; um ligeiro tremor correu-lhe os labios; córou
e empallideceu alternadamente; e no fim, afastando de si a folha com um
movimento nervoso e apaixonado, exclamou, sob o dominio de uma commoção
profunda:

--Ó meu Deus! E não ter um coração, como o d'elle, a fôrça precisa para
fugir d'estes enredos! Isto é de enlouquecer!...

Henrique pegou na folha, que ella arrojou de si com impeto, e
examinou-a.

Tinha conjecturado bem.

O caso devia consternar Magdalena, para quem o conselheiro era um homem
tão perfeito na vida politica e na vida social, como na vida de familia.
Para Henrique, em quem havia muito se inoculára o scepticismo da época,
impedindo-o de divinisar os homens, por mais rodeados de prestigios que
lhe apparecessem, não tinha o facto de que se tratava grande
significação nem gravidade. O caso era o seguinte:

Tempos antes havia-se agitado nas camaras uma importante questão
politica; uma d'estas questões que servem para estremar os campos e
descriminar os programmas dos partidos. Vacillar n'ellas é já trahir os
principios fundamentaes de uma causa, e abjurar um credo politico
inteiro. O pae de Magdalena, militando no partido de mais avançadas
ideias liberaes, tinha de antemão traçado por elle o caminho a seguir
n'esta conjunctura, o circulo, fóra do qual não poderia combater sem
apostasia; mas, como já atraz dissemos, o conselheiro não era já o homem
que fôra nos primeiros tempos da sua carreira publica; perdera a fé nas
utopias e nos principios abstractos, e trocava-os de barato por qualquer
pequena vantagem positiva que pudésse obter, se não para si, para a
localidade de que era representante. A logica partidaria sacrificára-a,
sem remorsos, mais do que uma vez, ao que, em linguagem não sei se
parlamentar, se chama conveniencias politicas.

Déra-se mais um exemplo d'esta flexibilidade de principios no
conselheiro.

Comquanto membro da opposicão, e dos mais temidos pela sua eloquencia,
variados conhecimentos e vigor de discussão, não era elle de tão
espinhosa moral que não tivesse amigos no seio da maioria, sendo até o
proprio ministro um dos mais intimos. No tempo da discussão, de que
falamos, o ministro, que desejava afastar das camaras todos os
adversarios de importancia, não duvidou entrar em ajustes com o
conselheiro. Este, que já não era homem para repellir com indignação
taes factos, teve a astucia precisa para se aproveitar das
contingencias. Entenderam-se.

Chegada a época da discussão, o conselheiro, que sempre se mostrou
ardente adversario da medida ministerial, e de quem se esperava uma
opposicão vigorosa e efficaz, pretextou subitos negocios a chamal-o á
provincia, e partiu, promettendo voltar a tempo ainda de discutir a
questão.

Depois de chegar ao Mosteiro escreveu para os amigos, lamentando que
inesperados negocios de familia o retivessem alli mais tempo do que
contava, e alentando-os de longe á lucta. No entretanto, a questão foi
apresentada nas camaras: oradores tibios e mal escutados acharam-se sós
a combatel-a; apagadores officiaes e officiosos abafaram a tempo a
discussão; e, quando o conselheiro voltou a Lisboa, só pôde protestar
nos circulos politicos contra o resultado da votação e expender as
razões que deveriam fazer repellir a medida.

Em recompensa eram concedidos melhoramentos para o circulo que o elegia;
e entre elles a estrada que vimos principiar. Tal fôra o preço d'ella.

Tudo isto trazia agora á luz a carta desencaminhada, que era do
secretario do ministro, e que no seu conteúdo deixava vêr claramente as
condições do pacto.

Esta publicação causou profunda sensação em Lisboa. A importancia
politica do conselheiro soffreu com isso.

Atacavam-n'o os partidarios do governo, para declinarem d'este, quanto
possivel, a responsabilidade do facto; atacavam-n'o os opposicionistas
declarados, para com o mesmo golpe ferirem o ministerio.

Os influentes politicos teem sempre no proprio partido, a que pertencem,
invejosos que só almejam o primeiro pretexto para os derrubarem, embora
caia com elles o partido a que se filiam.

Aquella carta foi, durante algum tempo, uma arma poderosa nas mãos dos
taes; originou discussões e ataques violentos; e o conselheiro correu
risco de se malquistar por causa d'ella com gregos e troyanos.

Tudo isto se revelava ao espirito de Magdalena e tudo isto a
consternava. O seu muito amor filial fazia-lhe achar no facto uma
significação dolorosa e triste que só desillusões, como as de Henrique
de Souzellas, velhas desillusões de sceptico impenitente, poderiam
attenuar. O conselheiro expiava cruelmente o seu delicto.

A leviandade e doblez do homem politico pagava-a caro o homem de
familia.

É que a moral é uma. O homem não pode dividir-se; os peccados sociaes de
quem é virtuoso nos lares domesticos, pagam-se, expiam-se n'esses mesmos
lares. Os filhos que creou e educou segundo os preceitos da honra e da
virtude, serão mais tarde os seus proprios juizes, e que cruel
julgamento para o coração de um pae! É justo que a patria peça contas
dos crimes de familia e desconfie dos tribunos que não sabem ser paes,
filhos, irmãos e esposos; é justo que a familia exija que se seja fiel á
prática e ás crenças que se professam, e castigue, pelo menos com
lagrimas, como as de Magdalena, as culpas do homem que julgou poder ter
duas consciencias: uma para responder por os actos civicos, outra para
os actos domesticos.

Henrique procurou minorar o effeito que esta leitura tinha produzido no
animo da morgadinha por meio de algumas consolações, que uma indulgente
moral, muito do uso da sociedade, lhe inspirava.

Percebeu porém, que, embora as manifestações do sentimento tivessem
cessado já em Magdalena, não se lhe tinha ainda dissipado a profunda e
penosa impressão que lhe ficára da leitura.

Como para fazer cessar aquelle genero de consolações, a que Henrique se
julgava obrigado, e que a ella eram custosas de ouvir, Magdalena disse,
em tom já apparentemente sereno:

--Bem; visto que é necessario precavermo-nos, vejamos de quem e quaes as
cautelas que temos a adoptar. Meu pae parece suspeitar de alguem, mas
não se pronuncia claramente.

N'isto entrou na sala D. Victoria, carregada de roupa como para uma
viagem aos pólos, e queixando-se do frio, cuja intensidade attribuia em
grande parte aos criados, por se terem descuidado de accender logo de
manhã os fogões da casa.

Quando D. Victoria foi informada do conteúdo da carta do seu cunhado,
levantou um alarido desolador. Por sua vontade ordenava logo alli um
interrogatorio e uma devassa geral a todos os criados da casa, aos
quaes, segundo o costume, attribuia a culpa toda. Magdalena e Henrique
tiveram muito que fazer para a convencerem da inutilidade e
inconveniencia d'esse alvitre e para lhe mostrarem a necessidade de usar
de toda a prudencia e dissimulação n'esta pesquisa.

--Aqui entre nós--dizia Henrique--vejamos em quem se pode, com
plausibilidade, fazer recahir as suspeitas. O sr. conselheiro diz bem;
um criado boçal pode roubar uma joia, subtrahir qualquer objecto de
valor intrinseco; porém os ladrões de cartas como estas, são de outra
especie e de intelligencia mais apurada. Ora entre a gente que frequenta
o Mosteiro...

E parando subitamente, Henrique disse para D. Victoria, que olhava para
elle com um gesto espantado:

--Porém, minha senhora, eu mesmo não me devo excluir da lista dos
indiciados, e n'esse caso deixo v. ex.^{as} livres para me instaurarem
processo.

--Ora essa, primo Henrique!--exclamou D. Victoria.--Era o que faltava!
Nada, nada; não se cance; não tem que vêr. Aquillo foram os criados.

Magdalena estava tão abatida de animo, que nem deu attenção a este
episodio.

Henrique proseguiu:

--Nada de magnanimidades, minha senhora; quem quer ser juiz a ninguem
deve excluir da possibilidade de ser réo. O sr. conselheiro, porém,
alguns indicios nos aponta. Fala, por exemplo, vagamente, de alguem que
n'estes ultimos tempos se pudesse considerar offendido por elle, e que
por vingança... Ora actos capazes de trazer estas animadversões a seu
pae, prima Magdalena, só a questão do cemiterio, mas essa não importa a
ninguem que tenha entrada aqui... Ha tambem as das expropriações,
porém...

Henrique parou, como se lhe tivesse acudido uma ideia, que examinava,
antes de enuncial-a.

--Tive agora um pensamento diabolico; nem quero attendel-o.

--Diga, primo, diga--acudiu logo D. Victoria.

--A expropriação da casa do herbanario... O muito amor que o velho tinha
áquella vivenda... A repugnancia com que viu cortar aquellas arvores
velhas...

--Então julga que foi o Vicente?--perguntou D. Victoria.--Mas elle não
vem ao Mosteiro ha muitos annos, primo.

--Não digo que fôsse elle, minha senhora--disse Henrique, cujo embaraço
augmentava, sentindo que a morgadinha o fitava com um olhar penetrante,
como se lhe estivesse lendo o pensamento.

--Então?--insistia D. Victoria.

--Mas--proseguiu Henrique--o velho exerce certa fascinação na gente da
terra; um verdadeiro prestigio; e certas intimidades entre elle e... e
alguem que tem aqui entrada a todo o momento... Emfim... eu não quero
seguir mais adeante este antipathico pensamento, que talvez fôsse
rejeitado com indignação por quem me escuta e attribuido a mesquinhos
resentimentos da minha parte.

--Faz bem em o abandonar, primo Henrique--disse Magdalena, com
severidade.--Entre ser victima de uma traição e culpada de uma suspeita
injusta, cruel e maligna, prefiro arriscar-me á primeira sorte. Se um
passado inteiro de honra e de probidade, se um caracter provado nas mais
tentadoras situações da vida, se um nome ennobrecido pelo infortunio,
não são garantias bastantes para proteger um homem contra os ataques da
suspeita, não quero entrar n'essa pesquisa inquisitorial que nada
respeita, que é capaz de lançar sacrilegamente a dúvida entre paes e
filhos, entre irmãs e irmãos. Innocente, prefiro aguardar a calumnia;
culpada, o castigo, a sentar-me como juiz n'esse tribunal impio que quer
arvorar.

--Previ essas palavras, prima Magdalena; por isso hesitei. Lamento
sinceramente ter já perdido no uso do mundo uma tão sympathica e
adoravel boa fé nos outros, que é a maior prova de candura que se pode
dar do proprio caracter.

D. Victoria não percebeu nada d'este rapido dialogo; por isso exclamou:

--Mas que estão vossês ahi a dizer? De quem falam? Eu se vos entendo!
Quanto a mim, foram os criados, e d'isto é que ninguem me tira.

Abriu-se n'este momento a porta da sala e appareceu Augusto. Era a hora
das lições dos pequenos.

Comquanto, desde o termo das férias, Augusto viesse todos os dias ao
Mosteiro, era aquella a primeira vez que se encontrava com Magdalena e
com Henrique, depois da scena que entre elles se passára na noite de
Natal.

A morgadinha fitou por momentos n'elle os olhos; pareceu-lhe mais
pallido e triste do que de costume. Desviou-os, porém, como se até
sentisse remorsos de ter escutado as allusões de Henrique sobre o
caracter de um homem que ella se costumára a respeitar. Porque o leitor,
cuja intelligencia é, sem lhe fazer favor, mais perspicaz do que a de D.
Victoria, percebeu de certo que era a Augusto que se referiam os vagos
termos trocados entre Henrique e Magdalena.

--Muito bons dias, sr. Augusto,--disse D. Victoria affavelmente--então
são horas de me vir aturar a pequenada? Não lhe invejo a vida. Sabe? De
manhã até á noite a aturar creanças! Deus me livre!

--Agora já não succede assim, minha senhora. Estou dispensado de parte
das minhas obrigações--disse Augusto, depois de cortejar as senhoras e
Henrique.

--Como?

--Pois v. ex.^a não sabe que já foi nomeado outro professor para o meu
logar?

--Que me diz?

Em todas as pessoas presentes produziu sensação esta noticia.

D. Victoria e a morgadinha fixaram em Augusto um olhar interrogador. O
gesto de Henrique tinha uma expressão particular.

--Recebi ha dias a participação official--continuou placidamente
Augusto.

--Mas--proseguiu D. Victoria--o mano tinha aqui dito que o seu despacho
estava seguro, que, além de ser de toda a justiça, elle o tomaria a seu
cuidado. E então agora... Olhem, sabem que mais? eu cada vez me entendo
menos com esta gente. Isto de politicos...

Magdalena inclinou a cabeça, suspirando.

--Bem vê v. ex.^a--disse Augusto, com leve tom de amargura--que ás vezes
ha grandes interesses sociaes dependentes do despacho de um modesto
professor de instrucção primaria da aldeia, e portanto não se deve
extranhar que um homem politico attendesse a elles antes de tudo.

Magdalena que, ao ouvir estas palavras, levantára os olhos, encontrou os
de Henrique, que parecia procurarem os d'ella com intenção.

A morgadinha desviou os seus com impaciencia e desgôsto, que se lhe
manifestou na contracção da fronte.

--V. ex.^a dá-me licença que principie os meus trabalhos?--disse
Augusto.

--Ai, quando quizer--respondeu D. Victoria.--Os pequenos estão na sala
verde.

Augusto saiu.

D. Victoria entrou no panegyrico do mestre de seus filhos, e não se
fartou de exaltar-lhe os talentos e as virtudes, apregoando o muito que
aproveitavam os pequenos sob tão intelligente direcção.

--Olhe que o Eduardito já escreve e já lê manuscripto como um
homem--dizia ella.--Quer vêr? O sr. Augusto deixou aqui ficar a pasta;
ha de ter alguma escripta do pequeno. Ora tambem vou vêr.

E D. Victoria, cedendo aos impulsos do seu enthusiasmo de mãe, foi
buscar a pasta de Augusto e pôz-se a procurar n'ella a escripta do
filho.

--Não vejo ...--disse ella, remexendo os papeis.--Isto que é?... Ai,
isto é uma escripta de Marianna... Ora veja.

Henrique fingiu examinar com attenção a escripta.

--Aqui estão os themas francezes d'elle. Quer vêr? Eu d'isso não
entendo, mas hão de estar bons.

E passava tambem os themas para Henrique, que os examinava com a mesma
attenção.

--Ora onde estará a escripta de Eduardo? Eu sempre queria que a visse.
Isto... isto é... Ha de ser alguma carta, que elle anda a ler. Ora veja,
primo; olhe que a lettra ainda não é das mais faceis... Eu por mim não a
leio... Quer vêr?

Henrique recebeu, com a maior condescendencia, o novo documento que lhe
ministrava D. Victoria, no sympathico intento de provar a habilidade dos
filhos.

Voltou distrahidamente a primeira folha da carta e pôz-se a lêl-a no
fim; cêdo, porém, começou a examinal-a com grande curiosidade; leu uma e
outras das faces escriptas, e, ao acabar a leitura, estava-lhe nos
labios um sorriso entre de ironia e de triumpho.

Offerecendo á morgadinha a carta que lêra, disse-lhe, com um modo que a
impressionou:

--Veja se comprehende a significação d'esta carta, que estava na pasta
do sr. Augusto, do amigo de seu irmão. A mim parece-me que as creanças
não a comprehenderiam bem.

Magdalena olhou para Henrique e depois para a carta, que principiou a
ler.

Succedeu-lhe como a Henrique; cêdo a dominava uma anciosa curiosidade,
que a obrigou a ler com rapidez até o fim.

Ao acabar, amorfanhou-a com raiva, arrojando-a ao chão; escondeu o rosto
entre as mãos e não pôde reter o pranto que lhe rebentava dos olhos.

D. Victoria parou a olhal-a, estupefacta.

--Que é isso, Lena? Santo nome de Deus! tu que tens, menina?

--É que ha momentos, minha tia,--respondeu Magdalena, fitando-a com os
olhos arrazados de lagrimas--em que eu não sei como se resiste á
loucura; em que, para não duvidarmos de nós mesmos, é necessario duvidar
da Providencia, que dizem que protege os bons.

E levantando-se n'esta agitação nervosa, saiu da sala, suffocada pelos
soluços.

D. Victoria interrogou Henrique a respeito da causa d'este episodio, que
ella não podia comprehender.

Henrique respondeu simplesmente:

--Succedeu, minha senhora, que a carta encontrada na pasta do sr.
Augusto parece-se muito com aquella de cujo extravio o sr. conselheiro
se queixa e que foi publicada nos periodicos de Lisboa.

D. Victoria esteve algum tempo a pensar na verdadeira significação da
resposta.

--Mas... n'esse caso... visto isso...

--Visto isso, só o sr. Augusto pode explicar o mysterio que inda ha
pouco nos preoccupava a todos. Os meus presentimentos malignos tinham
infelizmente um fundo de verdade.

D. Victoria, tendo a final comprehendido, exclamou:

--Pois seria elle! Era d'elle que o primo ha pouco falava? Por esta não
esperava eu! Ora fie-se uma pessoa n'estes santos! Uma coisa assim! Ora
deixa estar que eu vou... Ahi está o pago que se tira de bem fazer! Ahi
está! Veremos a cara com que elle me responde. Ora deixa...

--Eu retiro-me--disse Henrique, pegando no chapéo para sair.

--Fique, primo, fique... Até é bom que ouça...

--Perdão, minha senhora. É melhor que eu não fique. Ha razões para
isso... Tudo deve passar-se entre v. ex.^a e elle, e, se me é licito um
conselho, bom será que não seja demasiado violenta.

Apesar dos pedidos de D. Victoria, Henrique retirou-se.

Não ia satisfeito comsigo o hospede de Alvapenha. E por quê? Não tinha
feito o seu dever? Por acaso não era flagrante o delicto de Augusto e
irrecusaveis as provas que o acaso contra elle ministrára?

Mas em nós todos se deve ter já passado um phenomeno moral, comparavel
ao que se estava dando com Henrique. Occasiões ha em que, apesar de
todos os argumentos da razão, apesar da conspiração de todas as provas a
justificar-nos, persiste em nós uma voz instinctiva a avisar-nos de que
commettemos um mal, formulando uma accusação.

Isto sómente não succede a quem tenha adormecidos os mais generosos
escrupulos da consciencia; e este caso não se dava com Henrique.

D. Victoria ficou só na sala, meditando na maneira de confundir e
castigar o criminoso. Passeiava agitada, elaborando comsigo o dialogo
que se ia seguir, encarregando-se ella propria de responder por Augusto.

Não se passou muito tempo que Augusto não viesse procurar a pasta que
lhe esquecêra na sala.

--Que procura?--disse D. Victoria, que, ao vêl-o, parou junto da mesa.

--Uma pasta que deixei aqui!

--Será esta?--disse D. Victoria, mostrando-a.

--É essa mesma--respondeu Augusto, indo para buscal-a.

--Como vão na leitura do manuscripto os meus pequenos, sr.
Augusto?--perguntou D. Victoria, retendo a pasta.

--Muito bem, minha senhora.

--Já entenderam esta carta?

Augusto pegou na carta, que examinou, superficialmente.

--É provavel que já, minha senhora; ainda que não me lembro de haver
escolhido esta entre as que v. ex.^a me deu.

--Pois escolheu por certo, visto que a tinha na pasta; mas como lhe
pareceu difficil de mais para os pequenos, teve o cuidado de mandal-a
imprimir para elles lerem melhor. Não posso consentir que entre n'esses
gastos por causa de meus filhos; por isso queira dizer a despeza que
fez, para se mandar pagar.

D. Victoria tirava da raiva, que se apossára d'ella, uma ironia superior
aos seus habituaes expedientes de espirito.

Augusto ergueu para ella os olhos, admirado, porque não podia
comprehender aquellas singulares palavras.

--Diz v. ex.^a que...

Em vez de lhe responder logo, D. Victoria pegou no periodico que
Henrique deixára sobre a mesa, e mais exaltada já, accrescentou:

--Veja se saiu exacta. Compare. Talvez precise de fazer alguma emenda.

Augusto olhou para o periodico e para a carta, sem bem saber o que fazia
nem o que queria dizer tudo aquillo.

--Mas, por amor de Deus, minha senhora,--disse elle, já
sobresaltado--que quer dizer tudo isto?

--Quer dizer, sr. Augusto, que, quando para outra vez se lembrar de
atraiçoar mais alguem que o tenha favorecido, seja mais cuidadoso em
esconder as provas da sua villeza.

--Minha senhora!--exclamou Augusto, fazendo-se pallido.

--Fez mal em não nos ter prevenido antes do que tinha descoberto; nós
ainda tinhamos bastante dinheiro para cobrir o lanço e ficarmos com a
carta.

--Oh, meu Deus! pois suspeita-se...

E Augusto, quasi como louco, arrancou das mãos de D. Victoria a folha, e
começava a lel-a; mas as nuvens que lhe passavam pelos olhos, a vertigem
que lhe turbava a cabeça não o deixavam comprehender o que lia.

Emquanto Augusto assim luctava comsigo mesmo, D. Victoria dizia:

--Agora é que eu entendo o que queria dizer o primo Henrique. Sempre é
um homem que sabe o que é o mundo...

Ao ouvir estas palavras, Augusto arrojou de si o periodico, e
scintillou-lhe o olhar de cólera:

--Ah! Foi elle? Sim... Havia de ser. Devia suspeital-o. Era de esperar
que o fizesse. É o pretexto. Minha senhora, ha aqui uma traição infame,
uma traição que eu não ousaria suspeitar de ninguem! Mas juro-lhe que...

--Ha de dar-me licença de ir accommodar meus filhos--disse D. Victoria,
interrompendo-o friamente. E encaminhou-se para a porta.

Augusto viu-a afastar-se, e disse-lhe em tom sereno, mas commovido:

--Vá, minha senhora, vá; mas se tem a essas creanças amor de mãe, não
lhes ensine por ora a suspeitar de um homem que ellas se tinham
habituado a amar e a venerar. Peço-lhe por ellas, mais do que por mim. É
uma triste e prematura experiencia que lhes vae dar; vae-lhes envenenar
para toda a vida o coração e talvez que contra si mesma veja voltar-se a
desconfiança que lhes semeia tão cêdo.

D. Victoria saiu da sala sem lhe responder; é certo, porém, que não
ousou dizer aos filhos coisa alguma em desfavor do mestre. Sob as
singularidades do genio d'aquella senhora havia um fundo de bom senso,
onde perfeitamente calaram as reflexões de Augusto.

É singular; ao entrar na sala immediata, ia a limpar os olhos,
commovida.

Augusto permaneceu abatido e desalentado, como se n'aquelle momento
tivesse visto dissiparem-se todas as esperanças da sua vida. Lagrimas
inflammadas e amargas assomaram-lhe aos olhos ao vêr-se humilhado no
seio de uma familia que elle respeitava, da familia d'aquella a cujos
olhos mais desejaria nobilitar-se, engrandecer-se, revestir-se de todos
os prestigios.

Era uma dor para enlouquecer, a sua! Ao desalento succedeu, porém, a
reacção; n'aquelle caracter havia latente uma energia de homem.

--Agora, mais do que nunca, preciso de alento para não
succumbir;--exclamou elle, erguendo a cabeça e vindo-lhe ás faces o
rubor da exaltação--obriga-me a isso o nome honrado de meu pae, a santa
memoria de minha mãe. A consciencia me dará forças para luctar com a
intriga e com a calumnia, onde quer que ella esteja. Ir-lhe-hei ao
encontro, a descoberto, sem disfarce, nem artificios, como luctador
leal. E se ha justiça no Céo, hei de vencer! Não voltarei mais a esta
casa, sem ser com a cabeça erguida; não pensarei mais em ti, Magdalena,
unica, suave imagem que ainda me offerecia vida, emquanto não saiba que
no teu pensamento o meu nome não é o de um infame.

Ao voltar-se para sair descobriu Magdalena, que o observava da porta.

Augusto estremeceu, mas, fazendo por dominar a turbação, curvou-se
respeitosamente perante a morgadinha, e ia a retirar-se.

--Espere,--disse-lhe ella, estendendo-lhe a mão, e com profunda
melancolia--não saia sem se despedir de uma amiga que, apesar de tudo, o
reputou sempre innocente.

Augusto parou, como se aquellas palavras o ferissem no coração.

Magdalena, com as faces pallidas e as lagrimas nos olhos, continuava a
estender-lhe a mão.

Augusto apoderou-se d'ella e cobriu-a de beijos e de lagrimas.

--Oh! obrigado, minha senhora, obrigado!--exclamou elle--precisava
d'essas palavras para não enlouquecer.

--Vá, Augusto, vá. Dentro em pouco tempo todos lhe pedirão perdão.
Creio-o firmemente.

--E eu não procurarei tornar a vêl-a, senão quando pudér justificar essa
generosa confiança. Juro-lh'o.

As lagrimas de Magdalena não podiam mais tempo conter-se-lhe nos olhos;
iam soltar-se e já ella, para as occultar, desviava o rosto, quando
Christina entrou na sala.

Christina, a quem a mãe acabára de contar o acontecido, parou a ver a
scena e a commoção dos dois.

Augusto não se demorou, saiu sem pronunciar uma palavra.

Magdalena deu largas á tristeza, que lhe pesava no coração, deixando
correr livremente o pranto.

Christina correu a abraçal-a.

--Meu Deus! meu Deus! Lena, isto que quer dizer?--exclamou Christina.

E, approximando os labios do ouvido da prima, murmurou, com adoravel
ingenuidade:

--Pois tu... amaval-o?

Por unica resposta Magdalena apertou-a apaixonadamente ao seio.

E ambas por algum tempo confundiram as suas lagrimas.

 


XXIII


Dominado por os mais energicos e encontrados sentimentos Augusto saiu do
Mosteiro, ainda sem plano formado, sem tenção definida, mas
comprehendendo vagamente a necessidade de abraçar uma resolução
qualquer.

As palavras que D. Victoria inconsideradamente soltára, tinham-lhe feito
conceber a suspeita de que Henrique não fôra alheio á calumnia que
pesava sobre elle. D'ahi a attribuir-lhe todo o plano da intriga não ia
longe, e justo é confessar que não era destituida de plausibilidade a
ideia.

A especie de aversão reciproca que, desde o primeiro encontro, os
dividira, a maior vehemencia da entrevista na noite de Natal, em que
ficára pendente entre elles uma provocação, só á espera de pretexto,
concorriam para dar vigor a esta supposição.

Por isso, depois de por muito tempo percorrer á tôa os caminhos dos
campos, sem consciencia nem destino, Augusto encaminhou-se resolutamente
para Alvapenha.

Estava ainda pouco senhor de si para meditar nas circumstancias que
occasionaram a sua accusação. Mal poderia até dizer de que era accusado.
Percebeu que se tratava de um abuso de confiança, de uma infamia, mas a
impressão recebida fôra tal que não o deixára investigar os pormenores
do facto. Previa em tudo isto uma traição, e, para a esclarecer,
dirigiu-se á unica pessoa de quem lhe parecia provavel que ella
partisse.

Quando chegou a Alvapenha já tinha alli passado a hora de jantar.

Henrique retirára-se para o quarto, D. Dorothéa e Maria de Jesus,
aquella dobando, esta fiando, aproveitavam o tempo a rezar parte das
suas longas orações quotidianas.

Quando Augusto bateu á porta, estavam ellas de volta com a ladainha, que
D. Dorothéa dizia em latim, a seu modo, e a que Maria de Jesus respondia
no mesmo idioma.

--_Turris e burris, fedilisarca, espeque da justiça, Joannes
asellis_--dizia D. Dorothéa.

--_Orá pér nós_--respondia invariavelmente a criada.

A reza interrompeu-se ao entrar Augusto na sala.

Poucas situações se podem conceber mais exasperadoras de animo do que a
de Augusto n'aquelle momento.

Vir com o espirito dominado por as mais violentas paixões, trazer no
coração uma verdadeira tempestade affectiva, e de subito achar-se na
presença de duas indoles essencialmente pacificas, de dois corações a
que a paixão nunca alterou o rithmo, de duas consciencias de que nunca a
dúvida, o remorso, ou o odio turbaram a celeste serenidade, é um
martyrio cruel.

Augusto teve desejos de recuar, porque previu a tortura que o esperava.

--Ditosos olhos que o vêem!--disse D. Dorothéa, arredando deante de si a
dobadoura, para mais á vontade contemplar o recem-chegado.--Não sei que
mal lhe fizeram n'esta casa!

--As minhas occupações...--balbuciou Augusto, sem saber o que dizia.

Maria de Jesus veio de reforço á ama.

--Isso! fale-nos nas suas occupações, nem que se não soubesse cá que
todos os dias dá o seu passeio ao fim da tarde; sem falar nas
quintas-feiras e domingos...

Augusto não respondeu.

--Pois olhe que todos aqui lhe querem bem--disse D. Dorothéa.

--Assim o creio, minha senhora.

--Eu fui muito amiga de sua mãe, que era uma santa creatura. Inda me
parece que a estou a vêr ahi sentada, com aquella capa rôxa que trazia.
A alegria d'ella, quando o Augustito veio de Lisboa! Vi-a chorar e
agradecer a Deus o filho que lhe tinha dado... Todo o seu desejo era não
morrer antes de o vêr padre; queria pelo menos uma vez commungar das
suas mãos... Coitada!... Não lhe concedeu isso o Senhor, que bem cêdo a
chamou a si.

E continuou para Augusto:

--Quando morreu a morgada, a madrinha da Lenita, e que me contaram aqui
do legado que ella deixára, eu disse logo: «Ora a alma tem ella no Céo
por isto, quando por mais não seja». Porque, emfim... só quem não
conheceu sua mãe é que não diria outro tanto. Verdade é que elle não
chegou a aproveitar... mas... Emfim cada um sabe o que lhe convem e o
que lhe não convem. E eu digo, a vida de sacerdote é muito bonita, isso
é, mas... não havendo inclinação...

Augusto estava impaciente com a loquacidade da senhora de Alvapenha.

--O sr. Henrique de Souzellas está em casa?--perguntou elle, logo que
pôde.--Desejava muito falar-lhe.

--Ai, sim? quer falar com elle? Eu acho que... Parece-me... Sim, elle
deve estar no quarto... Ha de estar a ler. Não tem outra vida aquelle
rapaz! Uma coisa assim! Por mais que eu lhe diga: «Henriquinho, olha que
isso faz-te mal...» É o mesmo que nada. Só ler, ler, ler, que é uma
coisa por maior. Ao principio ainda por ahi dava alguns passeios...
Agora, tirando lá as suas visitas ao Mosteiro, elle para ahi fica. Lá ao
Mosteiro sim, para ahi ainda elle vae.

--É que os ares são por alli muito saudaveis--disse maliciosamênte Maria
de Jesus.

--Adeus! ahi vem vossê com as suas coisas. E então que tem? Pois está
claro que um rapaz, como elle, dá-se com a gente nova.

--Pois sim, senhora, eu não digo...

--E as raparigas de lá já não estão bem sem elle... Ora eu confesso,
quando elle está de maré, é um gôsto ouvil-o. Sempre ás vezes tem coisas
que fazem rir as pedras.

--E pondo-se a contar historias? Ih! isso então é que é! Eu não sei onde
elle as vae buscar!--accrescentou a criada.

--Com esta--continuou D. Dorothéa, apontando para Maria de Jesus--é ás
vezes um passo. Eu ainda queria que o Augustito os ouvisse a ambos. É
perdido em pouca gente. Elle põe-se lá a inventar patranhas, e ella a
tôla, que sabe já como elle é, ouve tudo muito séria e fiada, e no fim
então é que são os escarcéos. Emfim, uma coisa é dizer, outra é vêr!

E D. Dorothéa ria, com aquelle rir meio tossido de velha, em que ha não
sei que indicios de uma existencia placida, que consola ouvir.

Augusto forçava-se a sorrir áquellas narrações das duas velhas, a que
elle mal attendia.

--Eu digo--continuou D. Dorothéa--que já nos havia de fazer falta se
saisse d'aqui; quando cá não está parece-me a casa morta.

--Deixe lá, senhora, que este já d'aqui não sae.

--Ora bem sabe vossê d'isso.

--Pois a senhora verá. Ora! Os passeios ao Mosteiro são muito bonitos.

Augusto ergueu-se, devéras resolvido a cortar a conversa por uma vez.

--Se me dá licença, eu vou procural-o ao quarto. Desejava falar-lhe,
quanto antes, para um negocio de urgencia.

Depois de mais algumas reflexões, resignaram-se a deixal-o partir.

Augusto transpoz rapidamente os corredores, que o separavam do quarto de
Henrique, e bateu á porta d'este.

--Entre quem é--disse de dentro Henrique.

Augusto entrou.

O sobrinho de D. Dorothéa estava sentado junto da janella, lendo uma
folha e fumando.

Ao vêr Augusto levantou-se.

A lembrança das scenas d'aquella manhã no Mosteiro, e a expressão de
physionomia de Augusto, fizeram-lhe prevêr a indole da entrevista que se
ia seguir.

Evitando porém o menor indicio, que pudesse revelar a prevenção em que
estava, disse naturalmente, estendendo a mão a Augusto:

--Oh! por aqui! A que devo o prazer d'esta visita?

Em vez de lhe corresponder ao cumprimento, Augusto disse-lhe friamente:

--Assim estende a mão a um miseravel? Ou é tibieza de pundonor, ou
excesso de magnanimidade!

Henrique retirou logo a mão e respondeu com orgulhoso desdem:

--Nem uma coisa, nem outra; simplesmente o juizo bastante para não me
arvorar em superintendente de negocios que me não dizem respeito; é um
sentido especial, que se chama delicadeza.

--É um pouco sujeito a adormecer em si esse precioso sentido--replicou
Augusto no mesmo tom.--Nem sempre são tão observadas pelo senhor, essas
delicadas abstenções, como agora. Sei-o por experiencia.

--Não o são desde que os interessados me ordenam que intervenha, e desde
que a minha intervenção pode ser util a amigos.

--Pois bem; como, por qualquer d'essas causas, se deu o facto em relação
ao objecto que me traz aqui, espero que me explique a natureza da sua
intervenção.

--Mas com que direito me vem o senhor pedir aqui explicações?

--Com o direito que me dá a consciencia, senhor!--respondeu
energicamente Augusto, despojando-se de toda a apparencia de
ironia.--Com o direito que tem todo o homem, calumniado cobarde e
infamemente, como eu fui, de provocar uma accusação aberta e leal.
Direito? É mais ainda do que direito, é dever. É um dever para com a
moral, é um dever para com a consciencia, é um dever para com a memoria
d'aquelles que nos transmittiram um nome honrado.

--Muito bem; mas, admittindo que seja esse direito ou esse dever, e não
lh'o contestarei, por que singularidade acontece que seja eu a pessoa
que tem de responder por tudo isso? Por acaso será este o pretexto, para
depois do qual tinhamos adiado uma entrevista que suppuzemos
necesssaria?

--Se houve pretexto para ella, foi da sua parte, e escolheu-o bem infame
e vil. Não lh'o invejo. Da minha não é pretexto; é uma interrogação bem
positiva e terminante. Todos os motivos anteriores, que podiam
auctorisar-me a procural-o, cessaram ante a impreterivel exigencia
d'este. Preciso de justificar-me, e por isso preciso de conhecer e de
ouvir os meus accusadores.

--E imagina que sou eu quem deve auxilial'o na tarefa? Pelo menos devia
escolher uma hora mais cómmoda. Sabe que na Alvapenha se janta
patriarchalmente ao meio dia.

--Não julgue que com essas ironias de mau gôsto, se esquivará a
responder-me. Juro-lhe que hei de obrigal-o a falar com seriedade.

--E tem meios para isso?

--Faço-lhe a justiça de acreditar que sim; creio que ainda não estará
tão envilecido que receba com um sorriso cynico o insulto que lhe
infligir...

--É provavel que não risse, no caso que diz; mas tambem não falava,
acredite. Ha, para interrogações d'essas, respostas mais adequadas e
discretas. Não tente; aconselho-o... Mas, valha-me Deus, quem lhe disse
que eu não queria dar-lhe todas as explicações que souber? Sente-se,
conversemos placidamente, que é a melhor maneira de vêr claro nas
coisas. Não fuma?

Augusto, indignado com este frio sarcasmo, respondeu com vehemencia:

--Está-me causando tedio e compaixão ao mesmo tempo, senhor. Deve ter já
uma alma bem corrompida para me receber assim. Ainda quando eu fôsse um
criminoso, se no seu caracter houvesse brio, dignidade e sentimento
moral, devia a minha presença ser-lhe um espectaculo demasiado abjecto,
para o não deixar sorrir, ainda que de sarcasmo; mas na incerteza em que
está, em que deve estar por fôrça, a só ideia de que pode calumniar um
homem innocente, devia bastar para lhe fazer sentir toda a gravidade
d'esta entrevista e obrigal-o a attender-me como eu exijo ser attendido.
Para não comprehender isto, para não respeitar esse sagrado direito, que
tem todo o accusado de se defender, é necessario estar corrompido até o
fundo da alma. O scepticismo e a irreverencia para com os outros, só se
dá em quem duvída de si proprio, e a si proprio se não respeita, porque
se conhece. O senhor soube insinuar a calumnia no seio de uma familia,
cujos amigos generosos não a receberam sem dor; e quando o calumniado
lhe vem pedir explicações, porque se trata da sua unica riqueza, porque,
sem familia e pobre, e ámanhã talvez na miseria, precisa de defender o
unico bem que lhe resta, o senhor recebe-o com um sorriso ultrajante,
para occultar talvez a cobardia, que não ousa repetir na face do
accusado as insinuações que contra elle fez na ausencia. Se a
consciencia lhe não exprobra esta infamia, teve razão ao dizer-me que me
enganei procurando-o. A caracteres d'esses não se pede a explicação da
calumnia; é a sua manifestação natural.

E terminando estas palavras, que a mais violenta paixão lhe dictára,
Augusto caminhou para a porta do quarto.

Henrique deteve-o.

No espirito do leviano hospede de Alvapenha passára-se n'este curto
intervallo de tempo uma profunda revolução moral.

Na voz, no gesto e na indignação de Augusto pareceu-lhe perceber
vestigios de sinceridade, em que até alli não acreditára, e desde esse
momento, além dos remorsos pelos desdens com que o recebêra, sentia viva
a necessidade de uma reparação.

Magdalena tinha razão.

No meio de todos os seus defeitos, havia n'este rapaz um não exgotado
fundo de pundonor e de moralidade.

--Não saia--disse elle para Augusto, já sem a menor sombra de
ironia.--Se para isso fôr necessario pedir-lhe perdão, pedir-lh'o-hei.
Que mais quer?... Reconheço-lhe o direito que tem de ser escutado.
Fique. E creia que, apesar das apparencias lhe serem desfavoraveis, eu,
que em bem pouco concorri para ellas, sinto-me já movido a não lhes dar
fé. É já um convencimento tão intimo como o que até agora tinha da sua
culpa, confesso-o. Se na minha mão estiver esclarecer o mysterio, conte
commigo. Fale.

Augusto fitava-o ainda com desconfiança.

Henrique percebeu-o e continuou:

--É justa a dúvida que lhe leio no olhar, mas, como sómente o meu
procedimento futuro a pode desvanecer, peço-lhe que não deixe por isso
de falar.

--Antes de mais nada: de que me accusam?--perguntou Augusto.

--Pois não sabe?!--exclamou Henrique, admirado.

--Vagamente apenas. Sei que ha uma carta extraviada, mas a conclusão em
que fiquei, mal me deixou comprehender...

Henrique contou então tudo o que se passára no Mosteiro, e terminou
dizendo:

--Já vê que eu não fiz mais do que faria outro qualquer em meu logar.
Pesava sobre todos quantos frequentavam aquella casa uma desconfiança
odiosa: esclarecer o mysterio, dissipar as suspeitas, lançar aos hombros
do culpado toda a responsabilidade da traição, era o natural empenho de
todos. A descoberta da carta na sua pasta accusava-o. Essa descoberta
foi occasionalmente feita por D. Victoria. Eu não o conhecia bastante
para que o seu passado me obrigasse a recusar o testemunho das
apparencias. Os motivos de despeito, que as suas mesmas palavras por
aquella occasião confirmaram, explicavam muito bem certas tentações de
vingança... Nada mais natural do que suppôr...

Augusto cobriu o rosto com as mãos, murmurando:

--Accusado!... accusado de uma infamia, e deante de...

Aqui reteve-se, como se a tempo comprehendesse a indiscreção da sua dor.

Henrique cada vez se sentia mais modificado nas suas disposições para
com Augusto; por isso, quando este cortou assim em meio a expressão do
pensamento, elle, que lh'o percebeu, disse-lhe, sorrindo:

--D'ella? Socegue. Tem junto d'esse tribunal, de que se receia tanto,
advogados eloquentes.

Augusto levantou para Henrique um olhar interrogador.

--Diz que...

--Que não deve temer da impressão produzida, por todas as provas d'este
mundo, no animo de quem, através de tudo, acreditará sempre na sua
innocencia.

--Refere-se a...

--Ao seu segredo, que ha muito o não é para mim. Veja como eu estou
virado! Acho-me quasi disposto a sympathisar com elle, quando ha pouco
tempo ainda, sinceramente o confesso, era esta a causa occulta de tal ou
qual antipathia, que sentia pelo senhor... que sentiamos um pelo outro,
digamos assim.

--Mas...

--Vamos, vamos... eu sei que é discreto; nem esta era occasião para
entrar em confidencias. Tratemos do que mais importa... Não sei como é
que iria jurar agora a sua innocencia em toda esta desastrada intriga, e
com o tempo... porque francamente lhe declaro que me é necessario algum
tempo para desvanecer em mim todos os restos de despeito e de...
paixão... porém, com o tempo, talvez venha a ser seu verdadeiro amigo...
sem a menor prevenção.

E depois de um momento de silencio, proseguiu, mudando de tom:

--Mas, com os diabos, sendo o senhor innocente, deve ter grandes
inimigos aqui na terra para o enredarem assim! É preciso esclarecer
isto.

--Inimigos?!... Não os conheço, nem vejo motivos...--disse Augusto,
pensativo. Mas de repente, como se lhe acudisse um pensamento luminoso,
fez um gesto que Henrique percebeu.

--Que é?--perguntou este logo.--Descobriu?... Diga... Uma suspeita é já
um rasto precioso... guia os primeiros passos... Diga... E eu o ajudarei
a seguil-o.

--Lembro-me agora de uma notavel visita, que ha dias recebi. É isso...

E Augusto contou toda a entrevista que tivera com o brazileiro.

--E ainda agora se lembra d'elle?--exclamou Henrique, ao ouvil-o--e inda
hesita?! O senhor é de uma boa fé!... Temos o fio!

--Mas como pôde elle...?

--Isso depois; o mais virá a seu tempo. Agora trata-se de vigiar esse
senhor... E agora me lembra; elle é um dos oradores do club do Canada...
Sondarei esse antro tenebroso... Eu já devia suppor que andava aqui
miseria politica... Estou a achar razão áquella adoravel Magdalena...
Perdão... inda não perdi o habito de a adorar... Tambem, desde que o
consiga, serei seu amigo sem restricções. Até lá, porém, não será isso
motivo para de corpo e alma me não dedicar á sua causa... Eu posso ter
todos os defeitos, menos o de collaborar de boamente n'uma velhacaria;
e, fôsse o meu maior inimigo que eu visse victima d'ella, creia que
procuraria desfazel-a.

--Agradeço-lhe essas palavras, que acredito são sinceras; não posso,
porém, acceitar a intervenção que me offerece. Eu sou que devo
justificar-me. Está empenhada n'isso a minha dignidade.

--Como queira. Em todo o caso espero que uma má prevenção o não
constranja a não recorrer lealmente a mim, se o meu auxilio lhe puder
servir. Agora peço-lhe perdão, se alguma vez o offendi de mais; mas
vamos lá, o senhor tambem não está de todo isento de culpa... E quanto
ao pretexto... adiado mais uma vez, não lhe parece?

Augusto não podia fechar-se áquelle caracter, que se lhe estava
mostrando agora sob uma face nova e sympathica; por isso respondeu,
sorrindo:

--Adiado para sempre.

E estenderam as mãos um ao outro, apertando-as já sem o menor
resentimento.

Eram duas almas generosas, que acabavam de se comprehender.

--É notavel;--pensava comsigo Henrique--estou sympathisando á ultima
hora com este rapaz! Mas como se combina isto com a minha paixão por
Magdalena, a quem elle ama igualmente? Dar-se-ha que ella acertasse, e
que não fôsse paixão o que eu senti! Isto de mulheres teem uma vista tão
apurada para estas discriminações!

 


XXIV


O processo instaurado contra o Cancella seguiu os seus tramites normaes;
porém, graças ao empenho do conselheiro, a quem a morgadinha escrevêra a
favor do prêso, e apesar da perseguição que lhe moviam os padres,
contava-se que elle fôsse sôlto, e era esperado na aldeia dentro em
poucos dias.

Magdalena não se descuidára de mandar todos os dias ao pobre homem
noticias da filha, a qual, depois de ter por algum tempo inspirado
sérios cuidados á medicina da terra, parecia haver entrado n'um periodo
de convalescença.

Magdalena assim o participou ao Cancella para o animar, mas, sem saber
por quê, ella propria não sentia as esperanças que dava.

Ha espiritos tão instinctivamente sensiveis e perspicazes, que, á
maneira dos medicos experientes, presentem a gravidade ou a approximação
do mal, ainda quando os symptomas tenham perdido toda a feição
assustadora.

Já os sorrisos fluctuam nos labios do doente e um desmaiado rubor de
saude principia a tingir as faces, até então pallidas, e elles sentem-se
ainda estremecer de secretas apprehensões.

Assim acontecia a Magdalena ao contemplar as feições da pequena
Ermelinda.

A frequencia e intensidade dos accessos diminuira; certo colorido de
vida principiára já a animar-lhe o rosto infantil, havia pouco gelado de
terror e pela doença; ás vezes até um sorriso, ainda que melancolico,
distendia-lhe os labios desmaiados, e só de quando em quando raras
nuvens de tristeza, evocadas por uma recordação penosa, parecia
assombrarem-lhe o olhar limpido e meigo; os somnos eram tranquillos, as
vigilias serenas, e apesar de tudo a morgadinha entristecia ao reparar
n'ella.

O facultativo da localidade, apalpando com os dedos robustos o delicado
pulso da creança, assegurára que ella estava já livre da febre; e apesar
d'isso, Magdalena quasi sentia remorsos, quando escrevia ao Herodes a
dar-lhe a boa nova.

E é certo que mais do que justificadas tinham de ser estas apprehensões
da morgadinha.

Na tarde d'aquelle mesmo dia, em que Ermelinda acordára mais tranquilla
e animada, renovaram-se subitamente, e assustadores como nunca, os
indicios do mal profundo.

Um delirio violento, caracterisado por vagos e mal definidos terrores,
gritos angustiosissimos, contracções espasmodicas, que parecia
despedaçarem aquelle corpo fragil e delicado, surgiram de novo, e, ao
dissiparem-se, deixaram, como rastos, uma prostração extrema, uma quasi
completa insensibilidade de funesta significação.

Magdalena, assustada, tomou nos braços a debil e emmagrecida creança, e
trouxe-a para junto de uma janella, d'onde ainda se avistava o sol, já
quasi a esconder-se por detraz de uma collina distante.

Dir-se-ia querer pedir, aos frouxos raios de um quasi crepusculo de
inverno, um pouco de calor para fundir os gêlos da morte, que
principiavam a invadir os membros delicados d'aquella formosa creança;
ao clarão levemente afogueado do horisonte, um pouco das suas tintas
para aquellas faces morbidamente pallidas; á amenidade da paizagem, um
reflexo de sorriso para aquelles labios, onde elle se apagára.

Os olhos de Ermelinda fitaram-se tristemente no sol já vacillante, com a
expressão, cheia de saudade e de poesia, de uma alma joven que se
despede da vida, e, quando o sol desappareceu, desviaram-se lentamente
para o rosto de Magdalena, que a observava com anciedade.

Ermelinda sorriu; um sorriso mais triste do que as mais tristes
lagrimas.

A morgadinha apertou-a ao seio, commovida.

--Que tens tu, minha filha?--disse-lhe com meiguice, afagando-a.

Ermelinda não respondeu, mas continuou a fitar Magdalena com a mesma
expressão de affecto e de tristeza.

A morgadinha approximou os labios dos d'ella para beijal-a.

A pequena doente correspondeu-lhe ainda ao beijo e continuou a fital-a
como d'antes. E durou, e durou este olhar até que pareceu a Magdalena
haver n'elle não sei que estranha fixidez, que a inquietou.

Palpou as mãos da creança; estavam frias; o coração, parado; chamou-a
pelo nome... a mesma fixidez no olhar, a mesma immobilidade nas
feições... estava morta.

Foi assim que se despediu da vida aquelle candido espirito. Foi como o
adormecer de uma alma, que algum anjo invisivel, namorado d'ella,
arrebatasse nas azas para o throno de Deus.

A morte de uma creança como Ermelinda é um facto de ordinario
indifferente na vida social; alguns sorrisos de menos no mundo; uma voz
que emmudece nos festivos córos da infancia; algumas sentidas lagrimas
de mãe sobre um berço vazio; algumas flores sobre um tumulo; e á
superficie das ondas sociaes nem sequer a leve vibração que a rosa
desfolhada imprime á agua tranquilla do lago... eis tudo.

A multidão segue no delirio das festas, na lucta das paixões, na febre
da ambição e das glorias, e o perfume da flor pendida não lhe affecta os
sentidos embriagados.

Ás vezes, porém, não succede assim, e assim não devia succeder com
Ermelinda.

As paixões humanas, que ante o cadaver de uma creança, coroada de flores
candidas e cingida da alva tunica da pureza, deviam abrandar-se, como
deante de uma visão do Céo, tomam-n'o ás vezes por estimulo para mais
furiosas se desencadearem, e proclamarem a lucta, a sedição e a
vingança.

Desde que fôra publicada a portaria, prohibindo expressamente os
enterramentos na igreja, medida tão adversa ao espirito do povo, não
tinha havido na terra uma morte que obrigasse a pôr a medida em
execução.

A ira popular, exacerbada de contínuo pelas secretas instigações de
alguns padres fanaticos ou hypocritas, e dos adversarios politicos do
conselheiro, rugia, havia muito, surdamente, mas não rompêra em explosão
por falta de pretexto.

Notava-se apenas uma maior affluencia de gente na taberna do Canada, um
maior calor nos discursos dos tribunos, e a tendencia á formação de
magotes nas encruzilhadas e nos largos.

Quando porém se espalhou a noticia da morte de Ermelinda, augmentou a
effervescencia dos animos. Era chegado o momento.

A morgadinha, que chorou com lagrimas sinceras a filha do Cancella, quiz
que ella fôsse sepultada no mausoléo da casa do Mosteiro. Cumprindo
assim a lei, prestava-se tambem culto á affeição que todos sentiam pela
creança, companheira de brinquedos de Angelo, que lhe queria como irmã.

Sabendo-se d'esta resolução, rebentou a indignação popular.

No dia seguinte ao da morte de Ermelinda, e n'aquelle, no fim da tarde
do qual devia realisar-se o enterro, havia na taberna do Canada
extraordinario ajuntamento.

O brazileiro, o sr. Joãozinho das Perdizes, o latinista Pertunhas,
alguns padres e lavradores, caseiros e camaradas do sr. Joãozinho,
falavam, berravam e gesticulavam a um tempo.

O morgado das Perdizes, cujo animo fluctuava indeciso entre favorecer e
guerrear o conselheiro, mas que, depois do despacho do professor que
pedira e conseguira, como que sentia remorsos de o atraiçoar, achava-se
agora muito abalado, porque na questão dos cemiterios era intolerante,
não podendo levar á paciencia que quizessem enterrar um homem, como
elle, n'um logar onde chovia e fazia sol, como n'um campo de centeio.

O brazileiro, conscio do valor do voto eleitoral do sr. Joãozinho, não
se cançava de o catechisar, usando para isso de todas as armas e
atacando-o por todos os pontos vulneraveis que lhe conhecia.

Era assim, por exemplo, que sabendo da sympathia e gratidão do morgado
para com o herbanario, insistia muito sobre a dureza do coração do
conselheiro, que privára cruelmente o pobre velho da sua propriedade,
golpe fatal, que dentro em pouco o levaria ao tumulo; e a proposito
contava como o herbanario pedira de joelhos ao conselheiro para lhe
poupar a casa, e como este se rira das lagrimas do velho, porque tinha
interesse em que não fôsse adoptado o outro plano, que lhe cortava uma
grande porção dos proprios bens.

Ouvindo estas coisas, o sr. Joãozinho, que tinha mais de grosseiro e
bestial do que de perverso, dava punhadas sobre a mesa, despejava copos
de quartilho e dizia pragas sacrilegamente eloquentes.

Outras vezes era no tópico do cemiterio que ardilosamente o espirito
tentador do brazileiro insistia. Fazia avivar a ideia ao morgado de que
elle proprio tinha de ser alli enterrado, porque na freguezia de
Pinchões iam tambem ser prohibidos os enterros na igreja, o que este
negava, berrando; e todos affirmavam o mesmo que o brazileiro dizia, o
que dava logar a novas punhadas, novas irritações e a novas pragas do
sr. Joãozinho.

No dia que dissemos, multiplicára o morgado, mais que de costume, as
suas libações de vinho; e com as faces injectadas, os olhos meio
fechados, ouvia com irritação os commentarios dos circumstantes e
distribuia com profusão pragas e murros.

--Com os diabos!--berrava elle, acabando de despejar um copo de
quartilho.--Se me chega a mostarda ao nariz... sou homem para ir á
igreja e obrigal-os a enterrar lá a pequena.

--Isso não se faz assim com essa facilidade e arreganhos--disse
velhacamente o brazileiro, de proposito para o irritar ainda mais.

--Eu lhe diria se se fazia ou não, se se tratasse de coisa que me
dissesse respeito!... Mas, lá com a filha do Cancella... não tenho eu
nada... lá se avenham.

--A questão não é ser filha do Cancella ou deixar de ser;--tornava o
brazileiro--a questão é do exemplo; enterrado o primeiro, enterram-se os
outros.

--Menos eu--exclamou o morgado.

--Se Deus quizer tambem vmc. se ha de lá enterrar.

--Diabos me levem se...

--Pelos modos--disse um padre do lado--elles enterram a rapariga no
tumulo da familia do conselheiro.

--Pois vêdes; se elles são todos da mesma confraria!--ponderou o
Pertunhas.

--E se não, é vêr no outro dia o que o Herodes fez ao missionario! Então
julgam que aquillo não foi combinação?--disse o padre.

--Dizem que o Herodes ganhou vinte soberanos para lhe
bater--accrescentou um lavrador.

--A mim me disseram que trinta.

--Sempre uma pouca vergonha como aquella!

--E verão que não lhe succede mal.

--Pois não, não; elle está alli, está na rua.

--Diz-se que o soltam á fiança.

--Não pode ser; aquelle crime não tem fiança--ponderou um fazendeiro,
que se tinha por muito visto em demandas e coisas de justiça.

--Ora adeus! com o que vossê vem! Querendo elles...

--Aquillo parece uma seita.

--E ainda ahi está? Pois já se sabe que elles são pedreiros-livres.

--E o tal lisboeta?

--Esse, então, é que é d'aquelles!

O sr. Joãozinho pestanejou, ouvindo falar de Henrique.

--Ah! é do tal petimetre que falam? No tal que foi para a igreja caçoar
com o missionario? Sempre vossês são uns homens de lama, tambem! Ó
Cosme--continuou, voltando-se para um alentado camarada que estava ao
lado d'elle--olha aquillo comnosco, hein? Onde estaria o amigo?

O valentão sorriu modestamente, encolhendo os hombros.

--Pois, senhores--proseguiu o brazileiro, que não queria deixar
arrefecer o enthusiasmo e a irritação do publico--hoje decide-se a
coisa... D'aqui a uma hora está enterrada a pequena e depois... o uso
faz lei.

--Isso é que é verdade--secundou o Pertunhas.

--Faz lei emquanto eu me não lembrar de ir desenterral-a--respondeu,
cada vez mais azedado, o sr. Joãozinho

--Não; isso lá mais devagar--acudiu o brazileiro--vossemecê bem sabe
que, estando ella no mausoléo do conselheiro...

--Importa-me cá o mausoléo? O senhor está a ler. Eu com um empurrão
arrumo aquella platafórma a terra. Ó Cosme, olha nós, hein?

O Cosme tornou a fazer o mesmo gesto expressivo.

--Ahi está quando era preciso que houvesse n'esta terra um homem de
vontade, que não deixasse fazer o enterro--disse o padre.

--Era bem feito, para elles saberem tambem que se não brinca assim com o
povo.

--Lá isso era!--repetiram algumas vozes.

--Eu por mim... se alguem fôr...--aventurou um.

--E eu, eu--ouviu-se dizer de alguns pontos da sala.

--Deixem-se de contos,--continuou o padre--elles fazem o que querem,
porque sabem que não ha um homem de coragem, que se ponha á frente do
povo...

--Lá isso é que é verdade.

--Já não ha homens para as occasiões.

O morgado das Perdizes, que tinha presumpções de valente, e se gabava de
ter varrido feiras a varapau, espinhou-se com estas palavras, e
protestou dizendo:

--Então julgam vossês que eu, se me der para ahi, não vou ao cemiterio,
eu só, e ponho tudo aquillo em cacos? hein?

--Isso não se faz com essa facilidade--disse o brazileiro
impertinentemente.

--A quanto aposta vossê?--bradou, cada vez mais afogueado, o sr.
Joãozinho.

--Ora vamos--continuava o brazileiro com os mesmos modos--não que a
auctoridade...

--A auctoridade! Para mim é que elles veem! Olha o regedor! O regedor
commigo! E os cabos? Ó Cosme, hein? Que te parece? Os cabos comnosco?

O Cosme sorriu e resmungou por entre dentes:

--Se queres tentar...

--Com mil demonios!--disse o morgado, exgotando mais um copo--vamos a
isto! anda d'ahi, ó Cosme!

O Cosme levantou-se.

--Nada de imprudencias--aconselhou o brazileiro, de um modo que tinha a
significação contraria ao pensamento que exprimia.

--Quem tiver mêdo, que fique em casa. Ora quero mostrar a esta gente se
ha ou não ha um homem para as occasiões.

E estavam no meio da sala o sr. Joãozinho e os seus arrojados camaradas,
e o brazileiro já conferenciava com o padre, que lhe respondia com
signaes de intelligencia, como quem tinha projectos filiados n'aquelle
movimento, quando entrou na taberna uma nova personagem que, por não
habitual alli, e por outras circumstancias faceis de conjecturar, causou
geral extranheza.

Era Henrique de Souzellas.

Tendo sabido da morte de Ermelinda, e encontrando no Mosteiro todos
occupados com os aprestes do funeral da pequena, Henrique montou a
cavallo e deu um longo passeio pelos arredores.

Na volta achou-se defronte da taberna do Canada.

Chegou-lhe aos ouvidos o rumor das altercações e das pragas que iam lá
dentro, e isto resolveu-o a entrar, cumprindo assim a promessa que
fizera a si mesmo de estudar aquelle terreno, a vêr se encontrava
vestigios que o levassem a provar a innocencia de Augusto.

Apeou-se, prendeu o cavallo ao peão da porta e entrou.

Ao entrar, percebeu que havia causado sensação a sua presença, e até,
pela expressão com que o fitavam, suspeitou que talvez não fôsse
demasiado prudente o passo que dera.

Era tarde, porém, para recuar, e o orgulho impedia-lhe a menor
manifestação de receio.

Sentou-se tranquillamente n'uma banca vazia.

O Canada, como taberneiro attencioso, veio informar-se pressurosamente
do que desejava o recem-chegado.

Henrique pediu vinho, para pedir alguma coisa, e não obstante estar
firmemente resolvido a não lhe tocar.

O Canada trouxe-lhe um copo largo para deante d'elle, e de motu-proprio
associou-lhe algumas azeitonas, que recommendou como excitadoras da
sêde.

Henrique pediu lume para accender um charuto, e pondo-se a fumar correu
a vista pelos grupos que enchiam a sala. A effervescencia dos animos
havia abatido com o chegar de Henrique, como a da agua em que se
lançasse uma pedra de gêlo.

Reinava, porém, um rumor surdo, um cochichar pouco tranquillisador, e
que ameaçava degenerar em maior tormenta.

O brazileiro escondia-se por detraz de uns homens do povo, para não ser
visto; o sr. Joãozinho olhou para Henrique, como se o não conhecesse, e
conversava em voz baixa com o seu camarada Cosme, o qual fitava no
recem-chegado olhares sombrios e ameaçadores.

Henrique, ainda que interiormente não tranquillo, sustentava-os sem
desviar os seus, e continuava fumando quasi provocadoramente. Pouco a
pouco subiu de tom a conversa dos dois, assim como a dos outros grupos.

--É preciso ensinar estes espiões--dizia uma voz audivelmente.

--Que quererá d'aqui este figurão?--perguntava outro.

--Era bem feito que lhe ensinassem a não se metter com a nossa vida...

O morgado, cada vez mais excitado pelo vinho, cruzou os braços sobre a
mesa, e com o corpo inclinado para deante e os olhos abertos para
Henrique, principiou a dizer, retardando-se-lhe já algum tanto a voz nas
fauces:

--Eu se sei que ha alguem que me anda a seguir os passos e a espiar,
sempre lhe dou uma lição, que lhe ha de lembrar toda a vida! Não, que
isto aqui não é Lisboa! Eu não admitto que se olhe para mim com falta de
respeito... Já disse! Eu não gosto de repetir as coisas... Tenho dicto!
O senhor não ouve?

Henrique continuou a fumar, sem desviar os olhos do morgado.

--Ó senhor lá... Faz favor de não olhar para mim d'essa maneira?

Henrique exhalou uma baforada de fumo e sorriu.

--Vossê ri-se!... Elle riu-se, ó Cosme? Pois elle riu-se de mim? Espera!

E o sr. Joãozinho executou um movimento para levantar-se.

O Cosme imitou-o, e os camaradas puzeram-se a postos.

Susteve-os o brazileiro e outros igualmente pacificos.

--Então! então! isso o que é?

--Quero perguntar áquelle senhor de que é que se ri--bradava o morgado,
furioso.

--Para isso não se incommode--respondeu Henrique--eu mesmo d'aqui lhe
respondo. Rio-me da ridicula figura que está fazendo.

--Ah!... ouvem-n'o? Larguem-me, deixem-me, deixem-me... Ó Cosme!...

E o morgado barafustava entre os braços debeis que o retinham. No povo
principiou a subir a maré das murmurações contra Henrique.

--O senhor vem para aqui armar desordens?

--É para espiar?

--Depois queixe-se...

--Não se metta com a gente.

O morgado bracejando, espumando, e largando por pouco a jaqueta nas mãos
que o retinham, conseguiu, graças aos seus musculos robustos, sacudir de
si todos os obstaculos, e correu para Henrique, que por prevenção se
collocou a pé.

O sr. Joãozinho, cego de embriaguez e de raiva, berrava, voltado para
elle:

--O senhor conhece-me?... O senhor sabe com quem fala? Olhe bem para
mim... Quero vêr agora se ainda se ri.

--Por que não? Se cada vez está mais ridiculo!

O morgado deu um urro selvagem e fez um movimento como para se atirar a
Henrique.

Este recuou um passo, e pegando no copo que ainda tinha intacto deante
de si, despejou-o todo sobre aquella figura já avinhada, dizendo
motejadoramente:

--Ahi tem; é isso provavelmente que vem buscar.

O rosto, as mãos e a camisa do sr. Joãozinho ficaram litteralmente
tingidas. Soltando um rugido de fera, levou a mão á faxa da cinta, como
a procurar uma arma. Henrique, percebendo-lhe o movimento, antecipou-se
a segural-o pela garganta, para o reter e afastar de si.

O morgado torcia-se e espumava sob a constricção de Henrique, e já
congestionado e rouco bradou:

--Ó Cosme!... Ó Cosme!... Mata esse maldito!...

A phalange do sr. Joãozinho correu em soccorro do chefe. O varapau do
Cosme girou no ar, produzindo um zunido como o de um enorme zangão.

O braço diligente do Canada, movido pelo empenho de salvar o crédito do
estabelecimento, afastou a tempo Henrique do terrivel embate, que
infallivelmente lhe seria fatal.

A pancada caiu sobre a mesa, que lascou ao comprido.

Henrique estava incólume, e o morgado sôlto.

Mas o perigo não passara para Henrique. O morgado preparava-se com os
seus para nova investida, quando se ouviu a voz do brazileiro e do padre
bradarem:

--Já está a tocar o sino! Ao cemiterio emquanto é tempo!

E no entanto o brazileiro, chamando de lado o Cosme, convencia-o, por
varios generos de argumentos, da conveniencia d'este partido, e tão
convencido o deixou, que elle berrou d'ahi a pouco:

--Deixa o homem para outra vez, João, deixa-o e vamos a elles ao
cemiterio!

--Ao cemiterio, ao cemiterio! repetiram algumas vozes.

--E queime-se a papelada da camara!

--E mate-se o escrivão de fazenda!

--E quebrem-se os vidros do Mosteiro!

--E pegue-se fogo á casa!

Eram de bastante fôrça estes argumentos para convencer o sr. Joãozinho.

--Pois vá lá, rapazes! Com este faremos contas depois. Ao cemiterio!
Atiremos a terra com o tal mausoléo!

E prepararam-se para sair tumultuariamente. Henrique, ouvindo isto,
percebeu do que se tratava, e prevendo sérios riscos para as senhoras do
Mosteiro, desembaraçou-se dos braços do Canada, que teimava em segural-o
e em dar-lhe conselhos de prudencia, e correu a montar a cavallo para se
anticipar aos desordeiros. Effectivamente assim o fez; mas, ao passar
por entre o grupo d'elles, o varapau do Cosme, floreteando outra vez no
ar, caiu sobre a cabeça do cavallo. O animal, atordoado por a pancada,
partiu em galope desenfreado, e apesar de toda a arte de Henrique,
acabou por o arrojar a terra com tal violencia, que o deixou como morto.

Os desordeiros seguiram, capitaneados pelo morgado, o caminho do
cemiterio. O brazileiro, o padre e o Pertunhas, acolheram-se
pacificamente aos lares.

O sino da igreja continuava a repicar.

 


XXV


Era uma perspectiva profundamente melancolica a do cemiterio da aldeia
por aquella tarde de inverno!

Imagine-se um campo plano e raso, onde vegetavam algumas roseiras de
toda a estação, e a murta e a alfazema, vivendo a custo n'aquelle solo
ingrato, que havia pouco alimentava apenas urzes, tojeiras e pinheiraes.
No centro d'este espaço elevava-se, singello, mas elegante, o tumulo da
familia do Mosteiro, sobre o marmore do qual pousavam tristemente os
ramos flexiveis de um salgueiro chorão, e nos cantos principiavam a
erguer-se, como obeliscos funerarios, quatro jovens cyprestes
ponteagudos. Para além do muro, que circumdava este terreno, estendia-se
um vasto pinheiral, através de cujos troncos, confusamente cruzados, se
podia ainda divisar ao longe uma ou outra casa da aldeia, e o verdor dos
campos e pomares. A igreja parochial erguia, a pequena distancia d'alli,
a grimpa do campanario, e o sussurrar dos desfolhados álamos do adro,
agitados pelo vento, ainda chegava áquella estancia mortuaria.

A tarde tinha um d'estes aspectos ameaçadores, que deixam presentir a
tempestade; d'estas serenidades insidiosas, interrompidas, de quando em
quando, por uma subita viração, que faz revolutear na estrada as folhas
sêccas como em espiraes phantasticas. O céo pintára-se do colorido
melancolico e triste, que em alguns quadros de Annunciação tão fielmente
se vê reproduzido. Estava quasi todo coberto; só muito para o occidente
uma estreita zona se conservava limpa de nuvens, mas n'ella mesmo o azul
recebia, do contraste das côres vizinhas, um cambiante quasi esverdeado.
As nuvens inferiores, acima das quaes passavam os raios do sol, tinham o
aspecto rôxo-livido, que o avizinhar da noite ia tornando mais
carregado; no mais alto da abobada, as superiores, illuminadas ainda,
apresentavam reflexos amarellados que cada vez se afogueavam mais.

Para o oriente haviam-se fundido os nimbos em uma massa unica, uniforme,
cerrada, como uma abobada metallica, cujo livor imitava. De quando em
quando cruzava os ares uma ave de vôo rapido, soltando pios angustiosos.

Era a esta hora que devia effectuar-se o enterro de Ermelinda.

Estava já aberto o jazigo da familia do conselheiro, aguardando a
infeliz creança.

Os padres cantavam na igreja, e o sino repicava, como de festa, saudando
a entrada de mais uma alma sem culpas no gremio dos anjos.

Á porta da igreja, no adro e no cemiterio estacionavam alguns ociosos;
muitos acercavam-se do sepulcro, movidos pela curiosidade que a nova
fórma de enterro lhes suscitava.

As murmurações, comquanto menos manifestas aqui do que na taberna do
Canada, nem por isso faltavam.

Até da porta da igreja para dentro, até de joelhos, até de contas na mão
e olhos fitos no altar, os murmuradores existiam. Velhas beatas clamavam
assim a justiça celeste sobre os impios do seculo, que não queriam
enterrar-se no chão sagrado da igreja. Junto da pia da agua benta,
aspergindo-se, persignando-se sobre a bôca, para que Deus livrasse de
peccar por palavras, n'essa mesma occasião, ellas entoavam os seus
threnos e maldiziam dos reformadores, sobre quem chamavam as penas do
inferno.

Havia tambem no grupo alguns que conferenciavam em voz baixa e se
entreolhavam de maneira mysteriosa, fitando ás vezes os caminhos
proximos, como se d'alli aguardassem alguma coisa.

A morgadinha viera junto ao tumulo despedir-se da filha do Cancella.

Christina ficára a fazer companhia a D. Victoria, que se achára
adoentada.

Segundo o costume de algumas aldeias, Ermelinda devia ser acompanhada á
campa por creanças quasi da mesma idade, vestidas como para festas. Uma
d'ellas era a pequena Marianna, a irmã mais nova de Christina; as
outras, raparigas das vizinhanças, que as senhoras do Mosteiro tinham
por suas proprias mãos vestido e enfeitado. O enterro fazia-se com
extraordinario apparato, não só em honra da familia do Mosteiro, mas
para desvanecer a má impressão dos animos populares por meio da pompa
religiosa.

Era digno do pincel de um artista, a quem a poesia das scenas campestres
ainda inspirasse, o cortejo ao mesmo tempo melancolico e risonho, que,
saindo da igreja, se encaminhava lentamente para o tumulo onde Ermelinda
devia ser sepultada.

O sol quasi a desapparecer sob o horisonte, entrava na estreita zona,
que as nuvens não toldavam.

A paizagem inundava-se agora de luz, mas de uma luz froixa, amarellada,
que dá ao verde da relva e das frondes das arvores uma maior
intensidade.

A cruz de prata que arvorada por um homem de opa, abria o cortejo,
reflectindo aquelles raios amortecidos, brilhava como cingida de uma
verdadeira auréola. Seguiam-se alguns padres de sobrepeliz e batina,
recitando as orações da occasião; entre estes havia um de aspecto
venerando, curvado pelos annos, de physionomia bondosa e pensativa. Era
o cura, santo e respeitavel ancião que, em vez de exacerbar os
preconceitos do povo contra os enterros, no cemiterio, antes
energicamente os combatia e censurava.

Depois vinha em caixão aberto, e no meio de uma numerosa companhia de
creanças, Ermelinda, a quem a pallidez da morte não dissipára a
formosura. Dir-se-ia apenas adormecida. Trazia nos labios o sorriso da
innocencia. As mãos cruzavam-se-lhe naturalmente sobre a tunica
alvissima que a cingia, a mesma com que apparecêra no auto, e a cabeça,
cercada por uma singella corôa de flores, conservava a graciosa
inclinação que lhe era habitual em vida.

As creanças do acompanhamento tinham sido escolhidas, por Magdalena e
Christina, entre as mais gentis da aldeia.

Era uma cohorte de cherubins humanados, qual d'elles mais louro e mais
formoso.

A morgadinha precedêra o cortejo e viera esperal-o junto do tumulo. Com
o braço apoiado na pedra sepulcral, e a fronte encostada á mão, seguindo
melancolicamente com a vista a vagarosa procissão que entrára no
cemiterio, dissera-se uma estatua primorosa, cinzelada por mão de
inspirado artista, para symbolisar junto do tumulo a saudade pelos que
morrem.

Cada vez se ouvia mais perto o latim dos padres; o coveiro viera já
occupar a posição que lhe competia; estreitou-se o circulo dos curiosos
em volta da campa. A cruz parou junto dos degraus do tumulo; os padres
abriram alas e as creanças encaminharam-se, por entre elles, para a
borda da sepultura.

O abbade molhou o hyssope na caldeira, para aspergir a cova.

Uma imprevista occorrencia mudou, porém, o aspecto da scena.

Havia já alguns momentos que começára a ouvir-se um vago rumor, que
tanto podia ser do vento na rama dos pinheiraes, como de multidão que se
approximasse em tropel.

As conferencias solapadas de algumas personagens dos grupos tinham-se
activado ao ouvil-o. Pouco a pouco principiou a mover-se alguma coisa
por entre os troncos do pinheiros; tornaram-se distinctas uma, duas,
tres e muitas figuras de homens, correndo em direcção ao cemiterio,
gesticulando, berrando, soltando ameaças, algumas das quaes já a
distancia a que elles vinham permittia ouvir claramente.

Não era difficil adivinhar a significação d'aquillo. A questão vital do
dia era, para todos os espiritos, a dos enterros, em campo descoberto; a
cada momento se falava em motim prompto a organisar-se e a rebentar.
Ficava pois evidente que tinha chegado a ocasião da crise popular já
antevista.

Cêdo invadia o cemiterio um bando de furiosos, desorientados, de aspecto
feroz, berrando e brandindo ameaçadoramente paus, fouces, chuços, e
todas as peças do extravagante arsenal, a que o homem do povo recorre
sempre ao chamamento da arruaça ou da sedição.

Era o bando dos influentes da taberna do Canada, de cujo proposito
estavamos prevenidos; agora, porém, já engrossado, como a corrente a que
no caminho se incorporam as aguas dos algares.

Entre os primeiros vinha o sr. Joãozinho das Perdizes, e ao seu lado o
_factotum_ Cosme.

Estes, enraivados, correram para o logar onde parára o enterro, bradando
em confusão:

--Alto lá! alto lá! Ninguem se enterra aqui!

--Esperem! Isso não vae assim!

--Não façam a festa sem nós!

--Fóra com os do cemiterio!

--Morram os pedreiros-livres!

--Para a igreja!

--Enterre-se na igreja!

--Olá, sr. abbade, espere por nós!

--Aqui vamos para abençoar a cova!

E n'um momento o cortejo funebre viu-se rodeado de figuras avinhadas,
gesticulando e vociferando pouco tranquillisadoramente.

O cruciferario e os padres, á excepção do velho que dissemos,
abandonaram o posto; as creanças, pousando no chão e abandonando o
esquife de Ermelinda, correram a acercar-se de Magdalena, amedrontadas e
chorosas.

A morgadinha conservou-se junto do tumulo da mãe, olhando com serenidade
para os revoltosos, mas intimamente sobresaltada. E no meio do grupo o
cadaver de Ermelinda, com aquelle sorriso nos lábios, como de anjo que
já de longe estivesse vendo o desencadear das paixões humanas, e rindo
de piedade.

O velho cura foi quem interrogou com voz firme e severa os amotinados.

--Que querem d'aqui?--perguntou elle, fitando-os--com que fins vieram
perturbar, com desordens da taberna, as cerimonias religiosas?

--Não queremos que ninguem se enterre no cemiterio--respondeu o sr.
Joãozinho.

--É verdade! é verdade! ninguem se enterra aqui!--confirmaram
differentes vozes.

--Por quê?--continuou o padre--julgam que Deus não receberá as almas,
cujos corpos não estejam lá dentro, a apodrecer sob os telhados da
igreja e a envenenar o ar que se respira lá?

--Não queremos saber de contos. Não queremos. Já disse!

--Eu não lhes reconheço o direito de querer.

--Ora o padre mestre tem vagares!--disse o façanhudo Cosme--e tu
pachorra para escutal-o, João. Para isso não foi que viemos. Sermões
para a quaresma. Vamos! cante lá os seus reponsos e latinorio, e ande-me
para a igreja. Vamos nós fazer o enterro. Ó Manoel coveiro, traze a
enxada e vem d'ahi.

E dizendo isto, o Cosme já se abaixava para levantar o caixão em que
jazia Ermelinda.

--A justiça de Deus caia sobre o impio, que com as mãos impuras tocar
n'esse cadaver, que está abençoado pela Igreja!--exclamou o velho,
indignado e com um metal de voz vibrante e terrivel.

Na aldeia os homens mais endurecidos não são superiores á intimação
religiosa. O Cosme retirou a mão, como se receiasse que a imprecação do
padre se cumprisse alli mesmo.

Houve uma momentanea quebra no furor popular; um d'estes momentos de
hesitação, que tão fataes são ao exito das revoluções democraticas;
ninguem se sente com coragem de erguer o novo grito, e quasi todos
procuram esconder-se, como envergonhados já do primeiro impeto.

Mas a primeira onda não é a mais temivel; os primeiros bandos populares,
que sáem á rua, soltando o grito de revolta, são ingenuos no meio da sua
quasi selvagem ferocidade; entregues a si, cêdo espontaneamente se
dariam por vencidos; facil seria subjugal-os. Mas, quando esses poucos
momentos, em que tumultuam sem pensamento que os dirija, não são os
precisos para ficarem esmagados sob a repressão do poder; quando o grito
sedicioso, em vez de sacrificar estes revolucionarios, quasi candidos,
mandados por os cautos para tentar a opportunidade da occasião,
apparenta sortir effeito, ou porque satisfaz uma aspiração legitima das
massas, ou porque lisonjeia um falso preconceito d'ellas, vem então a
segunda onda, mais ordenada, mas mais terrivel, porque não é a
embriaguez do motim que a impelle, é a ideia fixa, o pensamento
reservado, o plano de antemão traçado e urdido no mysterio e na sombra.
Vem então reforçar-a primeira, insufflar-lhe o alento que esta não tem
de si, e amparar-se com ella dos golpes dos inimigos. Se a tentativa não
vinga, retiram-se antes que, derrubada a vanguarda, fiquem a descoberto;
mas se a sorte os favorece, deixam cair os primeiros como victimas, e no
campo da victoria adeantam-se então a colher os trophéos conquistados.

Foi assim que, no momento em que o bando capitaneado pelo morgado das
Perdizes, ia ceder, um pouco subjugado pela figura solemne e a palavra
severa do venerando cura, saiu da igreja uma singular procissão.

Á frente vinha o estandarte da confraria erecta pelo missionario; este
seguia-o, e atraz d'elle os seus confrades e sequazes, no numero dos
quaes se encontravam padres e mulheres.

A hoste do sr. Joãozinho sentiu-se reanimar com este refôrço.

Um grito unisono saiu dos labios de todos ao ver a procissão.

--Viva o missionario!

--Viva o santo!

--Abaixo os pedreiros-livres!

E os do bando do estandarte correspondiam a estas saudações, dizendo:

--Abaixo os maçonicos!

--Morram os jacobinos!

--Viva a santa religião!

Mais uma vez este brado augusto, que deveria proclamar o perdão das
injurias, o amor reciproco, a caridade indistincta, era profanado por o
fanatismo e por a hypocrisia, e manchado pelo sophisma de seculos, o
mesmo sophisma que maculou os feitos de armas dos passados guerreiros da
christandade.

A embriaguez da revolução apoderou-se de novo do morgado das Perdizes.
Duas influencias inebriantes lhe disputavam agora o cerebro, que não
fôra nunca dotado, de grande fortaleza contra as paixões.

Palpitava-lhe o coração, quando se imaginava caudilho de um movimento
popular.

Sentia a necessidade de se fazer notavel por um feito heroico.

--Não se consentem aqui enterros, e principiemos já por deitar abaixo
estas pedras--bradou elle, apontando para o tumulo da familia do
conselheiro.

--É verdade! é verdade! Abaixo! abaixo!

--São invenções dos pedreiros-livres!

--É isso, é isso... Pois não vêem que são de pedra!

--Abaixo! Abaixo!

O sr. Joãozinho, arrojando de si o chicote, tirou um machado das mãos de
um homem que lhe ficava proximo, e deu alguns passos para o tumulo.

Magdalena collocou-se deante d'elle.

Já não estava pallida; tinha nas faces o rubor, nos olhos o lampejar da
indignação.

--Afaste-se, senhor!--bradou ella, estendendo a mão para o ébrio, que
parou a fital-a com olhos espantados. Nem sequer pouse os pés nos
degraus d'esta sepultura. Aqui repousa minha mãe. Atraz!

A figura, o olhar, a voz, as palavras de Magdalena exprimiam uma das
resoluções energicas e potentes d'aquella indole sympathica, que aos
affectos e branduras de mulher sabia combinar a firmeza e energia quasi
varonis.

O morgado sentiu uma vaga consciencia da sublimidade d'aquella scena, e
ficou enleado.

Porém o Cosme, o seu genio mau, não sei que lhe murmurou ao ouvido, que
elle desatou a rir a mais alvar gargalhada que ainda escancarou bôca
humana.

Estendendo para Magdalena a mão callosa e grosseira, disse-lhe, com um
sorriso que tinha tanto de cynico como de estupido:

--Está dito! Toque! Gosto d'esse desengano! Toque!

Magdalena repelliu-o com despreso e aversão.

--Ah! ah! Faz-se fidalga!--disse o sr. Joãozinho, despeitado.--Pois não
anda bem.

O missionario inclinou-se ao ouvido de um homem do povo que, depois de
escutal-o, bradou:

--Abaixo com o tumulo dos pedreiros-livres.

--Abaixo!...--repetiram muitas vozes.

--Pois vá abaixo!--repetiu tambem o sr. Joãozinho, adeantando-se com o
machado.

--Para traz!--exclamou outra vez Magdalena, já trémula de exaltação.

O cura, enfiado e convulso, correu para o lado d'ella.

O sr. Joãozinho sorriu.

--Isso é que é mandar! Socegue que não fazemos mal a sua mãe; só lhe
queremos tirar essas pedras de cima d'ella. Devem-lhe pesar!--e soltou,
ao dizer isto, uma gargalhada, que echoou no grupo que o rodeava.

--Abaixo, abaixo!--repetiram ainda as vozes, e o morgado preparou-se
para cumprir o feito. Magdalena sentiu que a razão se lhe perturbava.
Era-lhe preciso defender de uma profanação as cinzas de sua mãe, ainda
que fôsse á custa da propria vida.

Ia para supplicar, para ajoelhar deante d'aquelles homens; já as
lagrimas lhe brilhavam nos olhos, e os labios principiavam a murmurar a
palavra «piedade».

O morgado viu-a assim, e como homem em quem as lagrimas de mulher ainda
achavam caminho para chegar ao coração, hesitou, resmungando:

--Mau! se temos chôro, nada feito.

Mas já não podia hesitar; a onda impellia-o, os gritos redobravam, e
outros braços se agitavam ao seu lado, preparando-se para a obra de
profanação.

O sr. Joãozinho cedeu outra vez e levantou o machado.

Imitaram-n'o muitos.

Magdalena então correu a abraçar-se ao tumulo da mãe para o proteger da
violencia.

Antes de o abater haviam de a ferir a ella.

Os machados, que já se brandiam no ar, suspenderam-se. Alguns
baixaram-n'os, como arrependidos.

O morgado formulou n'uma jura a impressão que lhe estava causando a
scena.

Desviando os olhos, disse, com modo desabrido:

--Tirem essa mulher d'ahi.

Deus sabe que scenas de violencia se seguiriam a esta ordem, se um novo
facto não viesse desviar as attenções e modificar diversamente o animo
popular.

Um homem, que parecia chegar de longa jornada, approximára-se do
cemiterio, cada vez mais pressuroso á medida que se affirmava nos grupos
alli reunidos.

Entrou justamente quando a furia popular crescia mais impetuosa.

A figura da morgadinha, em pé sobre os degraus do tumulo, abraçada a
elle, dominava toda aquella multidão.

Ao descobril-a a distancia, o homem que dissemos soltou uma exclamação,
como de quem tinha comprehendido ou adivinhado a significação d'aquella
scena; e apressando ainda mais os passos achou-se, dentro em pouco, no
logar do motim.

Era tempo.

A populaça allucinada ia talvez exercer algumas d'essas irreflectidas
violencias, que tantas vezes maculam e deshonram a causa do povo nas
luctas em que elle toma parte.

--Que é isto aqui?--disse o homem, rompendo com os braços potentes a
onda que se lhe antolhava.

Á rudeza do impulso ninguem resistiu; em pouco tempo abriu caminho até
ao meio do circulo.

Uma só voz correu por as differentes pessoas do grupo dos amotinados.

--O Herodes... É o Herodes!...--diziam, afastando-se.

Effectivamente era o Cancella o homem que tinha chegado.

Obtendo fiança, graças á intervenção do conselheiro, voltava á terra,
ancioso por ver e beijar a filha, cuja ausencia fôra a unica dor que o
atormentara.

O desgraçado não sabia ainda da sorte d'ella.

Uma carta que Magdalena lhe escreveu, noticiando-lh'a, já não o
encontrára na prisão, para onde fôra dirigida.

Vinha cheio de esperanças o pobre homem, porque eram para animar as
ultimas noticias recebidas.

Vendo de longe o ajuntamento no cemiterio, ouvindo os gritos sediciosos,
conjecturou que havia algum motim popular por causa dos enterros no
adro, que elle sabia serem antipathicos aos espiritos da terra.

Quando descobriu a morgadinha, envolvida pelo tumulto, e no tumulo da
mãe, previu que ella estava correndo perigo, e apressou-se logo a
acudir-lhe.

Ao chegar, porém, ao meio do circulo, que conseguiu romper, e quando ia
a dirigir a palavra a Magdalena, reparou para o cadaver da creança do
esquife, o qual continuava ainda pousado no chão; fitou os olhos
n'aquella pallida e serena physionomia, ainda animada pelo mesmo sorriso
de innocencia, e, apesar da debil claridade da hora, reconheceu a filha.

Nem um só grito de dor lhe saiu dos labios, nem um só movimento de
surpresa; ficou mudo, immovel, com os olhos fitos n'aquella creança
morta, com as mãos juntas e com as faces extremamente pallidas.

Perante esta terrivel manifestação de dor, que toda se concentra, para
n'um momento gastar mais vida do que o perpassar de muitos annos,
calmaram todos os outros sentimentos que dominavam os corações.

Fez-se um profundo silencio. O Herodes, n'uma especie de recolhimento
fervoroso, ajoelhou junto do caixão de Ermelinda, e trémulo, opprimido,
quasi sem alento para chorar, approximou a mêdo as mãos das mãos
cruzadas da creança.

Ao primeiro contacto retirou-as rapidamente por achal-as de gêlo; mas,
tomando-as outra vez, murmurava:

--Jesus, meu Deus! Está morta!... Ermelinda!... Filha!... Isto não pode
ser, Senhor!... Pois minha filha está morta?

A paixão principiava emfim a manifestar-se mais tumultuosa; mas havia no
tom de voz, com que estas palavras fôram pronunciadas, não sei quê tão
intimamente doloroso, que presentia-se que, no curto espaço de tempo que
as precedera, se tinha operado n'aquelle peito uma revolução tremenda,
como se uma intima dilaceração o tivesse destruido. Adivinhava-se lá
dentro já um desalento mortal, um mal de que se não convalesce nunca.
Aquelle homem estava perdido.

--Mataram-me a minha pobre filha! A minha Ermelinda... Que mal lhes
tinha eu feito para m'a matarem?... Ó anjo do Céo! viver eu para te vêr
assim!

E, tirando-a do esquife, cingiu-a contra o peito, cobrindo-a de beijos,
que não conseguiam aquecer o gêlo d'aquellas faces.

Raros olhos ficaram enxutos ante aquella sincera dor. Desvanecera-se a
ira popular; como que uma nobre vergonha, uma vergonha de boa indole,
fazia já renegar aos mais atrevidos os seus excessos passados.

O Cancella continuava:

--Esta frialdade da morte! esta brancura das faces!... isto mata-me,
despedaça-me o coração!... Não me morras assim, filha! Não me morras
antes de dizer-me uma palavra de amor... de perdão. Sim, tu tinhas que
me perdoar antes de morrer! Por que não esperaste ao menos?... Pensar eu
que hei de vêr-te partir, sem que me dês um beijo de despedida!... que
te não hei de ouvir falar! Só! só! Ficar só! Só n'este mundo, Senhor!...
Em que tanto vos offendi, meu Deus, para me castigardes assim!? Em quê?

Magdalena chorava, commovida, ao ouvir estas palavras dolorosas.

O Cancella voltou para ella os olhos já marejados de lagrimas.

--Ó menina Magdalena, pois Ermelinda morreu?... Fale, diga-me. Minha
filha morreu? A que horas?... como?... Falou em mim? pensou em mim?...
Perdoou-me?... Chora, e não responde... Então não me perdoou? Pois minha
filha não me perdoou?

Magdalena respondeu a custo:

--Que tinha ella a perdoar-lhe?

--Não é verdade que eu lhe queria muito? não é verdade que eu vivia por
ella? Agora... que me importa o viver? Como posso eu viver! Ai, se Deus
me matasse agora, assim! abraçado a este anjo! Se Deus me matasse!

E outra vez a estreitava nos braços.

Depois, voltando-se para o povo que se conservava alli, perguntou com
voz alterada:

--Que procuram?... Que querem?... o que fazem ahi armados, ao pé de
minha filha morta?

--Queremos que elles a enterrem na igreja--responderam, já tibiamente,
algumas vozes.

--Na igreja?... Isso é que não! Sabem quem me matou a filha? Foram
elles... Esses que m'a tolheram de mêdos, que lhe roubaram as
alegrias... que fizeram d'ella isto que ahi vêdes... Pois não a
conheciam? Não a tinham visto ahi nos campos, nas novenas e nas
festas?... Viram-n'a nunca com estas côres desmaiadas? viram-n'a sem
aquelles cabellos louros, que tão bem lhe ficavam? e que elles cortaram
sem piedade? E querem-te ainda guardar, desgraçadinha! Não, não te
entregarei. Não, não irás lá para dentro. Quero-te aqui, minha filha;
aqui, debaixo dos olhares de Deus... Eu mesmo te vou deitar como tantas
vezes o fiz quando dormias no berço, que ficará sempre vazio! Ó meu
Deus, que vida vae ser a minha, se te não compadeces de mim, Senhor!...

E suffocado de pranto, que rompia agora abundante, o desesperado pae
ajoelhou junto do esquife, onde depoz com cautela o corpo da filha.

--Obrigado, menina Magdalena, por dar á minha pequena um logar ao pé de
sua mãe; obrigado. Junto d'aquella santa parece-me que dormirá em
socêgo... A minha pobre filha!

E pousando nos labios frios da creança um beijo prolongado, cheio de
paixão e saudade, levantou o esquife nos braços para, por suas proprias
mãos, o descer ao jazigo. Antes, porém, de fazel-o, beijou ainda uma vez
aquella de que mal podia separar-se.

Cêdo baixou sobre o pequeno esquife a pedra tumular.

Nem um só movimento, nem uma só voz tentou oppôr-se áquelle acto, contra
o qual momentos antes se erguia irreprimivel a resistencia popular.

Os influentes mais insoffridos tinham abandonado o campo.

O primeiro que o fizera fôra o missionario. Desde que vira assomar a
figura do Cancella, vieram-lhe ao espirito umas memorias pouco
agradaveis, e julgou avisado retirar a tempo.

Ao terminar esta scena o proprio morgado e o inseparavel Cosme já não
estavam presentes. Sairam desde que viram os animos pouco dispostos a
secundal-os.

Os circumstantes quasi faziam já côro com as arguições do Cancella
contra os excessos do fanatismo e do beaterio.

--A falar verdade--dizia um--este pobre homem tem alguma razão. Isto de
metter scismas ás creanças!...

--E a Rosita do Gaudencio olha que vae por a mesma.

--Tambem é de mais.

--Eu por mim se fôsse a elle... Não sei o que faria.

N'estes e n'outros dizeres se iam retirando do cemiterio.

Não seria difficil a um especulador aproveitar aquelles mesmos braços e
armas para organisar uma sedição sobre uma divisa opposta á que primeiro
os convocára.

Ao vêr cerrar-se a campa sobre o corpo da filha, o Cancella caiu de
joelhos, suffocado em pranto.

As creancas presentes, por contagio da commoção, a que é tão sujeita
aquella idade, choraram tambem.

Magdalena ia a consolal-o, mas o sentimento proprio não a deixou falar.

Só pôde pousar-lhe em silencio a mão no hombro.

O Cancella apoderou-se d'ella e, levando-a aos labios, rompeu em mais
desafogado pranto do que nunca.

A noite crescia; cada vez era mais cerrado de nuvens o firmamento.

Os sons das Avé-Marias vibraram nos ares, prolongados e tristes.

O padre velho pronunciou em voz alta a saudação angelica.
Responderam-lhe as creancas!

Tudo concorria para augmentar a extrema melancolia do quadro.

O Cancella a muito custo se resignou a arrancar-se d'alli.

A morgadinha voltou a casa com o coração oppresso de tristeza.

 


XXVI


Quando Magdalena voltou ao Mosteiro encontrou a casa em completa
agitação.

Momentos antes havia sido para lá transportado, quasi sem accôrdo,
Henrique de Souzellas, que um criado de lavoura se encarregára de trazer
da taberna, onde o Canada o recolhera, até o Mosteiro, sobre um carro de
herva que vinha guiando.

Ao vêr n'aquelle estado o sobrinho da senhora de Alvapenha, D. Victoria
perdeu totalmente a cabeça, e em vez de tomar as providencias que o caso
pedia, deu em ralhar, em fazer exclamações, em andar de sala em sala, de
corredor em corredor, sem tenção formada, sem methodo, sem direcção.
Levava as mãos á cabeça, ajuntava-as consternada; dava uma ordem ociosa;
mandava logo suspender a execução d'ella; impacientava-se; chamava a
toda a pressa um criado e não sabia depois o que tinha para dizer-lhe;
extranhava a tardança de outro que não mandára chamar, e sem dar a final
expediente a coisa nenhuma, nem saber o que fizesse.

Os criados resentiam se d'esta falta de intelligente direcção; paravam
embaraçados, ou corriam sem saber para onde, nem para quê, e sem
adeantarem serviço.

As creanças concorriam tambem para esta desordem, porque, cheias de
susto, andavam agarradas ás saias de D. Victoria, que nem sequer dava
por ellas.

Christina foi a unica pessoa que conservou a presença de espirito
n'aquella occasião.

Nada do que fazia era inutil: nem uma só ordem dava que pudesse dizer-se
ociosa; graças ao methodo com que procedia ás instrucções que ordenava,
a tudo se providenciou convenientemente, sem que D. Victoria o
percebesse até.

Christina tambem, ao vêr chegar Henrique n'aquelle estado assustador,
sentira-se desfallecer; mas disse-lhe a consciencia que lhe era precisa
toda a firmeza, visto que estava ausente Magdalena, em quem sómente
poderia descançar, e logo achou na necessidade valor, e, com serenidade
apparente, só trahida pela extrema pallidez das faces, a tudo attendeu,
tudo previu, tudo providenciou.

Sem uma exclamação, sem uma palavra de desespero ou de susto, sem nem ao
menos erguer o tom de voz, ou modificar a inflexão affavel, que lhe era
natural, preparou um quarto para Henrique e n'elle todos os aprestes que
o seu grave estado pedia, dirigiu os primeiros soccorros com
intelligencia e efficacia, mandou chamar o cirurgião, enviou a Alvapenha
parte do succedido, e ordenou que procurassem Magdalena, occupando
n'isto a menor gente possivel, e deixando a outra toda como alimento á
impaciencia de sua mãe.

A indole de Christina tinha d'estas energias essencialmente feminis e
sympathicas. Não era para o salão que se formára e educára o ingenuo e
meigo caracter da prima de Magdalena. Ahi tomava-a um acanhamento, que
já não conseguiria vencer, mas nas lides domesticas, na vida do lar era
d'essas corajosas luctadoras, a quem a desventura não derruba, cuja
intelligencia por tudo se reparte; d'estes genios providenciaes, que
pairam sobre o estreito horisonte da familia, activos, laboriosos,
achando nas fadigas um prazer, nos sacrificios estimulos para mais amar,
nos sorrisos que provocam, nas dores que alliviam, nas lagrimas que
enxugam, premio bastante para compensar as penas que soffrem.

Mulheres são estas nascidas para serem esposas e mães, o que é quasi o
mesmo que dizer: nascidas para serem mulheres.

A chegada de D. Dorothéa, que acudiu apressada logo que soube o que
succedera ao sobrinho, não dispensou Christina d'estes cuidados, que
voluntariamente tomára.

Comquanto a senhora de Alvapenha fôsse mais razoavel do que D. Victoria,
e de temperamento menos susceptivel d'aquellas inuteis effervescencias,
em que esta se deixava arrebatar, não era tambem mulher para casos
d'estes.

Na sua longa vida de celibataria sem familia, D. Dorothéa perdera ou
embotára a faculdade preciosa de acertar bom caminho em qualquer
imprevista occorrencia.

Facto que destoasse dos monotonos habitos do seu viver de muitos annos
já a lançava em sérios embaraços. Ella propria confessava que inda havia
pouco tempo principiára a afazer-se á estada de Henrique em Alvapenha, e
a fazer o que era seu costume fazer antes de elle vir.

É pois evidente que D. Dorothéa pouco mais podia fazer do que rezar, e
para isso ninguem estava mais habilitado do que ella. Em relação á côrte
celestial era a boa senhora como esses almanachs vivos, que nos sabem
dizer todos os canaes por onde os differentes negocios poderão ser
melhor conduzidos nas côrtes... terrestres... Conhecia a especialidade
de cada santo e para cada um tinha uma fórmula de requerimento
particular.

Christina não a consentiu por muito tempo no quarto de Henrique, onde,
com as melhores intenções, mais embaraçava o serviço do que auxiliàva;
usando de uma debil violencia foi-a levando para a sala do oratorio,
onde ella encetou uma reza sem fim.

Quando a morgadinha chegou, ainda perturbada com as scenas do cemiterio,
e soube do succedido na taberna, correu, assustada, para verificar a
realidade do que lhe diziam.

Nos corredores encontrou um criado caminhando, apressado, n'um sentido,
uma criada em sentido opposto, emtanto que, na sala proxima, D. Victoria
tocava freneticamente a campainha a chamar por ambos.

Magdalena dirigiu-se para lá.

Quando entrou estava D. Victoria pronunciando uma d'aquellas
interminaveis e arrevezadas objurgatorias, de que só a fecunda
verbosidade feminina é capaz. Em geral as mulheres, seja dito antes em
honra do que em censura do sexo, são oradoras de muito mais folego que
os homens que blasonam de eloquentes. O assumpto mais simples, uma
colhér que se perdeu, uma peça de louça que se quebrou, por exemplo,
fornecem-lhes thema para uma prédica de duas horas.

Encaram o assumpto por todos os lados, paraphraseiam-n'o de mil fórmas e
estendem milagrosamente por muitos periodos aquillo que a um homem a
custo daria para uma magra oração.

--Mas onde estavas tu? Sim, eu quero saber onde é que tu estavas. Faça
favor de me dizer onde é que estava?

Isto dizia D. Victoria a um criado, estatelado deante d'ella com a cara
e postura de réo.

--Eu... senhora...--ia elle a dizer.

--Eu senhora... eu senhora... eu nada. Ora é o que é. Um desafôro
assim!... Eu só quero saber se vossemecê ganha soldada para andar lá por
onde muito bem lhe parece. Por as tabernas... por as vendas... Porque
elle não ha mais... Como o dinheiro se vae roubar á estrada... O que tu
merecias... Estou eu aqui a chamar ha mais de duas horas e vossemecê
apparece-me lá quando é muito do seu gôsto? Isto atura-se? A culpa tem
quem eu sei... Tu cuidas que mandriar não é roubar?

--Mas...

--Cale-se! Ouça e cale-se. Tens a lingua muito prompta para responder.
Ora toma-me cautela, senão vaes já, já pela porta fóra. Pouca vergonha!
Uma pessoa aqui afflicta, com as coisas por fazer, a querer mandar onde
é preciso e não apparecer um criado n'esta casa! A pagar-se aqui umas
soldadas por ahi além, e, quando se quer o serviço feito, tem uma pessoa
de o fazer por suas mãos!... Tu cuidas que isso não é peccado tambem?
Deixa, meu amigo, que tens boas contas a dar de ti. Quem é que lhe deu
licença para sair sem ordem de seus amos? Faz favor de me dizer?

--A sr.^a Christininha...

--Eu não quero saber da sr.^a Christininha, quero saber quem lhe deu
licença para sair?

--Mas é o que eu estou dizendo á senhora.

--É muito padre-mestre. Ora não seja confiado, e veja como responde.

Emfim, este dialogo promettia ser eterno, não obstante a urgencia do
serviço de que falava D. Victoria, serviço que ella propria adiava com
este importuno sermão.

A entrada da morgadinha operou uma diversão. D. Victoria esqueceu-se do
criado, o qual pôde retirar-se sem ser percebido e sem receber as ordens
urgentes para que fôra chamado.

D. Victoria principiou a contar a Magdalena o succedido, conforme ella
propria o soubera do moço do carro em que viera Henrique.

--Andam desaforados--concluiu ella.--Já nem attendem a uma pessoa de
respeito. É porque não ha justiça n'esta terra. Estão para ahi uns
patetas de umas auctoridades, que são outros que taes. Era preciso um
exemplo. Ahi está quando eu, se fôsse rei, não tinha pena nenhuma: havia
de os esquartejar e era bem feito!

Cumpre dizer que D. Victoria não era capaz de bater n'um gato.

A morgadinha contou tambem rapidamente o que succedera no cemiterio.

Então é que trasbordou a indignação da tia.

--Tu que dizes, menina?... Tu estás a falar sério?... Pois elles?... Em
nome do Padre... Que mais teremos ainda de ver?... Oh meu Deus!... E
esses malvados ainda estão na rua?... Deixa que teu pae ha de ainda
saber... Não, isso não fica assim... D'aqui a pouco põem-nos o pé no
pescoço. Nada, nada; para os malvados é que se fizeram as forcas... Ora
deixa que... Isto aqui anda trama.

--Não falemos mais n'isso. Agora vou vêr o estado do ferido.

--Vae, e vê se encontras por ahi alguns criados. Eu não sei onde elles
se metteram. Ha de ser preciso ir á botica, e muitas mais coisas, e não
vejo nenhum!

Magdalena deixou sua tia a tocar outra vez a campainha.

Encontrou-se na sala immediata com Christina, que ia em direcção ao
quarto de Henrique, com um copo de agua acidulada.

--Que ha, Christe?--perguntou-lhe Magdalena.

--Que ha de haver, Lena?--respondeu Christina com tristeza, mas com
serenidade ao mesmo tempo--uma desgraça, mas que Deus ha de permittir
que não seja sem remedio.

--Como está elle?

--Estonteado ainda, mas um pouco mais tranquillo do que quando chegou.
Os balanços do carro fizeram-lhe mal. Com as bebidas calmantes que lhe
tenho dado, achou-se bem.

--E ainda não mandaram chamar o cirurgião?

--Já mandei, já veio, já o sangrou, já...

--Mas tua mãe não o sabe e ia mandar...

--Deixa-a lá, Lena. Deixa-a lá com os criados, que por ora não convem
que venha. Elle precisa de socêgo. Já mandei sair d'aqui a tia Dorothéa,
que não adeantava serviço. Queres vir vêl-o?

Magdalena seguiu a prima, e entraram ambas no quarto de Henrique.

Mantinham-se ainda em Henrique as consequencias da profunda commoção
cerebral, que lhe produzira a quéda. A tendencia ao estado comatoso, que
apresentava, tornava incerto o resultado e melindrosissimo o caso.

Voltára-lhe a razão e os sentidos; mas tardia aquella, e estes sem
possibilidade de longa fixação em qualquer objecto. Sobretudo, o que
n'elle se notava pouco de tranquillisar, era uma indifferença morbida
pelo seu estado e por tudo quanto o cercava.

Acceitou das mãos de Christina a bebida refrigerante, que ella mesma
preparára, com os movimentos quasi instinctivos do somnambulo.

No fim, como se o prazer que o frescor do liquido lhe causára lhe
avivasse por instantes a consciencia, fitou em Christina um olhar de
gratidão, sorriu-lhe, e, pousando a cabeça outra vez no travesseiro,
fechou os olhos para dormir. Esta somnolencia era habitual.

Christina não ficou inactiva; preparava um remedio, arrumava um movel,
desviava os raios da luz da fronte do enfermo; ia ao corredor mandar
calar os irmãos ou os criados, ou desfazer alguma dúvida suscitada por
os ultimos sobre o cumprimento de qualquer ordem; outras vezes parava a
espiar o aspecto do doente e a escutar-lhe o rhythmo do respirar. E
sempre movendo-se agil e sem ruido, diligente e sem confusão.

Magdalena, que se sentára a um canto da sala, quasi subjugada pelas
muitas e violentas commoções d'aquelle dia, contemplava a actividade da
prima e extranhava-a.

Ella propria, que melhor do que ninguem conhecia Christina, nunca a
suppuzera capaz d'aquella firmeza de animo e d'aquelle espirito
methodico e providencial de que estava dando agora irrecusaveis provas.

Apreciára-lhe até então os dotes de creança, a bondade do coração, os
extremos de affecto que possuia; mas ainda a não tinha visto tomando
assim tanto a sério a sua missão de mulher e desempenhando-se d'ella tão
dignamente.

Esta ordem de reflexões conduzia naturalmente a outras o espirito da
morgadinha. Reparando para Henrique, assim derrubado no leito, e como
que sob a protecção de uma timida e debil creança que, mais do que elle,
parecia carecer de amparo, Magdalena não pôde reprimir um sorriso
benigno e pensou:

--Sim; aquella cabeça estouvada pôde até hoje passar por este anjo sem o
conhecer; mas é preciso não ter coração para que, ao erguer-se d'aquelle
leito, não seja o seu primeiro movimento o de ajoelhar deante d'ella
para a adorar. E Henrique não é falto de coração. Lida, lida, minha boa
Christina, que para a tua felicidade lidas. Foi a Providencia que quiz
que tu vencesses com as mais abençoadas armas que concedeu á mulher.
Confio em Deus que vencerás. Deixar-te-hei todas as fadigas, para te
pertencer todo o prazer.

E em harmonia com esta resolução, a morgadinha absteve-se de intervir no
tratamento de Henrique.

 


XXVII


Foi opinião do facultativo, que tratou de Henrique, que a vida d'este
correra sérios riscos durante a primeira semana, por não sei que
complicação que se lhe manifestou no decurso da molestia. Se se enganou
o prático, não nos compete a nós decidir; acceitemos-lhe a opinião, como
de legitima fonte, e não profundemos materia alheia ao nosso intento.

Ao fim dos oito dias, porém, começaram a manifestar-se melhoras
evidentes, e o proprio facultativo foi o primeiro a assegurar ás
senhoras, que sempre o vinham consultar á saida com anciosa curiosidade,
que «o homem estava salvo».

De facto, nos primeiros periodos da doença, Henrique caira, como já
dissémos, n'um d'aquelles estados de indifferença para tudo e para
todos, de que se não pode agourar nunca bem. Agora, porém, começava já a
manifestar attenção para os cuidados de que era objecto, e a agradecer,
com palavras de sincera gratidão, o tratamento affectuoso que recebia
n'aquella casa e especialmente os desvelos de Christina.

Esta fôra effectivamente sempre incançavel, solícita e carinhosa
enfermeira.

Os cuidados de que o rodeava, como a um irmão, absorviam-lhe todos os
instantes; prevêr-lhe os desejos, adivinhar-lhe as penas, procurar-lhe
allivio ás dores physicas ou moraes, era agora para ella a tarefa de
cada momento, a preoccupacão permanente de todos os seus pensamentos.

Henrique costumára-se a vêr mover-se no seu quarto aquella meiga e
delicada figura de mulher, creança de hontem, a ouvir-lhe o timbre suave
e ainda um pouco infantil da voz, a cruzar o olhar com aquelle olhar
brando que o fitava com sympathia e meiguice; já se não sentia bem,
longe d'ella, e a cada momento, se estava ausente, dirigia as vistas
para a porta á espera de a vêr apparecer.

Magdalena espiava estes symptomas, notava a influencia crescente de
Christina sobre o animo do rebelde, que até alli fôra insensivel, e
exultava. Muito de proposito a morgadinha afastava-se o mais possivel da
cabeceira do enfermo, por uma razão analoga á que obriga os pintores a
deixar em meias tintas os accessorios de um quadro, para que a attenção
se fixe no objecto principal.

Magdalena estava tambem dispondo uma obra de arte, na qual Christina
devia ser a figura principal.

N'este intento a morgadinha conservava ás visitas que vinha fazer a
Henrique um ar cerimoniatico, que contrastava com a insinuante
familiaridade da prima. Para isso teve Magdalena de suffocar os impulsos
da sua indole de mulher, e de mulher que tão bem comprehendia os deveres
da sua missão, ao mesmo tempo carinhosa e heroica. Apresentava-se o mais
extranha que lhe era possivel a estes pequenos cuidados, que tão
irresistivel influencia exercem no coração do homem que experimenta a
ventura de ser objecto d'elles.

De dia para dia crescia o ascendente de Christina sobre Henrique, e
crescia á custa de Magdalena.

Esta percebia-o e não cabia em si de contente com a descoberta. É
necessario ser dotado de um grande fundo de generosidade, para que um
coração de mulher faça d'estas descobertas, com o intimo contentamento
que Magdalena sentia. É tão natural defeito a vaidade! Não se exprime o
prazer que Henrique experimentava a cada pequeno incidente da vida
domestica, que punha em relêvo o predominio de Christina.

Havia uma hora no dia em que Henrique gosava um d'estes prazeres
placidos, de que tão pouco abundante era todo o seu passado.

Ao fim da tarde, D. Victoria, Magdalena e toda a familia do Mosteiro, e
a propria tia Dorothéa, reuniam-se no quarto do doente para tomarem o
chá. Não era, porém, a presença de nenhuma d'ellas, nem a de Magdalena,
que o consolava e obrigava a suspirar por aquella hora, mas uma pequena
circumstancia, que fará sorrir um homem de sensibilidade embotada,
emquanto o facto se não der com elle. Era que Christina, que em outra
qualquer occasião cedia sempre a Magdalena a direcção dos trabalhos
domesticos, alli dentro não resignava em ninguem essas funcções. Tomava
naturalmente as maneiras de dona de casa, e recebia a mãe, a prima e
todas as outras como visitas de intimidade, sim, mas em todo caso,
visitas.

Não se imaginam os encantos que Henrique achava áquillo. A elle proprio
parecia já que de facto o prendiam a Christina laços mais intimos, laços
mais de familia, do que ás outras senhoras. Era assim que qualquer
pedido, que tinha a fazer, o dirigia sem hesitar a ella, como o faria a
uma irmã; emtanto que naturalmente custava-lhe a incommodar outra
qualquer pessoa, e não o fazia sem as desculpas e cumprimentos do
estylo, que para ella não usava já.

Outra particularidade o enleiava tanto como esta. Era a maneira
despotica por que o governava Christina, fazendo-o cumprir á risca as
dietas e as prescripções do facultativo, recusando-se obstinadamente a
deixal-o lêr, e até ralhando-lhe ás vezes com severidade quasi maternal:
apparencias de dureza, que occultavam thesouros de sensibilidade e de
affecto.

O pobre rapaz, que não conhecera familia, que nunca vira do seu leito de
doença, nas vezes que caira n'elle, o vulto suave e consolador de uma
mãe, de uma irmã ou de uma esposa sorrir-lhe ao despertar, interrogal-o
com essas entonações carinhosas, que nos provocam o cobrir de beijos a
mão que nos estende a taça do mais amargo remedio; elle, que não sabia
ainda o que era sentir-se amparar a fronte, que escalda de febre, pelo
apoio de uma debil mão de mulher, a que o amor dá fôrças
extraordinarias, commovia-se até ás lagrimas agora, e quasi não pensava
sem tristeza na convalescença, que havia de o privar d'aquelles cuidados
affectuosos.

O olhar com que fitava Christina, todas as vezes que ella se lhe
approximava do leito, era mais eloquente de reconhecimento, do que todas
as palavras que lhe dizia, do que todas quantas lhe poderia dizer.

Agora o enleiado e timido era elle, Christina a corajosa.

Um dia em que Henrique parecia soffrer mais do que de costume, e em que
se agitava no leito com a inquietação da febre, Christina, depois de lhe
dar a beber o calmante que lhe prescrevera o medico, perguntou-lhe, com
a mais adoravel candura:

--Não sabe rezar?

Henrique sorriu, respondendo:

--Julgo que desapprendi já as orações que minha mãe me ensinou.

Christina calou-se e ficou tristemente pensativa.

Aquella alma innocente perguntava a si mesma que consolação encontraria
nas provações da vida um espirito que não soubesse recolher-se na
oração.

Henrique, que a viu sorrir, disse-lhe:

--Quer-me ensinar a rezar, Christina?

Christina fitou n'elle um olhar perscrutador, como para sondar a
intenção d'aquellas palavras.

--Juro-lhe que recitarei com o fervor, de que ainda fôr capaz a minha
alma, as orações que me ensinar.

Christina respondeu-lhe gravemente:

--Reze, reze e verá como n'isso acha consolação. Vou emprestar-lhe o meu
livro de orações, quer?

--Por que me não ha de antes ensinar, como minha mãe o fazia?

Christina ouviu com seriedade a proposta.

E o certo é que um dia, em que Henrique passára peor, Magdalena ouviu,
na sala proxima, Christina, recitando uma singela prece á Virgem, e o
doente repetindo-a com docilidade de creança.

Como se ririam d'elle os seus amigos da capital, se n'aquelle momento o
vissem! Mas rir-se-iam de um phenomeno naturalissimo, de uma d'estas
modificações a que todos os caracteres estão sujeitos, quando se dão a
actual-os dois elementos tão poderosos, como se davam em Henrique: a
doença, que quebra a inteireza das indoles mais rijas, e abre o coração
ás doces influencias; e a catechese feminina, a mais poderosa, efficaz e
irresistivel de todas.

Não direi que fôsse com inteira fé que o doente orava; talvez que
houvesse mescla de sentimento profano no prazer suave que experimentava
ao orar assim. É certo, porém, que, desde então, frequentes vezes se lhe
desviavam os olhos para o pequeno crucifixo, que Christina trouxera do
seu quarto para a cabeceira do leito de Henrique.

Outra vez, quando Christina acabava de fazer-lhe tomar um remedio,
Henrique, obedecendo aos impulsos da sua gratidão, beijou-lhe,
commovido, a mão, que ella ia a retirar.

--Que faz?--disse Christina, córando e afastando-a.

--Deixe-me beijar a mão piedosa que me prendeu á vida, á vida que só
agora comecei a amar.

--Ora vamos--acudiu ella, com um meigo tom de reprehensão.

--Como não quer que a adore, Christina, depois de se fazer anjo para me
salvar? Não costuma rezar ao seu anjo da guarda?

--Repare que eu não tenho azas de anjo.

--Mas vôa mais alto ao céo, quando desce assim a velar por um pobre
doente como eu, que nenhuns titulos possue para lhe merecer essa
dedicação, pobre menina! Que vida tem sido a sua ha tantos dias?

--Nenhuns titulos! que diz?--tornou Christina, com um sorriso adoravel.

--Pois quaes?

--Então não somos primos? disse ella, jovialmente.

E saiu do quarto, com aquelle andar ligeiro e facil, que tanto enlevava
Henrique.

Estava já Henrique em convalescença, e o facultativo permittira-lhe
alguns passeios pela quinta, mas ainda não a sua transferencia para
Alvapenha. O logar favorito de Henrique n'estes passeios era á sombra de
umas laranjeiras, que havia a pouca distancia de casa. Das janellas do
quarto de D. Victoria descobria-se o logar. Quando as manhãs estavam
serenas, Henrique ia para alli, com um livro que não fazia tenção de
ler, e apoiando-se ao braço de Christina, que levava a costura para
junto d'elle, para lhe fazer companhia.

D. Victoria seguia-os da janella com as suas recommendações.

--Por ahi não, Christe!... Olha que é muito humido... Dá antes a volta
pela nora... Assim... Cautela com essas hervas, que hão de estar
molhadas... Vê lá que não esteja frio... Olha se esses troncos estão
molhados...

Henrique tornava-se melancolico e sombrio n'estes momentos, a ponto de
uma manhã Christina o interrogar, n'aquelle tom de familiaridade
affectuosa, que principiára a poder ter para com elle, desde que o vira
fraco e doente e a carecer do seu auxilio e protecção.

--Que é isso! Por que está sempre triste, agora que vae melhor?

--Estou triste, porque estou melhor--respondeu Henrique.

--Que está a dizer?!

--A verdade. A poucos doentes terá succedido o que succede commigo. Este
renascer para a vida, este sangue novo que sentimos circular nas veias,
este vigor que de instante para instante conhecemos accumular-se em nós,
que tantos gósos dá aos convalescentes, a mim fazem-me entristecer; como
que estou presentindo já as saudades d'este tempo, que passei prostrado
no leito da doença, Christina.

--Não diga isso.

--E admira-se? Se elle foi o tempo mais feliz da minha vida! Não sabe
que me eram desconhecidos inteiramente os ineffaveis carinhos de familia
que me fez experimentar? Com a saude vão voltar para mim os dias da
solidão, do desconforto, d'aquella vida gelada e inutil que abomino,
desde que principiei a conceber outra... desde que m'a fez conceber,
Christina! Quando penso em voltar para Lisboa...

--E tenciona voltar?

A esta pergunta, feita com a maior naturalidade, Henrique sentiu uma
intima commoção. Ha d'estes effeitos. Ás vezes o olhar menos
significativo, a palavra menos pensada, é pelo coração interpretada de
maneira tal que elle proprio se sente estremecer.

--E queria que eu ficasse, Christina?--perguntou Henrique, sob o dominio
d'essa impressão.

Christina não respondeu logo.

--Deixe-me acreditar que sim; é bastante generosa para isso, para não
vêr partir sem saudade o homem a quem salvou com os seus extremos de
irmã. Esta ideia será a minha consolação; deixe-me partir com ella.

--Partir?... mas... para que ha de partir?

--Então quer que me fique perpetuamente com aquella boa tia Dorothéa,
cuja vida placida vim alterar com os meus habitos cidadãos?

--Pois não lhe custaria a ella mesma vêl-o partir! E depois... que vae
fazer para Lisboa? Adoecer outra vez, ou scismar que está doente, que é
quasi a mesma coisa.

--E dar-me-ha sempre a sua amizade se eu ficar?

--Por que havia de lh'a negar?

--Tempo virá em que outros me disputarão a menor porção de affecto que
me conceder, Christina... e então... então é que eu ficarei mais só do
que nunca... ou mais do que nunca sentirei que o estou.

--Anda só, por que quer... Não ha tanta gente por esse mundo?

--Então a menina não sabe que se está só mesmo em companhia? Quem está
só é a alma. Ai, a alma está só quasi sempre!

--Por que quer.

--Por que desconfiou das companhias que se lhe offereciam, e por que não
obteve a que desejava. Além de que, ha almas tão tristes, que intimidam
outras. E a minha é d'essas. Ora diga, se eu lhe pedisse para fazer
companhia á minha alma, a esta alma melancolica e sombria com que nasci,
não hesitaria? Confesse.

Depois de um momento de silencio e hesitação, Christina respondeu:

--Se a companhia da minha fôsse bastante para desfazer essa tristeza...

--Concedia-m'a?

--E por que havia de negar-lh'a?

Henrique tornou-lhe a mão, apaixonado.

--Christina, sabe que essas palavras podem fazer-me conceber loucuras?
Se o meu coração é tão ousado...

Christina, córando, retirou a mão de que Henrique se apoderou, e
levantando-se, sobresaltada, disse:

--Julgo que são horas do seu remedio. Vou preparar-lh'o.

E fugiu, correndo em direcção de casa.

Scenas mais ou menos analogas a esta reproduziam-se todos os dias
durante a convalescença de Henrique. Reinava o idyllio e uma como
perfumada atmosphera, que exercia profundas revoluções no caracter de
Henrique e de Christina. Elle ia perdendo de dia para dia aquellas
exterioridades artificiosas, que Magdalena por tanto tempo combatera em
vão; ella, Christina, ganhando vida, actividade, soffrendo uma d'essas
metamorphoses analogas ás da vida de borboletas, da infancia, estado de
chrysalida para a imaginação, passava á verdadeira juventude, ao periodo
em que a imaginação ganha azas, em que o coração se completa.

Desde que Henrique se achava em estado de passeiar, não havia razão
possivel para permanecer no Mosteiro; portanto tornou-se inevitavel a
mudança para Alvapenha.

Já se não fez sem lagrimas a despedida.

Choraram as creanças, chorou D. Victoria e a propria Magdalena se sentiu
commovida; só Christina não se achava na sala em que se passou a scena.

Encontrou-a Henrique no patamar da escada por onde tinha de sair.

Seria casual esta circumstancia?

Henrique não perguntára por Christina; dizia-lhe o coração que a
encontraria alli.

--Volto á minha solidão, Christina--disse-lhe, commovido.--Não lh'o
tinha eu dicto?

A pobre menina quiz sorrir, mas do esforço que para isso fez só lhe
resultaram lagrimas.

--Não diga mais nada--disse Henrique, levando aos labios a mão que ella
não retirou.--Essas lagrimas bastam-me.

Escusado é dizer que estas palavras mais lagrimas produziram.

E Henrique desceu do patamar com a vista ennevoada por ellas.

Christina ficou a chorar na varanda.

A morgadinha veio, sem ser sentida, abraçal-a, dizendo:

--Pago-te hoje o abraço que me déste no outro dia; mas eu escuso de te
perguntar... «Pois tu amaval-o?»

--Ai, Lena!...--exclamou Christina, cada vez chorando mais.

--Faltava aos vossos amores este arremêdo de infelicidade, e imaginaram
uma separação de duzentos passos para poderem representar a scena das
despedidas, e chorarem como Paulo e Virginia. Impostores!--dizia
Magdalena, para consolal-a.

Em Alvapenha Henrique passou horas de intensa melancolia.
Impacientavam-n'o as conversas de sua tia e de Maria de Jesus, a qual
taes mudanças notava n'elle, que chegou a aventar á ama a ideia de que a
doença tinha transtornado o juizo ao rapaz, opinião que D. Dorothéa
levou muito a mal.

Outro symptoma que se manifestou em Henrique foi a indignação que lhe
causou a carta de um amigo que, com o maior scepticismo, lhe perguntava
novas dos seus habitos pastoris e das Tirces e Galatéas que o traziam
enlevado. Henrique revoltou-se d'esta vez, com todo o fogo do coração,
contra aquelle tom frio e sarcastico da epistola, e nem lhe respondeu.

Depois teve Henrique uma visão.

Não se assustem os leitores que antipathisam com o maravilhoso. Nada ha
aqui que se pareça com as visões épicas; foi uma visão como muitas, que
nós todos, uma ou outra vez na vida, experimentamos; um d'esses
espectaculos, que nos prepara de quando em quando a imaginação, esta
fertil e poderosissima creadora, que nos acompanha incessantemente. A
quem não terá de facto succedido vêr transformar-se pouco a pouco uma
perspectiva, desvanecerem-se os effeitos da visão exterior,
enfraquecerem as impressões dos sentidos, e avultarem, tomarem fórma,
realidade, vida, as imagens de uma mais intima, espontanea e mysteriosa
visão?

Estava Henrique á janella do quarto que habitava em Alvapenha. Sabemos
já que se gosava d'alli um panorama extenso e amenissimo. A tarde
parecia de primavera. Henrique corria com prazer a vista pelos
differentes logares da quinta de Alvapenha, com as suas noras e mêdas,
colmeias, eiras, cabanas e sebes. Era uma verdadeira quinta rural,
resentindo-se, porém, um pouco de ser a proprietaria d'ella uma senhora
velha, e com pouca actividade para tratar da lavoura.

Pouco a pouco deixára Henrique de vêr a quinta como ella era.

Principiava a visão interior.

As arvores copavam-se de folhagem; messes aloiradas ondulavam nos
campos; numerosos rebanhos cobriam os lameiros extensos; atulhavam-se de
cereaes os celleiros; alastrava-se de grão o chão das eiras; gemiam as
noras e os lagares; soltavam-se ás prêsas os diques, e uma verdadeira
rede liquida envolvia em suas malhas a vegetação dos campos; alvejavam
as camisas dos ceifadores e echoavam nos montes e arvoredos as
cantilenas aldeãs; e os mais caracteristicos e poeticos episodios da
vida agricola desenrolavam-se aos sentidos, deleitosamente allucinados,
do sobrinho de D. Dorothéa. Era uma perfeita georgica! E elle a dirigir
todos os trabalhos, a regular o serviço, verdadeiro patriarcha ao modo
antigo; e ao seu lado, e em toda a parte, á sombra de uma arvore, á
borda do tanque, debruçada no muro, por entre os silvados das sébes
vivas, uma figura suave, casta, adoravel... a figura de Christina!

Quem mezes antes adivinharia que Henrique de Souzellas, o homem
elegante, o homem da moda, em quem estavam encarnadas todas as
qualidades boas e más da sociedade que frequentava, havia de ter uma
visão como esta!

No quasi extase, em que a imaginação o lançára permanecia ainda, quando
soube que o procuravam de mando das senhoras do Mosteiro.

Apressou-se logo a receber a visita.

Era o velho Torquato que vinha saber d'elle, de mando de D. Victoria e
das meninas.

O pobre homem era um dos que ficára com affeição a Henrique depois que
estivera no Mosteiro.

Henrique ouvia-o com uma paciencia, que elle já em poucos encontrava,
contar as longas historias dos seus tempos passados, e isso era o
bastante para o velho lhe querer bem.

--Diga ás senhoras que eu mesmo irei ralhar com ellas, pelo incómmodo
que estão tendo commigo. E vossê tambem, Torquato, na sua idade, estes
passeios.

--Ai, não tem dúvida! Isto faz bem... É exercicio a final... Pois é
verdade. Eu d'antes corria a aldeia toda n'um minuto... agora... Olhe
que eu já tenho os meus annos! Veja lá, se no tempo dos francezes eu era
já homem feito... Inda me lembra...

Seguiu-se um episodio da época, e depois, sem transição sensivel:

--Mas lá emquanto ás senhoras... Isso sempre devo dizer que teem tomado
um cuidado!... Todas!... Até a Christininha!

--Sim? Tambem essa?

--Ora se tambem!... Pois a sr.^a D. Victoria?

--Mas... mas... Christina... a sr.^a D. Christina, então...

--Isso é um coração de pomba. Inda ha pouco, ao sair, já vinha no pateo,
e ella veio ter commigo a correr, e disse-me: «Olhe, ó Torquato, ha de
reparar-lhe para a cara e vêr se tem ar mais triste.»

--Ella disse-lhe isso?

--É verdade. E eu lá lhe vou dizer que o encontrei alegre como...

--Não, não; não lhe diga isso, homem--atalhou Henrique.

--Então por quê?!

--Porque... porque... porque não é verdade... Então eu estou assim tão
alegre como isso?

--Não digo que esteja, mas para a socegar...

--Diga que me achou com saude, mas triste. E não lhe disse ella mais
nada?

--A sr.^a D. Victoria...

--Falo de Christina.

--Nada... Ai... Agora me lembro... mas isso é segredo.

--Diga, diga.

--Não é nada; é uma promessa que...

--Uma promessa? Que promessa?

--Sim, olhe, eu digo-lhe, mas guarde segredo! Quando o senhor esteve
muito mal, que nem o cirurgião dava nada por si, a Christinita prometteu
rezar na capella dos Cannaviaes as estações da meia noite...

--As estações da meia noite?

--Sim; as estações rezadas á meia noite á Senhora que está na capella da
casa dos Canaviaes; É tão milagrosa que, dizem, nunca recusou favor que
se lhe pedisse assim. Contava meu pae...

E vinha um caso comprovativo da tradição popular.

--Sim, lembra-me que já me falaram n'isso--disse Henrique, pensativo.

--É verdade. O peor é que é este seu criado quem tem de a acompanhar até
á quinta, depois d'ámanhã á meia noite...

--Então depois de ámanhã á meia noite?

--Sim, mas não diga nada, que isto é segredo da pequena.

--Esteja descançado.

E depois de mais algumas historias contadas por Torquato, e a que
Henrique não ligou attenção, aquelle retirou-se.

Ao ficar só, Henrique caiu em nova e profunda abstracção.
Elaborava-se-lhe na ideia um projecto. O de ir aos Cannaviaes para
presenciar aquelle acto de fervorosa devoção de Christina, que
supplicára por elle, enfermo, com o ardor da mais pura crença, com a
effusão do mais generoso affecto.

N'este intento tratou de se informar a respeito dos caminhos que
conduziam á quinta, que elle ainda não visitára, e sobre como penetrar
até á capella da casa, onde devia ser cumprida a promessa.

D. Dorothéa, D. Victoria e Magdalena deram-lhe os esclarecimentos
precisos sem que suspeitassem das intenções com que elle lh'os pedia.

 


XXVIII


A casa e quinta dos Cannaviaes, deshabitadas depois da morte da velha
morgada, madrinha de Magdalena, era uma sombria residencia, situada n'um
dos mais êrmos e melancolicos logares da aldeia.

O tempo, cuja acção não contrastada se exercera livremente n'ellas,
viera augmentar o aspecto soturno que desde a origem apresentava esta
casa, ennegrecendo-lhe as paredes, revestindo-lhe de hervas os telhados,
de musgo as padieiras e as junturas de pedra, e povoando-lhe de morcegos
e de corujas os buracos dos muros. Emfim a superstição popular terminára
a obra fazendo divagar as almas do outro mundo por aquellas salas e
corredores vazios, e nas ruas d'aquella quinta, entregue á natureza.

A defuncta morgada, que não se recolhera á aldeia senão depois de ter
gosado na capital de todos os esplendores da vida das cidades, e
brilhando nas mais concorridas e elegantes salas do seu tempo, gosava
n'esta pequena terra, onde passára o resto da vida, de uma fama de
espirito forte, que em grande parte concorrera para generalisar a
opinião de que a sua alma andava ainda penando por cá.

Contavam-se entre o povo anecdotas absurdas, em relação aos annos da
mocidade da morgada. A imaginação popular fazia a biographia d'aquella
senhora, colorindo-a com as tintas maravilhosas com que costuma
phantasiar a vida dos grandes centros, de que vive afastada.

A morgada, que só renunciou ao mundo quando os espelhos começaram a
falar-lhe da vaidade das glorias que repousam nos encantos da belleza,
passou, como succede muitas vezes, de um extremo a outro extremo, e da
vida elegante ás práticas de devoção.

Nos Cannaviaes ouvia missa todos os dias, confessava-se todas as
semanas, commungava todos os mezes, sem comtudo resignar absolutamente
os habitos de elegancia de que já fizera uma necessidade natural.
Trajava sempre com distincção e esmero, e ao corrente das modas.

Tudo isto e as proprias devoções da morgada, acabaram por convencer o
povo de que havia grandes culpas no passado d'ella, as quaes procurava
remir á fôrça de missas. Dizia-se que a morte a viera tomar antes das
contas saldadas, e que por isso a sua alma voltava á terra penando.

Já se vê que o logar era para apavorar as imaginações timidas, e de
noite pouca gente da aldeia gostava de passar por lá.

Henrique depois de ter dicto em Alvapenha que ia passar a noite ao
Mosteiro, d'onde voltaria tarde, saiu mais cêdo do que a hora devida, e
fazendo obra pelas informações da morgadinha, dirigiu-se para os
Cannaviaes para escolher posição d'onde pudesse, sem ser visto, observar
Christina, não tendo ainda resolvido se lhe appareceria ou se a deixaria
imperturbada na sua piedosa tarefa.

A noite fizera-se escura e ameaçava chuva.

Henrique, alumiando-se com uma lanterna de furta-fogo, já um pouco
habituado aos caminhos estreitos e escabrosos do campo, atravessou a
aldeia, examinando com attenção todos os objectos que lhe deviam servir
de indicadores da estrada.

Pouco passava das dez horas, quando se achou em frente de uma casa que
por apparencia, julgou ser a demandada propriedade.

Era uma casa escura, crivada de pequenas janellas e peitoril, tendo a um
lado um alto portão da quinta, do outro a capella, cuja porta Henrique
achou ainda fechada.

O sussurro dos cannaviaes agitados pelo vento era uma garantia de haver
acertado.

Principiavam a cair algumas grandes gottas de chuva e a escuridão a
fazer receiar grandes aguaceiros.

Henrique achou prudente procurar um abrigo onde pudesse resguardar-se.
N'este intento approximou-se do portão. Com grande espanto seu, achou-o
aberto.

Já teria chegado Christina?... Enganar-se-ia elle na casa?... Estaria
habitada a quinta?

Estas tres explicações do inesperado facto debatiam-se-lhe no espirito,
sem que elle soubesse qual adoptar.

Transpoz o portão e entrou na quinta. Nenhuma apparencia de vida.

A chuva caía com mais fôrça. Para se abrigar, Henrique subiu os degraus
de pedra, no tôpo dos quaes havia um patamar lageado e convenientemente
toldado.

Ao chegar alli achou tambem aberta a porta da primeira sala, e ao fim de
um corredor pareceu-lhe divisar luz.

Henrique parou indeciso.

--Decididamente enganei-me. Não é aqui a casa dos Cannaviaes. Sempre
perguntarei.

E bateu as palmas.

Ninguem lhe respondeu.

Bateu outra vez; o mesmo resultado.

Aventurou-se a entrar, deu alguns passos pelo corredor e bateu.

O mesmo silencio; seguiu até o fim do corredor em direcção á luz; chegou
a uma sala mobilada com antigas cadeiras de alto espaldar, e alumiada
por um candieiro de metal, pousando na pedra da chaminé, em cujo fóco
brilhavam ainda uns carvões candentes.

--Parece uma historia de fadas!--pensava Henrique.--Dar-se-ha que a alma
da morgada goste ainda das commodidades?

Ia a dirigir-se a uma porta para chamar, quando se abriu outra do lado
opposto, e appareceu-lhe uma mulher velha, com um vestuario meio do
campo, meio da cidade, e trazendo uma luz na mão. Henrique voltou-se e
preparava-se para lhe dirigir a palavra, quando ella primeiro lhe disse:

--Procurava alguem, o senhor?

--Peço perdão pelo meu atrevimento. Bati muito tempo á porta, e emfim
como a visse aberta, decidi-me a entrar. Desejava saber onde é aqui a
casa dos Cannaviaes.

--A casa dos Cannaviaes é esta mesma.

--Mas... eu julgava... suppunha ter ouvido dizer, que não morava aqui
ninguem.

--E não o enganaram. Hoje por acaso é que está cá a sr.^a morgada.

--A sr.^a morgada?--perguntou Henrique, sem bem saber o que devia pensar
da resposta e de tudo que via.

--Sim, senhor; a sr.^a morgada, e não tarda aqui. Ella esperava-o.

--Ah! A sr.^a morgada esperava-me?

--É verdade--disse a mulher, sorrindo.--Adivinhou que o senhor vinha
aqui. E o que é que ella não adivinha?

Henrique dava tratos á imaginação para comprehender esta scena.

--Então é a sr.^a morgada em pessoa que...

--Que o convida para tomar uma chavena de chá--disse uma voz por traz
d'elle.

Henrique julgou conhecer o timbre d'aquella voz.

Voltou-se, viu a morgadinha que entrava na sala, com o sorriso nos
labios e a mão estendida, com aquella habitual franqueza de maneiras,
que de tantos encantos a revestia.

Henrique exclamou, admirado:

--A prima Magdalena!

--A morgadinha dos Cannaviaes, se faz favor. Competia-me fazer as honras
da minha propriedade, que pelos modos está para ser muito visitada hoje.
Chamei, para me acompanhar, a Brizida, que viveu muitos annos aqui com a
minha madrinha, e hoje vive em casa sua do rendimento do legado que
aquella senhora lhe deixou. A Brizida é quem se encarrega de vir, de
quando em quando, abrir as janellas d'esta casa, para que os ratos não a
destruam de todo, e os tortulhos lhe não enfeitem as paredes.

--Mas como soube que eu?...

--Isso é um segredo. Não o esperava, porém, tão cêdo, nem imaginei que
nos viesse ter assim ao intimo da casa. Fiquei embaraçada quando o vi.
Ao principio quasi julguei que era a alma de minha madrinha. Mas fez bem
em recolher-se... Ouve?

E com o gesto indicava a chuva, que já batia com fôrça nas vidraças.

--O peor é se isto não espalha e a Christina muda de tenção.

--O vento é do mar, menina; isto são aguaceiros--notou Brizida, como
para desvanecer aquelle receio.

--Pois sabe que Christina vem?

--Eu sei tudo. Ora sente-se ao fogão, que deve vir muito frio. Accendi o
lume, porque estava aqui dentro um ar humido e mofento, muito pouco
hospitaleiro.--Brizida, olhe que se não percebam lá fóra as luzes, que
podem amedrontar Christina. E feche a porta da sala. Abra o côro da
capella e prepare chá para quatro. Aqui mesmo, Brizida, aqui mesmo,
porque a cozinha está pouco habitavel.

Emquanto Brizida cumpria as ordens que a morgadinha lhe dava, esta,
chegando uma cadeira para o fogão, sentou-se defronte de Henrique de
Souzellas.

--Agora conversemos amigavelmente, primo Henrique. E antes de mais nada,
responda-me a uma pergunta! O que o trouxe aqui?

--Pois não diz que sabe tudo?

--Até certo ponto, entendamo-nos. Não vão tão longe as minhas faculdades
que cheguem a devassar intenções, que por ventura á propria consciencia
de quem as fórma, repugne acceitar.

--Não é esse o meu caso; as minhas intenções são reconhecidas e
approvadas pela minha consciencia. Vim para assistir ao espectaculo
commovente de um anjo que ora por mim. É um espectaculo a que ainda não
assistira, prima. Admira-se da minha curiosidade?

--Acho-a natural e até... louvavel. O ponto está que a sua convalescença
esteja bastante segura já. Porque o primo Henrique convalesceu ha dias
de duas doenças.

--De duas?

--Sim; e a mais rebelde não foi a de que o cirurgião o tratou.

--Então?

--A peor, aquella de que eu havia chegado já a desesperar, era a que lhe
tinha descoberto logo na sua chegada aqui, uma doença moral; revelava-se
por uma maneira de vêr as coisas, de pensar e de proceder
verdadeiramente doentia.

--Estou curado d'isso.

--Estará? eu sei!... É certo que já é bom signal admittir que era
doença.

--Dou pelo seu diagnostico, prima, e até pelo tratamento que me
aconselhou em tempo; falou-me na vida campestre, no interesse pelos
negocios locaes... e sobretudo em uma paixão sincera.

--Ah! e experimentou a receita?

--Experimentei e curei-me.

--Ou tomou por fôrças de saude o que era apenas o falso vigor da
convalescença? Convem não abusar; ouço dizer aos medicos que são
perigosas as recaidas.

--Pois teme que eu recaia?

--Por que não? Esta sua vinda aos Cannaviaes a horas mortas... comquanto
motivada por louvaveis intenções... tem ainda assim uma certa feição
romantica... que era bom vigiar... Sempre vim para acudir a algum
accidente.

--É um perfeito medico da época; não tem fé na efficacia dos remedios
que prescreve.

--Tenho; mas não desacompanho a acção d'elles, isso não. Agora fale-me
com franqueza: ao recordar-se de certas ideias com que veio de Lisboa
não se lhe figuram algumas extranhas e inacceitaveis já?

--Confesso que algumas...

--E comprehende agora o que eu lhe dizia? o remedio para o mal do
coração que o minava, tinha-o a seu lado, desde o primeiro dia em que
puzera os pés no Mosteiro, e teimava em ser cego para o não vêr.

--Desde o primeiro dia? Pois Christina...

--Christina deixou de ser creança desde aquelle dia.

--Querido anjo!

--Querido anjo?... Diz bem; deve adoral-a, tal como ella é ingenua,
timida, supersticiosa até, se quizer; mas bondosa, mas adoravel, mas uma
indole talhada para acalmar as paixões demasiado violentas de um
caracter como o seu; para lhe fazer ter mais esperança na vida, mais
coragem e mais fé no futuro.

Henrique, depois de instantes de silencio, disse, sorrindo, para
Magdalena:

--Diga-me uma coisa, prima Magdalena; comprehendendo tão bem as
necessidades do coração dos outros, não pensou ainda nas do seu?

--E quem lhe disse que as tinha?

--Conceda-me tambem um pouco da sua admiravel perspicacia, e não se
julgue tão impenetravel, que não offereça leitura aos olhos que a
observam.

--Ah! Então leu?

--Uma pagina eloquente de sentimentos generosos, prima; uma pagina que
eu só agora estou habilitado para a apreciar como merece; pagina, porém,
tão recatada, que julgo que ainda a não leu bem o principal interessado
n'ella. Cego, como eu fui.

--Não leria?--perguntou Magdalena, sorrindo.--Está certo d'isso?

--E pode ser que lesse, pode; ou pelo menos que por inspiração a
adivinhasse. Ha casos d'esses.

Magdalena tornou, mudando de tom:

--É ainda cêdo para tratar de mim. Quando me resolver a isso, verá que
sou um doente modelo. Não hesitarei ante a violencia do remedio.

--E por que demora o tratamento?

--Pois parece-lhe que será urgente o caso?

--Prima Magdalena, o que vejo é que ha mais fortaleza da sua parte do
que....

--Silencio!--disse a morgadinha, escutando.--Pareceu-me ouvir...

N'este momento a Brizida, que fôra a uma sala immediata, voltou, dizendo
em voz baixa:

--Parece-me que abriram as portas da capella. Devem ser elles.

--Então depressa--disse Magdalena.--Abra-nos o côro; mas antes apaguemos
as luzes. Teve uma feliz lembrança em prevenir-se com essa lanterna de
furta-fogo. Traga-a e siga-me; mas occulte a luz. Não faça barulho.

Apagadas as luzes da sala, Magdalena e Henrique entraram, por um
corredor estreito, no côro da capella, d'onde a morgada costumava ouvir
missa, emquanto mandava patentear ao povo o pavimento inferior.

Quando alli chegaram, com as precisas precauções para não fazer estalar
as tábuas do soalho, havia já em baixo uma luz escassa, que desenhava
longas no pavimento as sombras de duas pessoas, ainda occultas sob a
varanda do côro.

Cêdo se adeantaram para o altar, e claramente se reconheceu serem
Christina e Torquato.

Caminharam silenciosos até ao altar principal. Torquato subiu os tres
degraus, sobre que este ficava elevado e accendeu duas vélas de cera
que, em ennegrecidos castiçaes de madeira dourada, ornavam uma imagem da
Virgem da Soledade. Espalhou-se no recinto uma frouxa claridade, que não
dissipou as sombras dos recantos, nem as que se condensavam no tecto.

Christina fez signal então a Torquato, para que se retirasse; e o velho,
com os passos arrastados e tossindo, caminhou para a porta, que dentro
em pouco se ouviu gemer sobre os gonzos e fechar-se com estrondo.

Tudo ficou depois em silencio.

Christina então ajoelhou deante d'aquella imagem, que era a de que a
tradição popular contava milagres, e em profundo recolhimento ficou
immovel a rezar a devoção promettida.

Henrique de Souzellas sentia-se enlevado por esta scena. Aquella
angelica creatura viera alli agradecer á Virgem o tel-o salvado! Aquelle
anjo amava-o? Havia pois no mundo quem o amasse com um amor puro e
candido, em que elle já nem acreditava. E cabia-lhe a suprema ventura de
gosar um amor assim!

Magdalena via com alegria a commoção de Henrique.

A oração de Christina prolongou-se por alguns minutos.

Henrique murmurou, ajuntando as mãos:

--Deus te recompense, anjo, a consolação que me dás.

--Não peça a Deus o que está na sua mão--respondeu-lhe em voz baixa
Magdalena.

--Que diz?

--Está ou não sinceramente apaixonado?

--Como nunca imaginei que fôsse possivel estar.

--Crê na pureza d'aquelle coração?

--Como na dos anjos.

--Está convencido de que o pode salvar, ella?

--Não ha crédo que professe com mais fé.

--Por que não vae então ajoelhar ao lado d'ella e jurar-lh'o?

--E consente?

A morgadinha respondeu-lhe, conduzindo-o ao principio de umas estreitas
escadas que pela espessura da parede iam do côro para a capella-mór.

--Aqui tem o caminho--disse ella.--Siga-me. E, servindo-se da lanterna
de furta-fogo, foi descendo com precaução. Henrique seguiu-a.

No fim da escada, Magdalena occultou de novo a luz, e, dados mais alguns
passos, parou junto de um reposteiro.

--Agora faça o que lhe dictar o coração--disse ella para Henrique.

Este correu o reposteiro com precaução, e achou-se na capella.

Christina rezava ainda, e como a porta por onde Henrique entrára ficava
por detraz d'ella, não o viu chegar.

Henrique ficou a contemplal-a todo o tempo que ainda durou a oração.

Ao levantar-se, Christina, voltando a cabeça, descobriu-o, e soltou um
grito de susto. A obscuridade que havia na capella não lhe deixou
perceber logo quem fôsse, o que mais lhe augmentou o terror.

Henrique caminhou para ella, dizendo-lhe:

--Não tenha receio, Christina. Sou eu.

Reconhecendo-o, a timida rapariga ficou espantada. Como se explicava a
presença de Henrique n'aquelle logar? Nem tempo teve de imaginar
explicações. Henrique accrescentou:

--Sou eu, Christina: eu a quem a menina salvou e por quem com tanto
fervor veio rezar aqui. Obrigado, mais uma vez lhe digo, obrigado,
Christina. Quiz fazer-me comprehender todos os castos e abençoados
prazeres da familia; depois de me dedicar as suas vigilias, dedicou-me
as suas orações. Deixe-me beijar-lhe a mão com todo o affecto, com toda
a paixão que pode haver na minha alma.

E dizendo isto, levou aos labios a mão, que ella, de enleiada, nem
ousára retirar das suas.

--Agora peço-lhe, Christina, que, já que me fez antever as delicias do
viver da familia, não me condemne para sempre ao supplicio de não as vêr
realisadas. Lembre-se de que não conheci mãe, de que não tenho irmãs, de
que tenho vivido só, e de que cêdo voltarei a essa vida solitaria e
gelada, que me será agora uma tortura. Compadeça-se de mim. Quer vir
occupar no meu coração o logar vago que ha n'elle para as affeições de
mãe, de irmã, e de...

--Henrique!...--murmurou quasi inintelligivelmente a sobresaltada
creança.

--É deante d'esta Virgem, a quem orava com tanto fervor, é pousando a
mão sobre os Evangelhos d'esse altar, que eu lhe prometto mais do que
uma paixão ephemera de rapaz, prometto-lhe a constante adoração, rodeada
de respeito, do homem que as suas virtudes reconciliaram com o mundo.
Acceite, Christina, acceite o offerecimento do meu coração.

Christina tremia sem poder responder.

Magdalena entrou por sua vez na capella.

--Não se pode exigir assim uma resposta directa, primo Henrique--disse
ella.

Christina, cada vez mais surprehendida por estas successivas e
inesperadas apparições, correu para a prima.

--Tu, Lena! Tu tambem aqui?!

--Então não me competia receber em minha casa as visitas? Mas vamos,
dize-me aqui ao ouvido a resposta que queres que eu dê por ti ao sr.
Henrique de Souzellas, que me parece acaba de te pedir, muito
terminantemente, a tua mão.

Christina não respondeu, senão cingindo-a mais intimamente ao seio.

--Não responderam os labios, primo,--continuou a morgadinha--mas falou o
coração ao meu na linguagem das pulsações. Estou-o sentindo.

--E disse?...

--Que havia de dizer? Que sim.

E Magdalena, que tinha a mão de Christina na sua, extendeu-a a Henrique,
que a apertou apaixonadamente e a beijou de novo.

Parece-me poder affirmar que d'esta vez já houve correspondencia.

O velho Torquato, farto de esperar de fóra da capella, e achando que as
rezas se prolongavam de mais, resolveu chamar Christina.

Ao entrar divisou porém tres pessoas em logar de uma só, que esperava, e
recuou estupefacto e aterrado.

Suppôz que almas penadas andavam na capella.

O bom do homem não ousava approximar-se.

Magdalena, que o ouvira entrar, animou-o, dizendo:

--Não tenha mêdo, Torquato. A alma de minha madrinha encarregou-me de
fazer esta noite as suas vezes. Sou eu.

O espanto do feitor não era agora menor. Esfregava os olhos, como se
receiasse estar dormindo, e não passava de olhar para Magdalena, para
Henrique e para Christina, sem entrar na explicação do que via.

Custou a fazel-o voltar da sua estupefacção.

Momentos depois entravam todos quatro na sala onde Henrique fôra
recebido por Magdalena, e ahi a velha Brizida lhes serviu o chá.

A antiga criada da morgada fez muita festa a Christina, e, como já
percebera a casta de sentimentos que havia entre esta e Henrique, soltou
algumas insinuações, que a obrigaram a córar, e a rir Magdalena.

Passou-se uma bella noite, conversando-se e rindo-se em perfeita
intimidade.

--Que longe estava eu hoje de pensar n'este delicioso serão!--disse
Henrique.--Decididamente é de maravilhas esta casa; o povo tem razão. A
morgada defuncta foi decerto quem se encarregou de fazer os convites.

--É verdade, como foi que vieram aqui?--perguntou Christina, já mais
desenleiada.--Já sei, foi este Torquato que me não guardou segredo. O
que merecia!...

--Eu, menina?! Ora essa! Eu até...

--N'este Torquato ha alguma coisa mais para receiar do que a
indiscreção--disse Magdalena.

--Que é?--tornou a prima.

--É a discreção.

--Então por quê?

--Torquato é discreto, com umas meias palavras, que exprimem mais do que
a verdade.

--Eu...--ia a dizer o velho, justificando-se, quando Henrique o
interrompeu.

--Mas emfim, expliquemos mutuamente a nossa presença aqui.

--N'esse caso é justo que fale primeiro Christina.

--Que hei de eu dizer?

--Explica a tua presença aqui. Então não ouviste o primo Henrique?

--Ora, já o sabem.

--Mas talvez não lhe seja desagradavel ouvil-o outra vez da tua bôca.

--Não, não, a minha vinda, essa não tem que explicar.

--Que diz, primo Henrique?

--Não tenho coragem para pedir mais do que tenho pedido já.

--Pedido e obtido, pode accrescentar. Bem, Christina veio aqui trazida
por um sentimento de piedade e de...

--Lena!

--Assim mesmo sempre seria curioso ouvir a narração dos sustos que ella
sentiu por o caminho desde o Mosteiro até aqui. O Torquato não era
decerto bastante para lhe limpar a estrada de visões e malfeitores.

Christina poz-se a rir.

--Mas vamos ás explicações da presença dos mais. A Christina avisou o
Torquato, o Torquato avisou o primo Henrique...

--Eu?!

Christina olhou para o velho com um meigo gesto de reprehensão.

--Se eu o soubesse!...

--Eu... eu não disse... eu... só disse...

Henrique tomou a palavra.

--Torquato não é de todo o culpado. Pois acha que não haveria em mim
alguma coisa que me ajudasse a adivinhar? Torquato atraiçoou-se
involuntaria, inconscientemente. Mas quanto á prima...

--Eu? Soube-o tambem do Torquato.

--Pois tambem a ti o disse? Olhem que homem de segredo!

--Isso é que não. Eu não disse á sr.^a D. Magdalena... Ella é que...

--Foi o que eu disse ha pouco. A discreção do Torquato é que revelou o
segredo.

--Como?

--O Torquato falou com o seu velho amigo herbanario.

--Eu a esse não disse.

--Não, a esse quiz occultar, e d'ahi é que veio o mal.

--Ora, ora...

--O que eu sei é que Vicente veio procurar-me á porta do Mosteiro, e
ralhou-me com uma severidade e uma aspereza, como ainda lhe não tinha
merecido nunca. Estava o homem convencido de que eu era a heroina de
umas aventuras romanticas que se verificavam de noite n'esta minha
propriedade dos Cannaviaes. E tão irritado estava, que me não quiz
ouvir, quando eu procurava esclarecer o que para mim era um perfeito
enigma. Ao retirar-se, porém, disse-me que não lhe quizesse occultar a
verdade, porque do Torquato soubera tudo.

--Eu não disse...

--E depois a prima...

--Eu então chamei este senhor, armei-me de toda a minha gravidade, e
exigi que falasse e me dissesse tudo o que havia e tudo o que sabia a
respeito de uns passeios aos Cannaviaes; elle estava pêrro, mas a final
falou.

--Mas sabia tambem que eu vinha?--perguntou Henrique.

--Pois não se lembra de que pela manhã me tinha cançado com perguntas a
respeito do caminho para a casa dos Cannaviaes? Eu já extranhava a
insistencia; depois do que soube, tive uma suspeita. Perguntei ao
Torquato se lhe falára n'isto. A resposta d'elle, apesar da sua
hesitação e ambiguidade, habilitou-me a concluir que teria o gôsto de
receber o primo em minha casa.

--E que disseste no Mosteiro? Sabem que vieste?

--Não. Disse que ia visitar Brizida, onde passaria a noite. Bem me viste
sair. Viemos ambas para aqui ainda com dia para pôr a casa em arranjo.

--São mesmo coisas tuas--disse Christina, rindo.

--Mas eu não disse nada--insistiu Torquato.

--Porém, por que motivo se irritou tanto o herbanario?--perguntou
Henrique.--Que imaginava elle a final?

-Ah!... É porque este sr. Torquato teve a habilidade, com as suas meias
palavras, e reticencias indiscretamente discretas, de arranjar as coisas
de maneira que o velho Vicente chegou a persuadir-se de que havia aqui
um romance em que entrava eu... A discreção do Torquato é das que
respeita os nomes, de maneira que as honras da aventura fôram-me todas
attribuidas... N'este mesmo romance parece que entrava tambem o primo
Henrique...

--Ah! percebo agora--disse Henrique, rindo.--O velho é ciumento por
procuração.

Magdalena abanou a cabeça, sorrindo tambem.

Christina, que já estava habilitada para entender a allusão de Henrique,
sorriu com elles.

O Torquato foi o unico que nada percebeu.

Eram perto de duas horas, quando a morgadinha lembrou a necessidade de
voltarem a casa.

--Choverá?--perguntou Brizida.

--Julgo que não--respondeu Magdalena, e como para assegurar-se correu a
vidraça da janella e examinou o firmamento.

Henrique acompanhou-a.

--A noite está serena--disse ella.--São horas de voltarmos.

--Mal sabe a tia D. Victoria por onde lhe anda parte da familia a estas
horas--disse Henrique, debruçando-se á janella, e continuou:--Mas que
agradavel noite! Não poder prolongal-a por toda a eternidade!

--Vamos, vamos,--respondeu Magdalena--o dia d'ámanhã deve ser feliz
ainda, porque...

N'isto, como se alguma coisa tivesse observado na rua que lhe attrahisse
a attenção, calou-se, mal podendo reter um leve grito.

--Que foi?--perguntou Henrique, que o percebeu.

--Nada--respondeu ella, correndo a vidraça e afastando-se da janella.

--Viu a alma da morgada?--perguntou jovialmente Henrique, vendo-a
preoccupada.

--Não--respondeu Magdalena, meio a sorrir e meio séria.--Pode porém
haver apparições peores.

--Que é, Lena? Que viste tu?--perguntou Christina, assustada.

--Socega, filha, nada que possa transtornar o nosso regresso. Vamos.

E, passados poucos minutos, sairam todos os que até alli animavam
aquella habitação solitaria, e ella permanecia outra vez em trevas, em
silencio e na sua quasi desolação.

 


XXIX


No dia seguinte, pela manhã, recebeu-se na Alvapenha noticia da chegada
do conselheiro e de Angelo. A impressão profunda que a este ultimo
causára a morte de Ermelinda, tinha resolvido o pae a trazel-o comsigo
para a aldeia a distrahir e robustecer com ares livres do campo. D.
Dorothéa apressou-se, segundo o costume, a visitar o conselheiro;
Henrique acompanhou-a e de caminho pôl-a ao facto do estado do seu
coração, e encarregou-a de communicar isto mesmo a D. Victoria e de
fazer-lhe, em seu nome, um formal pedido da mão de Christina.

D. Dorothéa ficou a principio admirada. Ainda se não desacostumára de
considerar Christina como uma creanca. Havia tão pouco tempo que usava
ainda vestidos curtos!

Reflectindo porém, acabou por achar a coisa natural, vantajosa e
agradavel, e felicitou o sobrinho pela boa escolha que fizera.

Henrique, com o prazer pueril de um verdadeiro namorado, não se fartou
de fazer falar a tia nas qualidades de Christina, e d'esta vez as
habituaes prolixidades da boa senhora não conseguiram enfastial-o.
Estava devéras apaixonado!

Chegaram ao Mosteiro.

O conselheiro recebeu-os com ar de satisfação e apparente tranquillidade
de espirito; mas um exame attento conseguiria descobrir-lhe no sorriso o
que quer que era forçado a revelar certa preoccupação interior.

É que, desde que chegára, tinha sondado melhor o animo do publico da
terra, ou dos influentes que o representavam, e reconhecera que estava
muito arriscada d'esta vez a sua candidatura.

Não lhe sobrava muito tempo para trabalhos; porque d'ahi a dois dias
realisavam-se as eleições. Tudo estava por fazer, emquanto que os seus
adversarios havia muito que tinham tudo feito. Algumas das personagens
politicas, com que contava, falharam-lhe, e até nem o visitaram. As
auctoridades locaes eram-lhe manifestamente hostis, desde o
administrador até o cabo de policia.

Henrique percebeu a violencia que sobre si estava fazendo o conselheiro
para conversar em assumptos alheios á questão que o interessava, para
sorrir e prestar attenção ao que se dizia.

De quando em quando lia ou relia uma carta, tomava um apontamento,
escrevia um bilhete, retirava-se por momentos para receber algum agente
eleitoral que o procurava, despachava um emissario; finalmente não podia
socegar.

Foi na occasião em que elle consultava mais uma vez a lista dos
recenseados d'aquelle circulo eleitoral, emquanto Henrique e Magdalena
faziam por distrahir Angelo, conversando em varios assumptos, que entrou
D. Victoria, a quem acabava de ser formulado por D. Dorothéa, e em nome
de Henrique, o pedido da mão de Christina. D. Victoria trazia bem
visivel na physionomia todo o jubilo que a nova lhe causára. Era muito
amiga de Magdalena, mas desculpem-lhe esta vaidade maternal, o que mais
que tudo a lisonjeára, fôra a preferencia dada por Henrique a sua filha
sobre a morgadinha.

--Tenho muito que lhe ralhar, sr. Henrique--dizia ella.--Estou mesmo
muito arrenegada comsigo.

--Por quê, minha senhora?--perguntou Henrique, sorrindo.

--Pois então isso é coisa que se faça? Já precisa de embaixadores para
se dirigir a mim?

--Perdão, minha senhora! Era meu dever deixar completa liberdade a v.
ex.^a para fazer todas as reflexões que a proposta lhe suggerisse e
discutil-a á vontade, e, por delicadeza, podia v. ex.^a ás vezes, sendo
eu mesmo quem a fizesse, cohibir-se...

--Ai, eu havia de pôr muitas dúvidas! Na verdade um rapaz de tão má
nota! Ora sempre tem coisas!

--Visto isso, posso esperar?

--Da minha parte uma guerra de morte--disse D. Victoria, não resistindo
a dar um abraço a Henrique, já com familiaridade de mãe; abraço que
Henrique retribuiu com affecto.

O conselheiro não dava attenção á scena.

--Então, mano!--bradou-lhe D. Victoria.--Deixe lá essas politicas que
temos negocios sérios em casa.

--Sim?--disse o conselheiro, dobrando os papeis que lia, e simulando um
ar de interesse, que realmente estava muito longe de sentir.--Então de
que se trata?

--De um negocio importante, em que é preciso que seja ouvido.

--Ah! Então é um caso de consciencia?

--E não o diga a rir, que é. Aqui o sr. Henrique de Souzellas acaba de
me fazer um pedido... Isto é, a prima Dorothéa foi que m'o fez.

--Mas por ordem d'elle--acudiu esta.

--Pois sim, o que era escusado.

--Mas então que pede de nós este caro sr. Henrique?

--Nem mais nem menos do que uma das nossas pequenas.

O conselheiro relanceou um olhar para Magdalena. Já, por mais de uma
vez, a hypothese do casamento da filha com Henrique lhe tinha passado
pela ideia, e de modo algum lhe era antipathica. Henrique tinha um bom
nome, rendimentos sufficientes, e, se quizesse, um futuro na sociedade,
e o conselheiro tudo isto invejava para seus filhos.

Magdalena, que percebeu no gesto do pae a ideia que elle tivera, quiz
tiral-o quanto antes da illusão e disse:

--Quem mais razão tinha para protestar era eu. Ha de fazer-me falta a
amizade de Christina.

--Ah!--disse o conselheiro, com um sorriso um tanto contrafeito.--Então
quer-nos roubar a nossa Christina, sr. Henrique?

--É apenas uma restituição que peço, sr. conselheiro, porque não me
posso resignar a viver sem coração.

--Faz madrigal? Está então apaixonado devéras, já vejo--disse o
conselheiro.--Pela minha parte folgo de o vêr assim associado á minha
familia, por tão bom caminho. Mas onde está a thaumaturga, que fez o
milagre de converter este celibatario emerito, que eu conheci em Lisboa
a rir-se do casamento?

--Por piedade, não me recorde esses peccados deante da prima Magdalena,
que é tão rigorosa nos castigos!

--Diga antes, que sou tão excessiva nas recompensas.

--Mas o mano tem razão--disse D. Victoria.--Onde está a Christe?
Admira-me não a vêr aqui!

--Admirar, não me admiro eu--tornou o conselheiro.--É provavel que
soubesse do que se tratava, e eclipsou-se discretamente. Porque isto foi
decerto discutido por as partes interessadas, antes de subir ao nosso
tribunal.

Henrique e Magdalena sorriram.

--Ora se foi! E parece-me que tu, Lena, fizeste d'esta vez de S.
Gonçalo. Deus queira que te não queimes ainda no fogo ao ateares d'estes
fachos.

--Eu vou buscar a Christe--disse a morgadinha, rindo das palavras do
pae; e saiu da sala como para evitar que a conversa seguisse a direcção
que elle lhe deu.

O conselheiro voltou n'este intervallo a consultar papeis e cartas,
emquanto D. Victoria falava com Henrique, e D. Dorothéa tentava
distrahir Angelo, contando-lhe várias historias de creanças, que elle
mal escutava, e que ella tinha a candura de julgar alimento accommodado
á intelligencia d'elle.

Passados momentos voltava Magdalena, trazendo Christina comsigo, a qual
já vinha com o rubor nas faces e com os olhos no chão.

--Aqui está a accusada--disse a morgadinha ao entrar.

O conselheiro tornou a guardar os papeis e disse jovialmente para a
sobrinha:

--Ora venha cá, venha cá, que temos muito que falar.

E passando-lhe a mão por baixo do queixo, para a obrigar a fital-o,
continuou:

--Então assim se trama uma conspiração ás caladas? Surprehender a gente
com uma noticia de tal ordem! Ainda ha pouco demittido um ministerio de
bonecas, e já um golpe d'estado d'esta natureza! Sim, senhora, é
energia. Nunca o esperei. Ora dê cá um beijo, emquanto não tenho quem me
peça explicações por os que lhe roubar.

E o conselheiro, com perfeita galanteria e affecto, beijou-a nas faces
tingidas pelo pejo e pela alegria.

Depois, voltando-se para Henrique, accrescentou, sorrindo:

--São os penultimos.

--Os penultimos?--disse D. Victoria, rindo.--Ora essa! Então para quando
ficam os ultimos?

--Para quando a vir com a grinalda de noiva.

--O que eu nunca esperei é que fôsse a nossa Christe que désse o exemplo
á prima. Não tens vergonha, Lena--disse D. Dorothéa para a morgadinha,
em quem esta reflexão fez nascer um gesto de contrariedade, que trouxe
aos labios d'Angelo o primeiro sorriso d'aquella manhã.

O conselheiro e Henrique sorriram tambem.

--Eu prometto casar-lhe a prima Magdalena, dentro em pouco, tia--disse
Henrique com intenção.

--Não prometta. Esses negocios deixe-os ao meu cuidado. Bem sabe que sou
teimosa e tenho a ingenuidade de acreditar que ainda ha coisas no mundo
que se devem decidir pelo coração sómente.

--E Deus me livre de o não consultar. Seria abjurar os meus proprios
actos.

--O _sómente_ é que veio de mais, filha--disse o
conselheiro.--Attende-se ao coração, embora. Mas só ao coração? Isso era
bom se vivessemos em um mundo de corações.

A chegada de novas personagens desviou a direcção da conversa e
modificou a scena.

Eram influentes politicos, que obrigaram as senhoras a retirarem-se.
Henrique ficou, a pedido do conselheiro. O mestre Bento Pertunhas
entrava no numero dos recemchegados. O papel que alli desempenhava o
latinista era de suspeitosa natureza.

Vinha tambem a alma politica do partido do conselheiro, o Tapadas, que
n'estas épocas não comia, não dormia, não respirava, por assim dizer,
senão eleições, e desenvolvia uma miraculosa actividade, correndo a
todos os pontos perigosos, conquistando votos, um a um, e lidando por
desenredar as meadas politicas dos adversarios e enredar as suas.

--Então que novas temos da campanha, meus senhores?--perguntou o
conselheiro, puxando cadeiras para os seus constituintes, e affectando
um tom de confiança que não sentia.

--Más, sr. conselheiro,--respondeu o Tapadas--muito más. Vejo isto muito
feio.

--Ora a coisa ainda não ha de ser tão má como diz.

--Nada, nada; não me agrada. V. ex.^a descuidou-se. Tenha paciencia, mas
eu bem lh'o disse. Eu sei como estas coisas são. É preciso não as
desacompanhar. V. ex.^a devia vir ha mais tempo.

O Pertunhas acudiu:

--Deixe lá, sr. Tapadas, o sr. conselheiro tem amigos decididos, e os
serviços que fez á terra...

--Ora com o que vmc.^ê vem!--replicou o Tapadas, com modo azedo.--Então
não sabe como é esta gente? Então não os ouve ahi berrar já contra as
estradas, quando até agora berravam por não as terem?

--Meia duzia de garotos--tornou o Pertunhas.

--Não, senhor, não é assim; não estejamos a enganar-nos. Os que não
dizem mal das estradas, sabem muito bem dizer que ao ministerio as
devem, e estamos na mesma. A coisa vae mal.

--Então decididamente o Seabra?...--perguntou o conselheiro.

--Esse é o chefe de todos elles--disse um merceeiro.--Á porta da minha
loja o ouvi eu estar a dizer ao cunhado do administrador que o traçado
da estrada era o peor que podia ser, que se gastava alli um dinheiro
louco, sem utilidade para o povo.

O conselheiro olhou para Henrique, dizendo:

--Lembra-se do que eu lhe disse na noite do Natal, a respeito d'este
traçado e dos pedidos do brazileiro para elle se adoptar? Admire agora o
velhaco.

Henrique sorriu, encolhendo os hombros.

--Arremedos do que se faz em terras maiores--disse elle.--Não extranho.

--E tem razão--respondeu o conselheiro.

--Mas, a final--continuou o conselheiro--o homem não tinha na freguezia
grande influencia. Como é que...?

--Tem-se popularisado ultimamente um pouco mais. Deu em franquear vinho
por ahi a toda a gente, e depois os padres estão bem com elle e de mal
com v. ex.^a.

--Mas como se lhe desenfreou tão de repente esse odio contra mim?
Deixámo-nos em janeiro nas melhores disposições um para com outro...

--Pelos modos que ahi se falou de uma carta do ministro ou ao
ministro...--disse o Tapadas, com maneiras de quem não dera grande
importancia ao objecto a que se referia.

O conselheiro mudou logo de assumpto.

--E os padres? os padres? Que heresia disse eu, que peccado grande
commetti, para me terem esse odio?

--Dizem que v. ex.^a é mação--respondeu um lavrador.

--O diacho da questão do cemiterio...--acudiu o Tapadas.

--Isso acalmou já.

--Não acalmou, não senhor. O povo não está contente. É certo que lhe
passou a furia do principio, depois d'aquella historia com o Cancella,
mas...

--Quando me lembro de que aquella canalha se atreveu a insultar minha
filha!

--É melhor não falar n'isso--aconselhou prudentemente o Tapadas.--O que
lá vae, lá vae. Os homens estão meio arrependidos, e até o missionario
perdeu um pouco entre o povo, porque o Herodes tem por ahi berrado que
foi elle quem lhe matou a filha, e o pobre homem mette pena. Até me
dizem que por causa d'isso o padre já se retirou da aldeia. O que era
bom era vêr até se se falava ao Herodes; porque talvez elle possa agora
ainda arranjar alguns votos--accrescentou o Tapadas, disposto a
servir-se da dôr de um pae como arma eleitoral.

E continuou-se fervorosamente na edificante obra de combinar tramas
politicos. Discutiram-se os diversos processos de angariar as potencias
eleitoraes do circulo. Estudaram-se as ambições de cada uma;
ponderaram-se as exigencias feitas por uns, os desejos adivinhados em
outros, para este o emprego de um afilhado, áquelle o bom exito de uma
demanda, a outro o pagamento de uma divida, ou o resgate de uma
hypotheca, e a alguns até nua e descaradamente o dinheiro. N'esta
empresa de subornar consciencias e sophismar a urna entreteve-se o
conciliabulo, sem que nenhum dos membros d'elle sentisse remorsos por o
que estava fazendo alli.

Entre os discutidos foi o sr. Joãozinho das Perdizes um dos principaes.

--Então sempre é certo que me roeu a corda esse basbaque?--perguntou, ao
falar-se n'elle, o conselheiro.

--É dos mais assanhados--responderam-lhe.

--Mas quem diabo lhe virou a cabeça? Um velhaco a quem tantas vezes
tenho tirado de apuros!

--Tanto lhe atordoaram os ouvidos com a historia dos
cemiterios...--disse o Pertunhas.

--Deixe lá, alli andou tambem um presente que lhe fez o brazileiro. O
morgado está muitas vezes com a corda na garganta--explicou malignamente
o Tapadas, cujo scepticismo, robustecido no uso das demandas e da
politica, não achava explicações tão plausiveis como a corrupção.

--E depois o homem tomou as dores pelo Vicente herbanario--insistiu o
tendeiro.

--Ora adeus!--disse o Tapadas.--Bem me fio eu n'essas compaixões. Quem
não os conhecer...

--E que tem o tôlo com os negocios do herbanario?--insistiu o
conselheiro, de mau humor.

--Então? Deu-lhe para alli.

--Qual historia! Para mim é que vem com isso?!--teimava o sceptico
Tapadas.

--Tambem uma coisa que buliu com elle foi aquillo no outro dia na
taberna com este senhor--disse o Pertunhas, designando Henrique.

--Sinto, sr. conselheiro--disse este--se de alguma maneira concorri...

--De modo nenhum. Aquelle selvagem vae para onde o empurram. Á ultima
hora é capaz de mudar de tenção. E por causa d'elle é que ficou
despachado professor um pateta em vez de Augusto.

Depois de dizer estas palavras, o conselheiro accrescentou, com
despeito:

--Mas até certo ponto foi bom para me desenganar a respeito do caracter
de certos homens. Ha vinganças tão torpes e mesquinhas, que nenhum
aggravo as justifica.

Henrique procurou defender Augusto; achou porém o conselheiro obstinado
na sua crença.

Henrique alludiu ao brazileiro Seabra, como o mais plausivel promotor da
intriga.

--Embora o fôsse--respondeu o conselheiro--mas que tem isso? O Seabra
não veio a minha casa, não suspeitava da existencia de tal carta. Alguem
houve que a leu primeiro e que lh'a foi entregar depois, e já é ser
muito indulgente suppôr que fôram só cegueiras de vingança e não a
sordidez da cubiça quem o moveu a essa infamia.

Henrique viu que perdia o seu tempo em defender Augusto; comtudo jurou
pela innocencia d'elle.

O conselheiro ia a responder-lhe, quando o distrahiu uma altercação
travada entre Pertunhas e o Tapadas.

Aquelle estava sendo fertilissimo em alvitres para vencer resistencias
eleitoraes. O Tapadas, que desconfiou d'elle, disse-lhe subitamente:

--Olá, ó sr. Pertunhas, é melhor parolar menos e fazer coisa que se
veja; ou deixa só as obras para o seu amigo Seabra?

D'aqui protestos energicos do Pertunhas, e a altercação virulenta, que o
conselheiro teve de apaziguar.

A conferencia durou até ás horas do jantar.

 


XXX


Chegára o prazo e dia assignalado de se dar perante a urna a batalha
eleitoral.

A azáfama politica activára-se n'estes ultimos dias consideravelmente.
De parte a parte tinham-se posto em campo todos os influentes e em
exercicio todas as armas. Promessas, alliciações, pressão de
auctoridades, exigencias a dependentes, subornos, ameaças mais ou menos
declaradas; de tudo se lançava mão.

Ás vezes até o calor das discussões degenerava em pugnas menos
pacificas; os argumentos physicos, que figuram no catalogo das razões
mais convincentes, haviam já sido invocados a pleitear ambas as causas,
berrando-se depois, de um lado contra a violencia e o despotismo do
governo, do outro, contra os manejos sediciosos e anarchicos da
opposição.

Em algumas freguezias que entravam n'este circulo eleitoral, eram os
padres que arvorando a cruz e o estandarte, prégavam a cruzada contra o
conselheiro e instavam com o povo para que não elegesse para
representante um atheu e um pedreiro-livre; em outras eram os agentes do
brazileiro e os da auctoridade, fazendo promessas aos caudilhos
populares, resgatando penhores, levantando hypothecas, remindo dividas,
empregando afilhados, e conquistando assim para o seu partido.

O conselheiro e os seus parciaes não desprezavam tambem nenhum d'estes
mesmos meios, e grossas quantias circulavam a combater as do brazileiro
Seabra.

Os periodicos do Porto e de Lisboa recebiam os echos d'esta batalha.
Havia muito que em longas e diffusas correspondencias os gladiadores dos
dois campos se mimoseavam com as mais descabelladas verrinas,
assignando-se: o _Amigo da verdade_; o _Epaminondas_; o _Vígilante_; a
_Sentinella_; o _Alerta_, etc., e pondo ao soalheiro as máculas da vida
privada uns dos outros, e todas as bisbilhotices da terra,
correspondencias que, felizmente para crédito da humanidade, por ninguem
mais, além dos interessados e dos que já os conheciam, eram lidas.

O brazileiro era um dos mais activos e fecundos collaboradores d'esta
secção periodistica. Os seus communicados eram estirados, compactos,
obscuros e enrevezados tanto ou mais do que os seus discursos. Perdia-se
em minuciosos incidentes; em labyrinthos de orações secundarias, d'onde
a grammatica da principal saía frequentemente maltratada, deixando ficar
por lá o sujeito, o verbo ou qualquer complemento necessario. Mas o
brazileiro imaginava que o paiz inteiro aguardava com ancia os seus
escriptos. Era frequente abrir uma resposta a alguma zargunchada de um
seu adversario, por estas palavras: «Os leitores hão de ter notado o meu
silencio, depois das calumniosas asserções...» Os leitores não tinham
notado nada.

Finalmente a aldeia achava-se em plena fermentação politica.

Eu tenho a fraqueza de a não amar debaixo d'aquelle aspecto.

A vida politica tem isso comsigo. Quanto mais estreito e mais apertado é
o circulo social onde se manifesta, quanto mais vizinhos e conhecidos
são os que vivem d'ella, tanto mais acanhada, mexeriqueira e antipathica
se torna. Se a politica do nosso paiz é já pequena, como elle, e
degenera em desavença de senhoras vizinhas, que fará das terras pequenas
d'este paiz, em que muito acima dos principios e dos partidos estão os
mexericos e as vaidadesinhas que brotam como tortulhos á sombra das
arvores do campanario?!

Que desconsoladora distancia da realidade ao ideal da vida dos povos!

Henrique de Souzellas não ficára indifferente ao movimento politico da
aldeia. Pegára-se-lhe a febre eleitoral. Impedido de votar, auxiliava,
porém, os parciaes do conselheiro com os avisos da sua experiencia. Um
dia lembrou um _meeting_. O conselheiro poz-se a rir.

--Que utopia! Com que especie de eleitores imagina que está tratando? Um
_meeting_, para quê? Não se esqueça de ir domingo á igreja e lá se
desenganará por os seus olhos. O espectaculo não é muito para alegrar,
porque mostra como em geral o nosso paiz está ainda pouco educado no
regimen constitucional. Mas em todo o caso é instructivo.

Os manejos dos amigos do conselheiro e principalmente do infatigavel
Tapadas, conseguiram ainda resultados importantes em relação ao tempo em
que principiaram a operar com mais energia. Algumas freguezias havia com
que já se podia contar.

A eleição, porém, estava muito arriscada ainda. O sr. Joãozinho das
Perdizes devia decidir a contenda. Para onde se inclinasse o morgado,
com todo o peso dos seus comparochianos, desceria o prato da balança.

Contra elle assestou, pois, o conselheiro toda a artilharia; mas sem o
menor resultado. O homem evitava subtilmente encontrar-se com elle, e
aos seus emissarios respondia com insolencia. O Seabra pela sua parte
nunca o largava, vigiava-o como um precioso thesouro, não se descuidava
de o manter nas disposições hostis contra o conselheiro. A todo o
momento fazia-lhe sentir o insulto que recebera na taberna, e a
necessidade que tinha, para se desaffrontar, de infligir uma lição ao
conselheiro, com quem Henrique estava ligado. Depois disse-lhe que o
conselheiro se gabava de ter dinheiro para comprar o morgado e toda a
freguezia.

O morgado, sob estas e analogas instigações, praguejava e jurava
despejar na urna ministerial o suffragio da sua freguezia.

Assim, pois, todas as probabilidades eram a favor do candidato do
governo, homem desconhecido d'este povo, o qual tambem era desconhecido
para elle, um empregado de secretaria, que nunca saira de Lisboa e que
era o primeiro a rir-se do campanario obscuro de que se propunha a ser
representante; creatura dos ministros, que o desejavam eleger a todo o
custo, por terem n'elle um voto complacente e um parlamentar de boa
feição.

Logo pela manhã do domingo, marcado para a grande solemnidade civil, o
adro da igreja parochial apresentava uma animação fóra do costume.
Grupos formados aqui e alli conferenciavam, entreolhando-se com
desconfiança, ou correspondendo-se por signaes de intelligencia,
conforme pertenciam á mesma ou a opposta parcialidade. Os agentes
eleitoraes, os influentes dos dois campos acercavam-se d'este, apertavam
a mão áquelle, segredavam com um, batiam no hombro a outro, discutiam
com um terceiro, e, sempre que era possivel, distribuiam listas ao maior
numero.

O brazileiro era a alma do partido governamental. O Tapadas capitaneava
a phalange do conselheiro. Pertunhas falava com todos, esfregando as
mãos e sorrindo. O regedor passeiava com importancia por entre os
grupos, recommendava ordem e respeito ás auctoridades, e dava de olho
aos cabos, seus subordinados, para que se não esquecessem de cumprir as
instrucções recebidas, votando no candidato ministerial.

Approximava-se a hora, e principiavam os trabalhos para a constituição
da mesa. O parocho, o administrador e o regedor foram occupar o seu
logar. Ficou presidente o brazileiro, e o resto da mesa formou-se
d'entre as duas parcialidades.

Emquanto se organisavam assim os trabalhos, eram discutidas no adro as
probabilidades da victoria.

N'um dos grupos formados, junto da porta da igreja, por os partidarios
do brazileiro, dizia-se:

--Vencemos por uma maioria de mais de duzentos votos; verão!

--Só a freguezia de Pinchões enche-nos ahi a urna.

--E estará bem seguro o morgado?

--O sr. Joãozinho!? Ora! Está de ferro e fogo contra o conselheiro.

--Pois se te parece! Depois d'aquelles mimos que lhe fizeram na taberna,
e do que d'elle se tem dicto no Mosteiro!...

--Não é só por isso. Elle já estava do nosso lado, desde que soube
tinham deitado abaixo a casa do herbanario, e que o pobre homem estava
succumbido de todo.

--É verdade! ahi temos mais um a votar contra o conselheiro d'esta vez.

--Quem? O Vicente? Esse sim. Então não sabes que o pobre velho já se não
levanta da cama?

--Ai, não?

--Andava já muito fraco e doente; mas ha tres dias, sobretudo, tem ido
de peor a peor, e com uma pressa, que, segundo ouvi dizer, aquillo está
por pouco tempo: nem deita a semana fóra.

--Coitado!

--Ahi vem quem ainda hoje o viu. Não é verdade, sr. Pertunhas?

--O quê, meus amigos, o quê? o que é que é verdade? o que é que
dizem?--perguntou o mestre de latim, esfregando sempre as mãos.

--Não é verdade que o Vicente herbanario está a ajustar contas?

--Oh! pobre de Christo! Aquillo corta o coração! Sempre eu digo que uma
crueldade assim, como a do conselheiro!

--Muitos do povo d'aqui veem votar contra o conselheiro, só por causa do
mal que fez áquelle santo velho.

--E com razão.

--E então para quê? senhores, para quê?--continuava Pertunhas.--Para
fazer uma estrada em que se gastam rios de dinheiro, e que a final não
presta! Pois eu passei por a casa do herbanario ha pouco, quero dizer,
por a casa do Augusto, que é onde vive agora o Vicente. O rapaz estava á
porta. Então, sr. Augusto, disse-lhe eu, á urna! vamos á urna! Elle
encolheu os hombros como quem diz: «bem me importa a mim com isso.»

--Ahi está outro, que tambem não é pelo conselheiro.

--Por que não? Pois não é elle todo do Mosteiro?

--Foi, foi--replicou o Pertunhas.--Então vmc.^ê não sabe que o
conselheiro, depois de lhe fazer a fineza de lhe arranjar a demissão,
inda por cima o poz fóra de casa, porque pelos modos o rapaz... fez
publicar umas certas cartas... que compromettiam o homem? A falar
verdade, tambem não foi bonito.

--Fez elle muito bem.

--Mas, como eu dizia, puzemo-nos a falar, e eu estava-lhe dizendo que o
povo o vingaria da affronta que lhe fizera o conselheiro, porque ia dar
a este um cheque de que elle se havia de lembrar toda a vida; quando o
Vicente, que me ouvia de dentro, chamou-me e mandou-me entrar. Foi então
que eu o vi... Parecia-me outro!... Imaginem vossês, outro tanto de
magro e outro tanto de velho... Mettia dó! Poz-se a perguntar-me muitas
coisas, o que havia, o que não havia, por quem estava este, por quem
estava aquelle... Eu disse-lhe tudo; que o conselheiro, por mais que
fizesse, já não podia vencer; que não arranjaria os votos precisos para
cobrir a freguezia de Pinchões. O velho ficou admirado quando eu lhe
disse que o sr. Joãozinho era dos nossos. E lá o deixei a remoer a
noticia. Ao menos resta-me a consolação de lhe ter adoçado com ella os
ultimos momentos.

N'este ponto da conversa viram passar por elles Henrique, que ia ter com
um agente eleitoral, a suggerir-lhe uma ideia para vencer não sei que
eleitor recalcitrante.

--Ahi anda este--disse um dos do grupo, seguindo-o com a vista.--Era bem
feito que lhe dessem outra lição, como a da taberna do Canada.

--Ordem, ordem e prudencia!--disse o Pertunhas.--É preciso manter a
liberdade da urna, senhores, e as garantias constitucionaes!

--Mas que tem este senhor com as nossas eleições?

--Quem o manda metter-se cá n'estas coisas?

--Ora é boa! Então não sabem que elle casa no Mosteiro?--disse o
Pertunhas, que andava sempre informado das vidas alheias.

--Sim?!

--É verdade. Ha pouco, quando eu estava falando com o Augusto, veio a
nós o José Barbeiro, que nos deu essa novidade, que lh'a dissera o
Manoel da Quinta, que a ouvira á Gertrudes, criada do Mosteiro.

--Casa com a morgadinha, já se sabe?

--Pois vêdes! não que a bolada convida! A mim logo me farejou isso,
quando vi chegar esse figurão cá á terra. Mas querem vossês saber uma
coisa engraçada?... Pareceu-me que o Augustito do doutor não gostou da
novidade.

--Não? Então por quê?!

--Vi-o fazer-se de mil côres quando a ouviu... Pois ter-se-lhe-ha
mettido na cabeça... Hein?!

--Tinha graça. Mas olha o milagre!...

--Ah! ah!... Este mundo é muito divertido!

N'isto saiu a correr da igreja um influente politico, e principiou a
olhar para todos os lados, como procurando alguem.

--Que temos nós lá, ó sr. Luiz?--perguntou-lhe o Pertunhas.

--Onde diabo estão os de Pinchões?--perguntou o interpellado.

-Inda não vieram.

--Diabos os levem! Vae-se principiar a chamada, e elles não apparecem. O
morgado é homem para se esquecer a catar os cães.

--Mas vamos nós principiando, e no emtanto elles virão--disse o
Pertunhas, que fôra nomeado para revezador do secretario da mesa.

--Mas a primeira freguezia que vota é justamente a d'elle. O sr. Seabra
está como uma bicha!

E, dizendo isto, o homem voltou para dentro.

A mesa eleitoral, instituida no meio da igreja, com grande escandalo do
beaterio, que pela voz dos padres chamava áquillo artes do demonio, ia
principiar a funccionar. O conselheiro, que viera mais tarde, de
proposito para não formar parte da mesa, requereu, com o relogio na mão,
que se abrisse a urna aos eleitores, visto ser a hora marcada no edital.

Este requerimento, simples e justo como era, suscitou discussão.

O brazileiro allegou que, sendo os de Pinchões os primeiros a votar, em
virtude do artigo 62.^o do decreto eleitoral, que manda votar primeiro a
freguezia mais distante, e não estando na assembléa ninguem d'aquella
freguezia, convinha esperar.

O conselheiro insistiu, dizendo que a lei não mandava esperar por os
eleitores, mas apenas indicava a ordem da chamada, e que portanto
votassem os presentes, e que na segunda chamada, ou nas duas horas de
espera, votariam os ausentes que depois viessem.

Esta questão não se resolveu de prompto. Trocados alguns alvitres, lida
a lei, discutidos os artigos d'ella, consultados os recenseamentos e
mappas, pedidos esclarecimentos ao regedor, ao administrador, e ao
parocho, é que se approvou a proposta do conselheiro e principiou a
chamada.

A freguezia de Pinchões faltou em pêso.

O brazileiro estava perturbado; olhava para a porta, olhava para a lista
dos recenseados, olhava para os amigos, olhava para os adversarios, e
sobretudo para o conselheiro, em cuja insistencia em principiar a
votação julgou descobrir cavillação. Na urna não tinha entrado uma só
lista. Pregoou-se o ultimo nome dos eleitores de Pinchões. Ninguem
ainda!

Passou-se a outra freguezia.

O brazileiro já não estava em si.

Os primeiros votos recolhidos mal os pôde introduzir na urna, de trémulo
e sobresaltado que estava.

O homem suppunha que lhe tinha sido roubada á ultima hora uma freguezia
inteira. Não estava muito longe de acreditar que os agentes do
conselheiro a haviam arrasado completamente.

A freguezia que se seguia na votação era uma das que se conservavam
fieis ao conselheiro, circumstancia que augmentava a indisposição do
Seabra.

A votação ia, porém, correndo, interrompida apenas por algumas
questiunculas sobre a identidade de um ou de outro eleitor e sobre a
regularidade d'esta ou d'aquella lista, graças aos futeis pretextos de
que os contendores lançavam mão para disputarem, voto a voto, o
suffragio popular.

Ia adeantada a votação, quando correu na igreja uma voz, que veio
infundir alento no animo desfallecido do brazileiro.

-Veem ahi os de Pinchões!... Ahi estão os de Pinchões... Ahi vem o sr.
Joãozinho e toda a sua gente!--dizia-se de toda a parte.

Esta nova passou de bôca em bôca, a ponto de produzir um sussurro na
assembléa.

Muitos sairam para ir receber ao adro os annunciados.

Chegára de facto alli o sr. Joãozinho das Perdizes, á frente da sua
freguezia.

Leitor, se tens, como eu, esperança e sincera fé no systema
representativo, perdôa-me o obrigar-te a assistir a uma scena que faz
subir a côr ao rosto de quem, como nós, abençôa os sacrificios por cujo
preço nossos paes nos compraram a nobre regalia de intervir, como povo,
na governação do Estado, as franquias que nos emanciparam da caprichosa
tutela de um homem, revestido de direitos impiamente chamados divinos,
contra os quaes o instincto e a razão igualmente se revoltam. A scena,
porém, humilhante como é, não envolve a minima censura á excellencia do
systema; mas apenas aos que nos quarenta annos que elle quasi tem de
vida entre nós, não souberam ou não quizeram ainda fazer comprehender ao
povo toda a grandeza da augusta missão que lhe cabe executar.

Depois das nossas luctas civis, já muitas creanças se fizeram homens; se
a escola fôsse entre nós o que devia ser, já haveria sobra de eleitores
com perfeita consciencia dos seus direitos civis.

O atrazo e ignorancia d'elles, contristando, sómente devem impellir os
homens de intenções sinceras e puras a applicar os esforços de
intelligencia e de acção para ministrar com a educação a moralidade, e
para acordar a consciencia d'esta entidade social.

Era o sr. Joãozinho das Perdizes á frente da sua freguezia, disse eu.

E é justamente este o espectaculo humilhante de que falava.

Tendes visto um guardador de cabras á frente do seu rebanho, conduzindo
com acenos e assobios todas as barbudas cabeças d'aquelle regimento
quadrupede? Pois vistes o mais perfeito simile da scena que se
presenciava agora no adro da igreja matriz.

O povo, o povo soberano, que n'aquelle dia tinha nas mãos o sceptro da
sua soberania, não era menos docil do que os irracionaes que recordamos.

O dia em que devia mostrar-se orgulhoso, era quando mais se humilhava;
quando podia dispôr dos destinos dos seus senhores, era quando mais
vergava a cabeça sob o pêso que estes lhe assentavam.

Não é similhante esta fôrça inconsciente do povo á do boi robusto e
válido, que uma creança dirige e subjuga? Forte como elle, como elle
docil, como elle laborioso, como elle util, não vê que a mesma fôrça que
emprega no trabalho lhe poderia servir para repellir o jugo. Ou quando o
vê, é quando o desespero e a furia o cegam e o impellem a revoltas
tremendas.

Mas o povo de Pinchões, o povo do sr. Joãozinho, estava muito longe
d'esses excessos.

O morgado vinha, como já disse, á frente.

A barba por fazer, as melenas despenteadas, o lenço do pescoço sôlto,
sem botões o collarinho da camisa, com as mãos mettidas no cós das
ceroulas, o chicote no bolso da jaqueta de pelles, as botas enlameadas
até o joelho, a ponta do cigarro ao canto da bôca, o palito atraz da
orelha, o chapéo sobre o occiput, dois galgos adeante de si, e o
inseparavel Cosme quasi _à latere_. Entrou no adro com ares
triumphantes, sorrindo e piscando os olhos para os seus amigos e
partidarios, como para lhes fazer notar a numerosa procissão que o
seguia e a docilidade dos membros d'ella.

Atraz vinham os eleitores de Pinchões, velhos e moços, ricos e pobres,
mas todos com o olhar timido e estupido, todos com movimentos enleados,
todos com os olhos no caudilho, para saber o que deviam fazer. Se elle
parava a cumprimentar um amigo, paravam todos com elle; a direcção que
tomava, tomavam-n'a todos a um tempo; apressavam ou demoravam o passo,
segundo a velocidade que elle dava aos seus; se ria, sorriam; se
praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou á porta da igreja.

O morgado passou revista á sua tropa, á qual deu instrucções.

Os homens, com os cabellos para deante dos olhos, os braços estendidos e
a cabeça baixa, não ousavam fazer um movimento, e conservaram-se
enfileirados até nova ordem do sr. Joãozinho.

Pareciam envergonhados de serem precisos a alguem.

No bolso de cada um d'estes homens havia um oitavo de papel almaço
dobrado, no qual estava escripto um nome; o nome de um homem que elles
nem sabiam se existia no mundo. No momento devido, cada um d'elles,
chamado pela voz do escrutinador eleitoral, responderia: «presente»;
approximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquelle
papel, e retirar-se-ia satisfeito, como se descarregado de um pêso que o
opprimia.

Se lhes perguntassem o que tinham feito, qual o alcance d'aquelle acto
que acabavam de executar, não saberiam dizel-o; se lhes perguntassem o
nome do eleito para advogado dos seus interesses e defensor das suas
liberdades, a mesma ignorancia; se lhes propuzessem a resignação do
direito de votar, acceitariam com jubilo; se, finalmente, lhes dissessem
que n'aquelle dia estavam nas suas mãos e dos seus pares os destinos do
paiz, abririam os olhos de espantados, ou sorririam com a desconfiança
propria dos ignorantes.

Innocente povo!

Querem-te assim os ambiciosos, a quem serves de cómmodo degrau.

Quando disseram ao sr. Joãozinho que já tinha passado a sua vez de
votar, o homem rompeu pela igreja dentro, berrando, bracejando,
ameaçando céos e terra, sem attender a quantos lhe clamavam que tinha de
se proceder a nova chamada, e que portanto socegasse.

O Cosme seguia-o, prompto a ser executor de suas justiças.

Custou a serenar o morgado, e não o fez senão depois de duas pragas
contra as pessoas dos senhores da mesa, pragas que razões politicas
fizeram engulir ao brazileiro, sem nem sequer lhe tirarem dos labios o
sorriso com que saudára a vinda do morgado.

Caindo em si, o sr. Joãozinho deu ordem á sua gente para que entrasse
para a igreja, e ahi a enfileirou a um dos lados d'ella, promptos á
primeira voz.

A chamada proseguia, e a votação não ia já muito favoravel ao
conselheiro, a julgar pelos indicios, que não escapam aos olhos
amestrados dos mirones.

O brazileiro exultava comsigo mesmo, principalmente quando, por sobre as
cabeças dos que se agrupavam em volta da urna, divisava as phalanges do
morgado, compactas e decididas.

O conselheiro ainda tentou uma investida com o sr. Joãozinho, indo
cumprimental-o affavelmente; este, porém, grunhiu-lhe um monosyllabo
sêcco, e voltou-lhe as costas, envolvido n'uma nuvem de parciaes do
brazileiro.

Era caso desesperado.

Passára já a votar a ultima freguezia, que era justamente aquella onde
estava constituida a unica assembléa de que se compunha o circulo
eleitoral, e onde o leitor tem passado commigo todo o tempo que dura a
nossa narração.

Foi então que votou o conselheiro e os outros conhecidos nossos, entre
os quaes o Zé P'reira.

Com este deu-se um episodio comico, que merece menção.

O brazileiro ao receber a lista que elle lhe offerecia, sabendo-o
parcial do conselheiro, recusou-a, allegando que estava marcada, o que
era contra a expressa determinação do artigo 61.^o, § unico, da lei
eleitoral.

Sabidas as contas, a supposta marca era de natureza de que seria quasi
impossivel isentar papel ou objecto qualquer saido das mãos do Zé
P'reira. Era uma nódoa de vinho.

Discutiu-se, ainda assim, se a nódoa era marca ou não era marca, e se
lhe deviam ser applicadas as disposições do § unico do artigo 61.^o.

A discussão intrincada foi cortada por o Zé P'reira, que disse com a
maior candura:

--Se essa está suja, sr. Tapadas, eu tenho aqui mais d'aquellas que
vocemecê me deu.

O proprio conselheiro desatou a rir.

O brazileiro resmungou:

--Então ha suborno aos eleitores? Como se entende isso?

-Ora, não bula na chaga, senão temos muito que ouvir--disse o Tapadas, e
accrescentou:--ande para deante; deite a sua lista, sr. Zé.

Os governamentaes, que iam de cima, mostraram-se tolerantes, e a lista
caiu na urna.

Estava a findar a primeira chamada.

Já se liam os ultimos nomes, segundo a ordem alphabetica.

A gente de Pinchões, á voz do sr. Joãozinho, apromptava-se para breve
entrar em acção na segunda chamada, que ia principiar.

Faltavam uns doze nomes, quando muito, e dos ultimos era o do
herbanario, cuja inicial era um V.

Até alli a victoria podia ainda talvez questionar-se, porque a
actividade do Tapadas tinha expremido as freguezias, que lhe eram
affectas, até deitarem o ultimo eleitor; velhos, doentes, mancos e
paralyticos fôram transportados em cadeiras e em padiolas até a urna
para votarem. Mas a freguezia de Pinchões ia abafar a eleição
inevitavelmente.

O conselheiro perdeu as esperanças, e o proprio Tapadas sentiu-se
desfallecer. O brazileiro estava vermelho e febril de contentamento.

O escrutinador chamou finalmente pelo herbanario.

--Vicente Rodrigues da Fragosa--disse elle, preparando-se já para voltar
o caderno.

--Adeante. Esse vae votar a uma assembléa mais longe--disseram alguns.

E ia-se proceder a segunda chamada, quando se ouviu do fundo da igreja
uma voz trémula, mas sonora ainda, responder:

--Presente.

Voltaram-se todos ao escutar aquella palavra.

Adeantava-se lentamente, pallido, curvado, acabrunhado como nunca, o
velho herbanario, a quem o braço de Augusto servia de apoio.

Dir-se-ia um cadaver resuscitado do tumulo.

Com as faces pallidas, o olhar amortecido, os passos incertos, o
herbanario adeantava-se e trazia já de longe o braço estendido,
segurando a lista que vinha lançar na urna.

Apoderou-se de todos os circumstantes um sentimento quasi de pavor,
perante aquella figura anciã e alquebrada, que se dissera erguida do
tumulo para responder á voz que a evocára. Todos se lhe afastavam do
caminho com respeito, senão com supersticioso terror.

Fez-se alli dentro o maior silencio, silencio só interrompido pelo som
dos passos arrastados do Vicente sobre o lagêdo da igreja.

O conselheiro não pôde mais desviar os olhos do vulto venerando do
herbanario; n'aquelle velho, que fôra seu companheiro de infancia,
parecia-lhe estar vendo agora um severo accusador da sua insensibilidade
politica, a personificação de um remorso pungente, a primeira apparição
de um espectro, que devia perseguil-o no futuro.

Todos os da mesa se levantaram instinctivamente, e, immoveis, viam
approximar-se o velho eleitor, que já suppunham á borda da sepultura.

Aquella assembléa, erguendo-se silenciosa e reverente, á chegada de um
pobre velho, trémulo e enfermo, que seguia apoiado ao braço de um
pallido mancebo, tinha uma apparencia profundamente solemne.

O morgado das Perdizes, devéras affeiçoado ao herbanario, não teve mão
em si, ao vêl-o assim doente e enfraquecido, que lhe não viesse ao
encontro, dizendo commovido:

--Ó tio Vicente! pois n'esse estado?!...

O velho fez um gesto energico para afastal-o de si.

--Arreda-te!--disse com severidade--deixa-me, serpente, que mordes a mão
do teu bemfeitor! Não me appareças, que não quero ter-te na ideia,
quando estiver a expirar!

O morgado ficou transido de espanto e de consternação ao ouvir estas
palavras.

--Ó tio Vicente!...--exclamou, ajuntando as mãos--pois eu que lhe fiz?

--Cala-te. Deixa-me passar, quero, como homem d'esta terra, protestar
contra a iniquidade que tu e os teus praticam hoje, apedrejando aquelle
a quem deveis tudo. Vendei-vos como cães, e ficae-vos com esse remorso:
eu não o quero para mim.

E, caminhando para a urna, parou defronte d'el-la, fitou o brazileiro,
que não pôde sustentar-lhe o olhar com firmeza, e disse-lhe:

--Ahi tem o voto do herbanario, sr. presidente.

O brazileiro recebeu-lhe a lista, e introduzia-a na urna.

Então o herbanario, cada vez mais anciado, correu os olhos pela
assembléa a procurar alguem. Viu o conselheiro que não ousava
approximar-se, olhou-o algum tempo com uma expressão singular e no fim
estendeu-lhe a mão. O conselheiro apertou-a nas suas, commovido.

--Manoel,--disse-lhe o velho em voz sumida--não me cegava tanto o
resentimento, que te negasse esta justiça. Eu era ainda teu amigo.

--E sel-o-has sempre, Vicente.

--Sempre que o seja... por pouco tempo será--respondeu o velho, sorrindo
tristemente.

--Que dizes?... Mas... que tens tu, Vicente? Que sentes?

--Tio Vicente!... exclamaram tambem Augusto, o morgado das Perdizes, e
outros mais.

A physionomia do herbanario transtornára-se assustadoramente; parecia
luctar energicamente para falar ainda, mas a voz embargava-se-lhe na
garganta.

--Já não posso...--murmurou elle.--Queria dizer-te...

E apontando para Augusto, e olhando para o conselheiro, disse-lhe ainda:

--Era... d'este... Elle é... elle está...

Os braços de Augusto, do conselheiro e do morgado das Perdizes,
ampararam-lhe o corpo que ia a cair por terra.

Foi nos braços dos tres que expirou o herbanario, porque estava devéras
morto, quando o fôram a erguer.

O alvoroço foi geral na igreja. Todos a abandonaram, correndo para o
adro, para onde foi levado o velho, a vêr se era possivel reanimal-o.
Todos, á excepção do brazileiro, que ficou a vigiar a urna, e de um
agente do Tapadas, que ficou a vigiar o brazileiro.

Os soccorros prestados ao herbanario fôram inuteis.

Todos se convenceram depressa de que era de facto um cadaver.

Os indifferentes voltaram a continuar a eleição.

Ia principiar a segunda chamada.

O morgado das Perdizes, impressionado devéras por a scena, andava
desconsolado por o adro, e só de má vontade entrou na igreja.

O conselheiro, Augusto e Henrique, e mais alguns homens do povo,
acharam-se sós junto do cadaver.

A commoção tirava a Augusto a frieza de animo para dar as ordens
precisas. Henrique tomou isso a seu cuidado. Houve assim um momento em
que o conselheiro esteve só com Augusto.

N'aquelle instante o coração do homem politico era superior ao
resentimento.

--Augusto--disse elle a meia voz--a morte não deixou este infeliz
completar a ultima recommendação, que parecia querer fazer-me. Eu
adivinhei-lhe porém o sentido, e para prova offereço-lhe a mão de amigo.

E, dizendo isto, estendia-lhe a mão.

Augusto não lhe correspondeu, e disse-lhe, ainda com a voz commovida:

--A mão que v. ex.^a me estende é a mão do homem que esquece e perdôa as
injurias, e eu não posso ser perdoado, porque me não julgo criminoso.
Desde que uma vez v. ex.^a formulou a accusação e se fez juiz, prefiro,
a ter de ser julgado sem provas, uma condemnação a uma absolvição. Fico
mais em paz com o meu orgulho.

A presença de alguns curiosos obrigou a interromper este curto dialogo.

Henrique voltou com os aprestes para a conducção do cadaver.

Augusto acompanhou a casa o herbanario.

O conselheiro, impressionado pelas ultimas scenas, sentia-se pouco
disposto a permanecer alli.

--Fique se quizer--disse elle para Henrique.--Não estou em estado de
receber á queima-roupa a noticia da minha derrota; haviam de attribuir a
mortificação que estou sentindo a essa causa, e eu não lhes quero dar
esse gôsto. Vou para casa; lá me levará a noticia, e não me dará grande
novidade. Adeus.

E, apertando a mão de Henrique, retirou-se para o Mosteiro.

Causou grande pesar alli a nova da morte do herbanario, e das varias
circumstancias que a acompanharam.

Não houve quem fôsse indifferente ao successo, que o conselheiro narrou
ainda sob a oppressiva influencia que elle lhe deixára.

A morgadinha absteve-se da menor allusão á causa que apressára o fim da
vida do herbanario, e evitou sempre que D. Victoria ou Christina
alludissem a ella tambem. Presentia que a consciencia do pae lh'o estava
exprobrando e por um delicado instincto abstinha-se de se applaudir das
suas previsões, infelizmente realisadas.

Passada a primeira commoção, que a lembrança d'aquella scena produzira,
o conselheiro principiou de novo a sentir pungente e vivo o despeito
pela derrota que se lhe preparava na urna.

Fazia o possivel por se mostrar indifferente a isso; mas a affectação
era demasiado transparente, para até nem D. Victoria se illudir.

Assim, por exemplo, dizia elle á filha:

--Ora vão realisar-se os teus votos, Lena; aqui me vaes ter a viver uma
vida patriarchal. Se queres que te diga a verdade, está-me a appetecer;
a vida politica ia-me cançando já.

Mas como dizia elle isto! Com que sorriso contrafeito, com que mal
simulada satisfação!

Pouco a pouco, porém, a impaciencia começou a apossar-se d'elle e nem
estas exterioridades lhe permittia já.

Áquella hora devia estar a proceder-se na assembléa ao apuramento de
votos.

Esta ideia lançava o conselheiro em um d'aquelles estados febris, que só
pode conceber quem já alguma vez soube o que é ter a sorte dependente de
uma votação, e aguardar a cada momento a noticia do resultado d'ella.

Devora-nos uma impaciencia insupportavel; tudo o que ouvimos nos
afflige; as conversas sobre assumptos indifferentes, irritam-nos; se nos
tentam alentar com esperanças, revoltamo-nos contra ellas; se procuram
preparar-nos para um desengano, prevenindo-o, repellimos com energia a
ideia d'elle. O silencio não nos é mais agradavel; as apprehensões
ganham corpo no meio d'elle; falam os presentimentos do mal. Tentamos
sorrir, gela-se-nos o sorriso nos labios. A quietação é-nos tão
intoleravel como o movimento. Anciamos sair da incerteza, e de cada
individuo que chega, trememos de saber a nova fatal. Vae mais longe o
effeito moral d'este estado do espirito; chegamos quasi a querer mal a
todos quantos estão assistindo n'aquelle momento á decisão lenta da
sorte. O nosso egoismo, exacerbado em taes momentos, irrita-se com a
ideia de que os nossos amigos tenham coração para assistir áquillo; e
comtudo não lhes perdoariamos se se retirassem. Sensações d'aquellas
exgotam mais vitalidade, em cada instante, do que annos de vida isenta
d'ellas.

O conselheiro luctava comsigo mesmo para dominar-se; procurava
preparar-se para receber o golpe, que bem podia dizer infallivel. Que
esperava elle! Não lhe era quasi possivel contar, um por um, os votos de
que dispunha? Não ficava, por mais alto que elevasse o cálculo, uma
grande maioria a esmagal-o? Tudo isto era assim, mas o convencimento
prévio recusava estabelecer-se-lhe no espirito, para lhe dar a
tranquillidade da certeza.

É um vivedouro sentimento o da esperança! Não succumbe senão perante um
desengano inevitavel. Por que lhe chamam verde, senão talvez por, como
as plantas exuberantes de seiva, resistir ás mutilações e renovar os
ramos cortados?

O conselheiro, dominado por todos estes tumultuosos pensamentos,
passeiava agitado na sala, olhando ás vezes para a janella, á espera de
vêr assomar ao portão do pateo um dos seus partidarios, cabisbaixo e
melancolico, e armando-se de coragem para lhe dar o desengano.

Apesar de todas as prevenções, o que é certo é que a nova, quando
viesse, feril-o-ia como imprevista.

Sempre assim succede.

No meio de um d'estes passeios agitados que dava em todas as direcções
por o meio da sala, ouviu-se a detonação de algumas duzias de foguetes.

O conselheiro parou e fez-se excessivamente pallido.

Os corações de Magdalena, de Christina, de D. Victoria e de Angelo
bateram precipitados.

A causa estava, emfim, decidida.

A girandola apregoava uma victoria, mas não proclamava o nome do
vencedor; porém, que dúvida podia haver a respeito d'elle?

O conselheiro sentiu fraquearem-lhe as pernas; sentou-se, e, com um
sorriso amargo, disse para a familia:

--Estou desautorado pelos meus antigos mandatarios!

--Quem sabe, mano? Ás vezes...

Isto principiava a dizer D. Victoria, para dizer alguma coisa, quando
Angelo que ficava mais proximo da janella, exclamou:

--Ahi vem um homem a correr a toda a pressa!

--A correr?!--disse o conselheiro, em quem esta simples noticia
infundira novo alento a todas as esperanças, e dissipára a sombra das
pesadas apprehensões; e caminhou pressuroso para a janella.

As senhoras seguiram-n'o alli.

O homem que Angelo vira de longe, divisava-se ainda por entre os
silvados de um atalho, que vinha dar á avenida da entrada do Mosteiro.

--Parece o Domingos, o criado do Tapadas...--disse o conselheiro,
affirmando-se.

--Mas que pressa elle traz!--notou D. Victoria.

--Já nos viu--disse Angelo.

--Lá acenou com o chapéo--exclamaram todos.

--Que quer elle dizer com aquelles signaes?--tornou o conselheiro,
nervoso.

--Querem vêr que é o que eu digo! Olhe que venceu, mano.

--Qual! É impossivel. Pois eu não sei como a votação correu? É
boa!--disse o conselheiro com certo tom irritado, como de quem não quer
que lhe descubram uma esperança.

Passou-se um pouco de tempo, em que o homem se perdeu de vista. Subia
n'aquelle momento a ladeira dos sovereiros.

Os olhos fitavam-se todos no portão do pateo á espera de o vêr surgir
alli. Mal se respirava.

--Eil-o--disseram instinctivamente todas as vozes, quando elle
appareceu.

--Viva! sr. conselheiro, viva!--bradou elle de lá, apesar de esfalfado.

O conselheiro teve quasi uma vertigem.

--Elle que diz?... Como pode...

Não o deixaram continuar as senhoras, que já o beijavam e abraçavam com
frenetico enthusiasmo.

Magdalena, a propria Magdalena, cujos mais ardentes votos eram vêr o pae
desistir da vida politica, deixava-se tomar pela febre do triumpho e
celebrava-o como se n'elle fundasse a sua felicidade. É que, na occasião
da lucta, não ha animo tão indifferente a estimulos, que não abrace um
partido; ao principio frouxamente talvez, mas a incerteza augmenta o
ardor com que se esposa a causa; os gêlos da indifferença fundem-se nos
momentos decisivos, e a anciedade que precede a victoria augmenta a
commoção que esta produz, se se realisa.

O conselheiro queria acalmar aquellas effusões, mas em vão bradava:

--Esperem! esperem! Deixem ouvir! Isto não pode ser... Ha engano...

Mas o animo feminino não entra facilmente na ordem, se chega alguma vez
a sair d'ella.

Só a entrada do mensageiro na sala, é que serenou o tumulto.

O conselheiro interrogou o.

--Então que dizes tu? Que vivas são esses?

--Digo que vencemos--respondeu o moço, usando ingenuamente o verbo na
primeira pessoa do plural.

--Estás a sonhar?

-O sr. Tapadas, o meu amo, foi quem me mandou aqui a toda a pressa para
lh'o dizer. Quando eu saí da igreja tinha vmc.^ê... tinha v. s.^a mais
cento e cinco votos do que o outro, e só havia na caixa uns trinta por
junto. No caminho ouvi a girandola...

--Mas é impossivel! Cem votos!... ahi ha engano. Não pode ser!

--Cento e cinco!

--Estás bem certo no que te disse teu amo?

--Ora se estou. E lá vi a cara do brazileiro. Mettia mêdo.

O conselheiro perdia-se em conjecturas. Agora parecia-lhe irrealisavel
aquillo que lhe annunciavam.

Não pôde mais tempo conter-se. Sobresaltado, ancioso, preparou-se para
ir por seus proprios olhos averiguar do facto.

Mas antes que o fizesse, uma onda popular, trazendo á frente a bandeira
nacional e a philarmonica da terra, invadia o pateo e atordoava os ares
com vivas, hymnos e foguetes. Á frente da musica estava radiante mestre
Pertunhas, embocando a trompa com mais arreganho que nunca!

O conselheiro chegou á janella, e então é que as acclamações fôram
estrondosas.

A desafinação da banda chegou a roçar pelo sublime.

O conselheiro agradeceu ao povo aquella manifestação.

Passados momentos entravam na sala Henrique, o Tapadas, e outros chefes
eleitoraes, e com elles o Pertunhas, sobraçando a trompa.

--Que quer dizer isto?--perguntou o conselheiro, abraçando-os.

--Cento e trinta e cinco votos a maior, sr. conselheiro, nem mais nem
menos--respondeu o Tapadas, rindo ás gargalhadas.

--Cento e trinta e cinco--repetiu o Pertunhas.

--Mas d'onde vieram!

--Ora essa é boa! De Pinchões.

--De Pinchões--repetiu o Pertunhas.

--Como?... Pois o morgado?...

--Votou comnosco como um homem. Ora pudéra!

--É verdade... votou... comnosco--dizia mestre Pertunhas.

--Mas não se viu ainda ha pouco...

--Que estavam com metralha inimiga?--concluiu o Tapadas.--Que tem lá
isso? Mas vão lá á igreja e verão as buxas que estão pelo chão. É um
destrôço! Parece a loja de um farrapeiro.

--Mas explica-me isso, Tapadas.

--Então não ouviu a rabecada que aquelle santo do herbanario, que inda
que não fôsse senão por isso deve estar assentadinho no Céo, deu ao
morgado? Pois aquillo lá resentiu o homem. E quando, depois do Vicente
expirar, elle voltou para a igreja, vinha a dizer: «Diabos me levem, que
se tivesse aqui listas á mão, havia de ensinar os tratantes que me
metteram n'esta dança». Vieram-me dizer isto, e eu que, para o que désse
e viesse, sempre levava um sortimento de listas, cheguei-me por a calada
ao morgado... Hein?... e metti-lh'as assim á cara. Hein!... Ora! Foi um
momento! Emquanto a mesa se senta e abre cadernos, sim, senhores, e se
põe tudo em ordem, estava armada a freguezia de Pinchões á nossa moda.
Agora se se queria rir, era vêr o brazileiro! Como elle encafuava para a
urna as listas que eu tinha trazido no bolso, e com que fogo! E eu a
vêl-o enterrar até ás orelhas e a fazer-me carrancudo! No fim então é
que fôram ellas, quando principiaram a apparecer as nossas listas ás
cargas cerradas. O homem enfiou! cuidei que lhe dava alguma coisa no
fim. Berrou, protestou... fez coisas do arco da velha. Agora chia contra
o morgado, e se o encontra é capaz de o comer... Para coroar a festa, á
girandola, que aqui o mestre Pertunhas tinha preparada para elles,
pegamos-lhe nós o fogo e, estourou que foi um gôsto!

E o Tapadas terminou com outra gargalhada.

O Pertunhas quiz protestar contra a accusação, mas o Tapadas voltou-lhe
as costas, dizendo:

--Ora adeus, meu amigo! O melhor é calar-se.

E elle seguiu o alvitre, limitando-se a dizer a meia voz para os que
estavam proximos:

--Este Tapadas tem cada graça!

Assim pois a victoria do conselheiro era devida ao herbanario.
Tinham-lhe falhado todos os seus cálculos politicos, transigira com
exigencias, nem sempre justas, o que de nada lhe servira, e salvára-o o
elemento que desprezava. Acontece ás vezes d'isto aos homens que muito
calculam.

As senhoras, que estavam sabendo de Henrique o succedido, renovaram as
suas demonstrações de alegria.

O conselheiro, porém, ficou preoccupado no meio das festas de familia e
das festas populares que se faziam no pateo.

 


XXXI


A morte do herbanario deu muito que falar na aldeia, não só pela
qualidade de homem que era aquelle, como pelas circumstancias, no meio
das quaes o facto succedêra.

O resultado da eleição, comquanto momentoso, não distraía do assumpto as
attenções; pois que, tendo sido successos simultaneos, associavam-se
naturalmente nas conversas e discussões, e um chamava o outro.

O herbanario não fôra colhido desprevenidamente pela morte; havia muito
tempo que fizera as suas disposições e por ellas legára a Augusto tudo
quanto possuia, isto é, alguns livros, entre os quaes a _Polyanthea_, e
o preço, quasi intacto, que recebêra pela casa expropriada.

Logo que estas disposições fôram sabidas, não faltou quem achasse
n'ellas a explicação da amizade desvelada com que Augusto sempre tratára
o velho, e do piedoso acatamento com que o recebêra em casa, assim que
da sua o expelliram.

Nós que, por um direito legitimo e inauferivel, podemos julgar a fundo
do caracter de Augusto, asseguramos que eram inexactos taes juizos.

É uma triste verdade esta da pouca ou nenhuma fé que se tem no
desinteresse dos outros!

Não ha explicação mais difficil de ser recebida do que a que se
fundamenta n'um sentimento nobre de abnegação ou de generosidade.

É preciso que duvidemos muito de nós mesmos, para assim desconfiarmos do
proximo. Porque a final o que é verdade é que a mais exacta e infallivel
sciencia do coração humano só se adquire pelo estudo do proprio coração:
esse é o unico que nos está bem patente. É por isso que as melhores
almas são de ordinario as mais crentes.

Um homem, a quem a desconfiança tenazmente escuda contra todas as
apparencias de virtude, ainda as mais insinuantes, tem já tão inquinado
o coração como suppõe o dos outros.

O enterro do herbanario verificou-se no dia seguinte ao da morte e foi
muito concorrido.

Fez-se no cemiterio, e, por expressa determinação do fallecido, em campa
rasa, e não no tumulo da familia do Mosteiro, como o conselheiro
desejára.

Tudo se passou sem o menor signal de opposição.

Não se explicam bem estas versatilidades da opinião publica. Uma medida
que hoje ateia uma revolução, ámanhã executa-se no meio do
indifferentismo geral, e sem apostolado prévio, sem providencias
repressivas, nem castigos. Mysterios das massas, que mais convem ao
legislador estudar, do que tentar destruil-os; offerecem a resistencia
das leis naturaes.

O conselheiro e toda a familia tomaram lucto como parentes do
herbanario, e receberam as visitas de pêsames, que em parte eram tambem
de parabens pelo exito do suffragio popular.

Ao fim da tarde em que se realisou a cerimonia funebre, quando soavam na
igreja matriz as badaladas das Avé-Marias, Augusto entrou no cemiterio,
já deserto, e approximou-se lentamente da sepultura, inda coberta de
pouco, como o denunciava a terra revolvida.

Elle, cujo coração era decerto o que a morte do herbanario mais
dolorosamente ferira, não recebêra pêsames de ninguem. Passára a tarde
só com o seu pensamento, o qual, como o leitor prevê, lhe não devia ser
muito jovial companheiro.

Quem observasse Augusto n'aquelle momento, seria decerto impressionado
pelo ar abatido, revelador de uma profunda prostração de animo, que lhe
quebrára as fôrças.

Que era feito d'aquella energia, com que se revoltára contra as
perseguições da sorte, e que lhe animára os primeiros passos para obter
a justificação devida ao bom credito do nome que lhe haviam legado sem
mancha? Vimol-o sair do Mosteiro resolvido a luctar, vimol-o repellir
nobremente as ironias de Henrique, vencel-o, obrigal-o a pedir-lhe
perdão; vimol-o recusar o auxilio que este já lhe offerecia, e
considerar-se moralmente obrigado a conquistar elle proprio as provas da
sua innocencia.

Que é feito d'essa energia?

O que é feito d'ella? leitor, talvez o teu coração te possa responder
por mim, se és uma d'essas victimas, para quem a sorte parece
personificada em um espirito malfazejo, que se compraz nos martyrios
lentos.

Quando, uns após outros, se repetem os golpes da adversidade, quando
todos os males parece cairem sobre uma existencia, como uma maldição de
Deus, é raro encontrar-se têmpera de alma tão rija que resista e não
ceda, quasi convencida, como o Jacob dos livros sagrados, de que lucta
com um poder superior.

A razão mais clara deixa-se tomar então da cegueira do fatalismo, e
eivado d'esta grave doença dissipa-se a fortaleza do espirito, como se
extinguem as fôrças do corpo, quando gira no sangue um veneno enervador.

Então encontra-se quasi um d'estes prazeres paradoxaes, a que é tão
sujeita a natureza humana; sente-se uma especie de gôso em succumbir sem
lucta. Experimenta-se, por assim dizer, o orgulho da extrema
infelicidade.

Em poucos dias Augusto conheceu as maiores provações da vida: a miseria
em perspectiva, a ingratidão, o insulto que avilta, a calumnia que
ennodôa, e o infortunio de um verdadeiro amigo. Repellira com dignidade
o insulto e a calumnia: sorrira á miseria e á ingratidão, e dera á
amizade as consolações que a amizade lhe inspirára.

Mas não desfallecêra com tudo isto.

Maior provação lhe estava reservada, porque ha maiores provações para a
alma humana, do que todas estas adversidades juntas. Apagae-lhe de
subito a estrella que a guiava; acordae-a do sonho em que se esquecia,
dormindo no meio de uma desencantada realidade; privae-a da ideia
querida, que havia muito concebêra, que comsigo vivia, que para si
guardava, ciosa dos olhares extranhos, e vêl-a-heis desnorteada,
perdida, louca, contorcer-se em desespero e succumbir.

Se resiste e sobrevive, se não desfallece, nem vacilla, é porque é de
essencia mais elevada do que a humana.

Ás vezes aquella ideia era tão irrealisavel, aquelle sonho tão
chimerico, que a pobre devia estar prevenida para o perder um dia, e
julgou que o estava.

Mas illudira-se. Se nos dermos de coração a uma chimera, se ella, nas
fórmas vagas e aereas que reveste, nos sorrir e namorar, em vão julgamos
têl-a por o que verdadeiramente é; ha sempre um ou outro momento em que
a acreditamos realisavel e até realisada.

E, ao convencermo-nos devéras da sua impossibilidade, sentimos a dor
profunda que nos causa a perda de um objecto querido.

Como certos deuses do paganismo, que nos seus amores com os mortaes
vestiam a fórma humana, assim o impossivel, quando nos apaixonamos
d'elle, apparece, para nos seduzir, sob a feição da realidade aos nossos
olhos namorados.

E ao revelar-se como impossivel, destróe o coração que o abraça, como
Jupiter sacrificou a imprudente Semele, ao apparecer-lhe em toda a sua
gloria de deus.

Qual fôsse a ideia constante, o pensamento recatado de Augusto,
sabem-n'o os leitores: era o amor de Magdalena. A natureza d'esta paixão
dizia elle conhecel-a. Não tinha outra aspiração além de existir, era
como o culto pela Virgem do Christianismo, era que se adora por adorar,
em que na mesma adoração se acha o premio do culto, em que o deixar-se
adorar é o mais que pode pedir-se ao objecto d'elle.

De tudo isto estava sinceramente convencido Augusto.

Mas por que foi que, desde os primeiros momentos em que viu Henrique,
sentiu quasi aversão para elle? por que foi que, amavel e bondoso para
com todos, só para com um desconhecido se mostrou frio e irritante? por
que foi emfim que, ao persuadir-se, por certos indicios, de que
Magdalena e Henrique se amavam, caiu no desalento, em que tantas causas
de infortunio o não tinham lançado ainda? Porque a verdade era que foi
este o golpe que o venceu.

Por quê? porque amava Magdalena, porque este amor não tinha nada
excepcional; era inconscientemente apprehensivo, ambicioso, devaneador e
ciumento, como todos os amores verdadeiros; porque era aquelle o seu
sonho mais querido, e desde que era obrigado a convencer-se de que não
passára de um sonho, não se sentia de animo para fitar a realidade;
porque era aquella a luz da sua alma, e ao vêl-a apagar, vacillou nas
trevas e parou. Desde que não avistava um alvo, não havia para elle
retrogradar nem progredir; era um movimento sem fim, que não valia mais
do que a quietação.

Esta fôra a causa do desalento de Augusto, que só então conheceu que se
illudira com o estado do seu coração, que o que em si se passava era o
verdadeiro amor.

Desde que teve de renunciar a elle, não fez mais um esforço para
justificar-se da calumnia que pesava sobre si. Sentia-se indifferente á
condemnação do mundo. Já nem lhe importava justificar-se para com
Magdalena; era quasi uma vingança, que tirava d'aquella por quem
soffria, obrigal-a a ser injusta.

E a sua consciencia quasi achava voluptuosidade n'isto!

O herbanario fôra victima da mesma illusão de Augusto, e concorrêra
involuntariamente para o levar a este estado moral.

Das explicações dadas por Magdalena na casa dos Cannaviaes, sabemos como
das meias palavras e meias revelações de Torquato, o herbanario
acreditára que a morgadinha combinára imprudentemente com Henrique uma
visita nocturna á quinta dos Cannaviaes. O velho, que suspeitára sempre
da natureza dos sentimentos de Henrique para com Magdalena, julgou vêr
n'aquillo a confirmação das suas suspeitas, e encontrando Magdalena,
reprehendeu-a, e, de irritado que estava, nem escutal-a quiz.

Voltando a casa, o velho lidou por muito tempo com a dúvida, se deveria
ou não revelar tudo a Augusto.

A noite cerrou de todo e deslizou com a lentidão de uma noite de
inverno, sem que elle tivesse resolvido o que faria. O dia seguinte
passou-o na mesma indecisão. Mas a inquietação do herbanario crescia;
desassocegava-o a ideia do perigo a que suppunha exposta Magdalena, cuja
confiança em Henrique a podia perder.

O herbanario continuava a desconfiar de Henrique.

Chegára a noite, aquella em que Torquato lhe dissera ter com uma das
meninas de visitar á meia noite, por causa de Henrique, a casa dos
Cannaviaes. O velho não pôde mais tempo conter-se e disse a Augusto,
depois de muito luctar comsigo:

--Não devo calar-me. É preciso coragem, meu filho. Arranca do coração a
loucura que lá tens ainda, embora o deixes em sangue, ou estás perdido.

Augusto estremeceu, olhando-o com sobresalto.

O velho proseguiu:

--Tu vaes sair para te desenganares por teus proprios olhos, e se o que
vires te não curar, se é sem remedio esse mal, ao menos sê generoso, e
acode e salva, se fôr possivel, quem, perdendo-te, se perde tambem.

E após estas palavras vagas, cujo mais claro sentido Augusto tremeu de
investigar, o velho mandou-o aos Cannaviaes, n'aquella mesma noite,
recommendando-lhe que fôsse preparado para receber uma grande dor.

Augusto seguiu as indicações do herbanario, e foi.

Era d'elle o vulto que fizera estremecer Magdalena, quando na noite da
piedosa devoção de Christina, a vimos chegar á janella dos Cannaviaes.

A morgadinha reconhecêra Augusto através das sombras nocturnas, e tivera
um presentimento do que significava a presença d'elle n'aquelle logar e
n'aquella occasião.

Por concentrada e discreta que fôsse a paixão de Augusto, não era um
mysterio para Magdalena.

A extranhar alguem esta penetração de vista não será decerto nenhuma das
minhas leitoras.

Magdalena adivinhára havia muito Augusto, e não lhe fôra difficil
explicar até a instinctiva hostilidade com que elle sempre acolhêra
Henrique.

Por isso, ao vêl-o alli, previu que pesava sôbre ella uma suspeita, que
era victima de uma illusão, e que as apparencias a podiam condemnar.

De feito Augusto chegára tarde aos Cannaviaes, porque só tarde o
herbanario vencêra a hesitação que experimentára ao dizer-lhe que fôsse.
Por isso só pôde reconhecer a voz e a figura da morgadinha e de Henrique
no curto dialogo, que entre os dois se trocára, quando vieram examinar á
janella o estado da noite.

As palavras que escutou prestavam-se a ser interpretadas de uma maneira
cruel para o seu coração. Assim as entendeu Augusto, e, sem mais querer
vêr nem ouvir, retirou-se como um louco.

Foi n'essa occasião que Magdalena o viu.

Quando voltou a casa, o herbanario que, ainda acordado, o esperava,
viu-o pallido, e com uma expressão singular no rosto.

--Então?--interrogou-o anciosamente o velho.

--Tinha razão, tio Vicente. Tem sido uma longa e má loucura a minha.
Verei se me curo d'ella.

E, sentando-se, encostou a cabeça ás mãos e permaneceu silencioso.

O velho não lhe perguntou o que se tinha passado.

D'ahi em deante foi em rapido progresso a prostração de animo em
Augusto.

A doença do herbanario que se exacerbou consideravelmente tambem, era o
unico motivo de uma fôrça ficticia que ainda o sustentava. Os seus
desvelos pelo enfermo tornavam-lhe todos os instantes.

A unica voz, echo da vida exterior que lhe chegava aos ouvidos, era a do
cirurgião que tratava do herbanario.

Falador por indole e por cálculo profissional, o facultativo contava á
cabeceira do leito as novidades do dia. Entre essas trouxe uma das que
mais vogavam, que era a de que Henrique casava no Mosteiro com a
morgadinha.

Um equivoco dizer do Torquato, na presença dos criados do mosteiro, uma
das meias discreções do velho, mais perigosas do que a propria
indiscreção originára esta versão.

Augusto escutou a nova sem que o gesto o trahisse: mas o herbanario, que
o fitou com olhos interrogadores, leu claro n'aquelle rosto impassivel.

No dia das eleições, o estado do velho Vicente era mais grave ainda. O
cirurgião prolongou a sua visita e falou da campanha eleitoral.
Assegurou que era certa a derrota do conselheiro, desde que contra elle
se manifestára o sr. Joãozinho das Perdizes.

O herbanario escutou-o com admiração e sobresalto.

Porque a verdade era que o herbanario sentia pelo conselheiro uma
predilecção que a tudo sobrevivia, que nada podia destruir. Similhava o
affecto que alguns paes sentem pelos filhos, de quem só teem recebido
desgostos, affecto que parece robustecer tanto mais, quantos mais
motivos ha para a esfriar.

Pouco depois mestre Pertunhas confirmou a noticia do facultativo.

Foi então que o herbanario, dominado por energia febril, quiz erguer-se
do leito, e, apoiado no braço de Augusto, que em vão tentou dissuadil-o,
se dirigiu á igreja para votar. O resultado sabem-n'o os leitores.

Todas estas causas, e a ultima, a morte do amigo, acabaram por quebrar o
alento a Augusto. Facil é, pois, de conceber qual o estado do seu
espirito ao entrar no cemiterio.

Oração ou meditação, por muito tempo durou aquelle tributo de saudade,
que o aspecto sombrio da tarde e a melancolia do logar e da hora mais
solemne faziam.

Passados alguns momentos, sentiu Augusto que alguem se approximava
d'elle. Voltou-se. Era o Cancella, que tambem viera rezar junto do
tumulo da filha.

Não era o Cancella já o mesmo robusto e alegre aldeão que vimos,
dominado pelo enthusiasmo, sobre o tablado rustico, representar com
applauso o tyranno perseguidor do Messias. Desde a morte da filha
parecia outro. Triste, avelhentado, emmagrecido, nem tinha fôrças para o
trabalho, nem coração para alegrias.

Dir-se-ia que a filha lhe partira com a alma, e que era um cadaver o que
se movia alli.

--Ah! logo vi que era o sr. Augusto--disse o pobre homem, estendendo a
mão, que Augusto apertou com affecto.--Só nós temos amigos aqui.

--É verdade, Cancella. Ou só nós, fóra d'aqui, não temos outros, pelos
quaes esqueçamos estes, que ahi dormem.

--Eu decerto que não! Está-me toda a alegria, está-me todo o coração
debaixo d'aquella pedra--disse o Herodes, apontando para o tumulo da
filha.--Com mais de quarenta annos, que nova vida se pode principiar?

--Ha quem aos vinte já não tenha coragem para principiar outra!

O Cancella olhou fixo para Augusto ao ouvir-lhe estas palavras.

--Fala de si, sr. Augusto?... Não tem razão. Que são as suas dores ao
lado da minha? Se ainda não experimentou o amor e as alegrias de pae,
como ha de imaginar a dor, que a morte de uma filha unica nos traz ao
coração?... A minha pobre Ermelinda!... Parece-me ainda impossivel o
têl-a perdido!... Queria a esse velho, sr. Augusto!... E com razão, que
era seu amigo e quasi um pae para si... mas não é sem remedio a sua
saudade, verá... A minha porém...

Augusto sorriu amargamente.

--Tu sabes lá, homem, o que eu tenho no coração?

N'isto chegou-lhes aos ouvidos um vozear distante, com um rumor de
acclamações e applausos. Eram os clamores dos grupos populares,
celebrando a victoria do conselheiro.

Os sons da trompa do mestre Pertunhas dominavam todos os mais.

--Uns riem, emquanto outros choram--disse o Cancella.--Ha alegria acolá.

E designou com o dedo o Mosteiro, cujos telhados se avistavam d'alli.

--Ha...--respondeu Augusto, pensativo.--Somos de mais n'esta terra, meu
pobre Cancella; nós, os infelizes.

--Por isso parto ámanhã.

--Partes?

--Se eu não posso viver aqui! Se tudo isto me está falando na filha!...
A cada passo estou á espera de vêl-a... É como se a todo o instante me
morresse. Vou para a cidade; dizem que estão engajando por lá
trabalhadores para o Brazil... Quero vêr se o trabalho me mata, antes
que o desgôsto me não tente a morrer de outra sorte.

--E dizes que partes ámanhã?

--De madrugada. Já tenho tudo prompto.

Augusto reflectiu por algum tempo.

--Far-te-hei companhia.

O Herodes olhou-o, admirado.

--O sr. Augusto?! Pois quer?...

--Quero que me batas á porta, quando passares.

--Mas que tenções são as suas, sr. Augusto?

--As mesmas talvez que as tuas. Não dizes,que queres vêr se o trabalho
te mata? Por que não hei de eu tentar o mesmo tambem?

--Mas... não lhe morreu uma filha.

--E cuidas tu que só um amor de filha nos pode prender á vida? que só a
morte de uma creança nos pode ferir no coração?...

O Herodes esteve algum tempo calado, com os olhos em Augusto; depois
disse, com hesitação ainda:

--Não é por certo a morte d'este santo velho que o faz falar assim, sr.
Augusto. Se quizesse desabafar commigo... talvez que lhe fizesse bem.
Bem vê que eu sou infeliz e... havia de entendel-o...

Augusto apertou-lhe a mão, commovido.

--Pobre amigo! Não, não me entenderias; porque não basta ser infeliz
para me entender. É necessario ter sido louco como eu fui.

--Louco?!...

--Sim, louco, meu bom Cancella, louco. Não te lembras d'aquelle
desgraçado do Pé do Monte, que se suppunha rei? Como ria n'aquelle
tempo! Um dia voltou-lhe o juizo, mas ficou tão triste até morrer, que
parece que tinha saudades da loucura! Talvez que lhe devesse os unicos
instantes de felicidade que sentiu na vida.

O Herodes já não comprehendia Augusto, o que lhe fez crêr que o não
entenderia se elle o tomasse por confidente.

Augusto mudou de tom, dizendo-lhe:

--Promettes passar por minha casa esta madrugada?

--Pois sempre quer?...

--Se não partir comtigo, partirei só.

--N'esse caso...

--Espero-te. Aonde vaes agora?

--Ao Mosteiro.

--Ah!... vaes ao Mosteiro?...

--Vou despedir-me d'aquella santa familia, que tão bem me tratou da
filha, e de Angelo, d'aquella alma de cherubim, que ainda se não
consolou tambem da morte da minha pobre Linda.

--Angelo?... É um nobre coração... Espera... Não quero partir sem lhe
dirigir algumas palavras... Devo-lh'as.

--Só a elle?

--Só elle m'as agradecerá.

E Augusto approximou-se do tumulo da mãe de Magdalena, e á frouxa
claridade d'aquella hora escreveu com um lapis em um quarto de papel
estas palavras:


     «Angelo.--Escrevo-lhe sobre a pedra do tumulo, em que repousam sua
     mãe e Ermelinda, duas imagens que serão sempre para o seu coração
     rodeadas de todo o prestigio da saudade. Ouça-me, que em nome
     d'ellas lhe falo. Dentro de algumas horas deixarei para sempre
     estes sitios. Se as memorias da infancia me prendiam aqui, as
     sombras de grandes soffrimentos as offuscaram. Parto quasi sem
     custo. Não o tornando talvez a vêr, Angelo, tinha um dever a
     cumprir para com a sua generosidade. Hão de ensinal-o a
     desprezar-me, Angelo. O seu nobre instincto de creança
     recusar-se-ha a isso ao principio talvez: mas a razão do
     adolescente talvez venha a ser mais docil. Não podendo
     justificar-me, deixe-me ao menos jurar-lhe que parto com a
     consciencia tranquilla. Não é por mim que faço este protesto, é
     para lhe evitar, se fôr possivel, a dúvida no caracter dos homens.
     Para um coração, como eu lhe conheço, deve ser um martyrio. Os mais
     que me condemnem; nem necessidade sinto já de me justificar. Parto
     com um desalentado como eu. O que vou procurar não sei. Tudo
     acceito com indifferença.--Seu amigo, _Augusto_.


Fechando a carta, entregou-a ao Cancella, e ajustando outra vez a hora a
que deviam encontrar-se, separaram-se.

O Cancella dirigiu-se para o Mosteiro e ainda a pensar nas palavras que
ouviu a Augusto, e sem que atinasse com os motivos d'aquelle desalento.

Não pôde, porém, chegar tão depressa ao Mosteiro como esperava;
distrahiu-o no caminho o seu compadre Zé P'reira.

A harmonia do par conjugal de que constituia a parte masculina o nosso
Zé P'reira, estava cada vez mais transtornada.

A beatice azedára o animo da sr.^a Catharina do Nascimento de S. João
Baptista.

A saida precipitada do missionario, que não se sentiu seguro na terra
depois da scena do cemiterio, e do desespero do Herodes, com quem elle
imaginava a cada passo esbarrar, rodeára aquelle santo varão do
prestigio dos martyres perseguidos; e as saudades por elle e devoção
pela sua memoria augmentaram consideravelmente na aldeia.

Se mal corria ha muito a casa e o governo domestico da familia Zé
P'reira, peor se tornou depois d'essa época.

A mulher passava todo o tempo em devoções na igreja. O marido,
desconsolado, procurava lenitivo na taberna.

Descuidou-se cada vez mais de trabalhar. A embriaguez era n'elle estado
habitual, e já menos inoffensiva e pacifica do que nos primeiros tempos.

A miseria ameaçava invadir aquelle lar, até alli remediado.

Tudo isto exacerbára a acrimonia das discussões conjugaes.

Marido e mulher fustigavam-se com os menos amaveis epithetos e
attribuiam-se reciprocamente as honras da ruina do casal.

De noite desencadeiava-se a tempestade domestica e cada vez mais
ameaçadora.

Um dia, o marido, excitado pelo vinho, foi mais além do que a sua
timidez habitual o permittira até alli, e a sr.^a Catharina soube, pela
primeira vez, que o osso de que ella era osso não tinha a brandura que
lhe suspeitava.

Deu-se uma scena escandalosa, em que interveio a vizinhança. D'ahi por
deante fôram frequentes iguaes espectaculos.

Na noite em que o Herodes o encontrou, o Zé P'reira, em completa
embriaguez, acabára de fazer sentir mais uma vez a sua mulher toda a
fôrça da auctoridade marital. Ella revoltou-se e abandonou os penates,
jurando que nunca mais voltaria a elles.

O pobre do homem andava agora perdido nas ruas á procura d'ella,
arrepellando-se, chorando, praguejando, que mettia dó. O Cancella
condoeu-se d'elle, e dando-lhe o braço, para lhe firmar os passos
cambaleantes, conduziu-o a casa, promettendo restituir-lhe a mulher
fugida.

E n'esta tarefa de reconciliação passou grande parte da noite,
conseguindo a final harmonisal-os, mas convencido de que não seria muito
duradoura a paz.

E tinha razão o Cancella em pensar assim. Ao lar domestico, onde uma vez
se passa uma scena d'aquellas, nunca mais volta o anjo da concordia.

O pobre do Zé P'reira estava condemnado a levar assim o resto da sua
vida de familia.

Esta occorrencia demorou o Herodes, que só tarde entrou no Mosteiro a
despedir-se da familia que tanto lhe estimára a filha.

 


XXXII


Augusto, ao voltar a casa, sentiu que estava inevitavelmente votada á
insomnia aquella noite, a ultima que devia passar na aldeia, não porque
os preparativos da jornada lhe impedissem o repouso, mas a lucta de
tantos pensamentos e paixões encontradas, decerto lhe disputaria o
espirito.

Partir é já uma palavra, que quasi nunca se pronuncia com indifferença;
partir para não voltar é uma ideia afflictiva, que mais violenta
commoção desafia; partir sem esperanças no futuro... poucas torturas de
alma se podem comparar a esta!

Experimentava-a Augusto.

Era quasi uma resolução de suicida a sua. Nenhuma ambição tivera poder
sobre elle para o arrancar d'alli; tivera-o o desespero.

A cada momento, elle proprio surprehendia-se immovel, abstracto, com os
olhos fitos na chamma da véla, com a cabeça entre as mãos, sem saber em
que pensava, sem consciencia de si.

A noite estava socegada, e apenas o som monótono de uma fonte proxima
interrompia o silencio d'aquellas horas adeantadas.

Augusto abria um livro, mas lia como por certo o leitor sabe que se
costuma ler em situações identicas.

Levantava-se para fazer os aprestes da jornada, mas havia em todos os
seus movimentos uma indecisão, uma falta de consciencia, que não deixava
dúvidas sobre o estado do animo que os regia.

Como que a todo o momento estava esquecendo a que fim convergiam as suas
acções; e no meio do cumprimento de uma tenção, perdia a consciencia
d'ella.

Parava defronte de um livro, como se irresoluto em saber se o levaria
comsigo; mas cêdo afastava-o de si com enfado.

Examinou depois os papeis e as cartas; queimou tudo. Vestigios de
passados devaneios, effusão de uma alma sensivel, fructos da juventude e
da solidão, a que a primeira inspirára o enthusiasmo, e a segunda a
melancolia, tudo consumiu; com certo prazer amargo via atear-se a
chamma, desapparecerem as lettras, reduzir-se tudo a cinzas.

Respeitou apenas as cartas de Angelo, que releu commovido. Falava-se em
algumas de Magdalena. O sobresalto do seu coração, ao ler aquelle nome,
era então mais violento que nunca.

N'estas pesquizas veio-lhe ás mãos um pequeno masso, que pertencêra ao
herbanario.

Ia para as queimar tambem, quando a inscripção, que viu por fóra da
cinta que as enfeixava, o fez hesitar.

Liam-se estas palavras:--_Cartas de Magdalena_.

Cartas de Magdalena! Este nome tinha no animo de Augusto o valor de uma
tentação.

Cartas de Magdalena! Era quasi ouvil-a falar, prazer a que já tinha
renunciado; era entrar em communhão de pensamentos com ella, e infeliz
de quem não concebe a casta voluptuosidade d'este gôso.

Mas ao mesmo tempo hesitava.

Pertencia-lhe tambem aquelle legado? Não seria um abuso lel-as? Devia
antes queimal-as, mas... eram cartas de Magdalena. E depois, que mal
poderia vir da indiscreção? Não tinha elle um coração que não devia
abrir-se mais a ninguem? Encerrar alli qualquer segredo era encerral-o
quasi em um tumulo.

E que segredos podiam ser os de Magdalena e Vicente?

De que se poderia tratar alli, a não ser de algum affectuoso cumprimento
da morgadinha ao velho, que sempre tratára com intima familiaridade, ou
algumas meigas reprehensões por a sua porfiada ausencia do Mosteiro?

Augusto recordava-se até do velho lhe ter falado na indole d'estas
cartas.

Nas vesperas de renunciar para sempre á felicidade, devia-se perdoar a
tentação.

Abriu-as.

Não ia muito adeantado na leitura, quando já todos os signaes de
hesitação cediam o logar aos da mais irreprimivel avidez. E terminada a
primeira, abriu, leu ou devorou outra, e após outra e outra, até a
ultima; da ultima voltava de novo á primeira, e cada vez mais profunda
commoção parecia dominal-o.

Transcreveremos algumas d'aquellas cartas, para o leitor julgar de
todas.

Dizia uma:


     «Meu bom amigo.--Hontem, depois que nos separámos, recebi de Lisboa
     a encommenda que esperava. O Angelo não se esqueceu. Mando-lh'a,
     para que mais uma vez faça de feiticeiro, _adivinhando_ os gostos
     do seu amigo.

     «Afianço-lhe que vae acertar com os desejos d'elle. Ha tempos que o
     vejo, emquanto espera na sala por os pequenos, procurar de
     preferencia na estante os livros de historia franceza. Custa-me a
     perdoar-lhe os attractivos que tem para elle a Revolução, mas emfim
     seja feita a sua vontade. Escuso de lhe recommendar discreção. E,
     quando nos virmos, peço-lhe que me não torne a falar nos laços em
     que diz que eu estou a prender o coração. Mette-me mêdo.--Sua
     amiga, _Lena_.»


Esta era uma das mais remotas em data. Outras diziam:


     «Meu amigo.--Hontem separámo-nos de tão mau humor, que hoje acordei
     com remorsos, e não pude socegar emquanto lhe não escrevi para lhe
     pedir perdão. Espero que perdoará a este rebelde genio que tenho.

     «Mas tambem para que me está sempre a ralhar? Não se assuste pelo
     meu coração; o maior perigo que o tio Vicente receia para elle,
     faz-me sorrir.--É o de me apaixonar?--Então que tinha? Não sonhe
     com nuvens, e vá representando o seu papel de _adivinho_, que é uma
     generosa acção que pratica.--Sua arrependida inimiga, _Lena_.»


     «Meu bom tio.--Ahi vão uns livros, de que eu não entendo nada.
     Augusto falou d'elles ao filho do administrador, que veio de
     Coimbra. Conheci n'elle desejos de possuil-os. Tomei nota. O Angelo
     remetteu-m'os hontem. Para Augusto não desconfiar, finja atraiçoar
     um pouco o mysterio, e fale no filho do administrador. Do mais, já
     nada digo.»


A de mais recente data dizia apenas:


     «Tio Vicente.--Pensei no que me disse do estado do coração do
     seu... do nosso amigo. Parece-me que exaggera. Mas, se fôsse
     verdade, podia tranquillisar-se. Eu lhe afianço que d'ahi nunca
     para elle virá a infelicidade. No entretanto, discreção por
     ora.--Sua affeiçoada sobrinha, _Magdalena_.»


Por a amostra, que lhe damos, o leitor não deve estranhar que estas
cartas estivessem causando a Augusto o effeito que dissemos.

Cada uma era uma revelação.

Augusto vivera sem o saber, sob a influencia benefica da morgadinha;
d'ella lhe viera pois grande parte da instrucção que recebera, alli, na
solidão d'aquella aldeia!

O mysterio dos presentes do herbanario, a que tão diversas explicações
dera, esclarecia-se emfim. Havia-os attribuido a Angelo; suspeitára,
pelo menos, que era a elle que o herbanario se dirigia para escolher os
livros.

Nunca, porém, se lembrára de Magdalena; agora, que sabia de que origem
provinham, beijava-os, como sagradas reliquias, venerava-os com
expansões de verdadeira idolatria. Já não tinha coração para se separar
d'elles.

Nas cartas em que Magdalena se referia, mais ou menos jovialmente, aos
cuidados que parecia dar ao herbanario esta sympathia manifesta d'ella
por Augusto, não havia para elle menor encanto. Pelo que tantas vezes
lhe dissera o herbanario, conjecturava de que natureza deviam ser as
reflexões a que Magdalena alludia.

O velho Vicente estava, por assim dizer, no meio d'aquelles dois
corações, estudando-os a ambos, receiando por ambos, lidando por
extinguir n'um e n'outro a sympathia que via crescer e que ameaçava
degenerar em paixão. Toda a sua intervenção consistia em fazer com que
elles se não revelassem; era o meio isolador que impedia que se ateasse
o incendio. Nas suas mãos paravam os dois fios da corrente, só elle a
interrompia.

Esta situação do herbanario era para elle causa de grandes iuctas.

Amando Augusto com sentimento paterno, tinha ambições por o amigo; e, ás
vezes, movido d'ellas, sentia-se tentado a favorecer aquella paixão. Por
outro lado, não estimava menos Magdalena, e prevendo as resistencias e
repugnancias com que ella teria a luctar, e os tormentos a soffrer,
hesitava e desejava poder abafar no coração dos dois os germens de
pesares futuros.

Tivemos occasião de o vêr sob estas diversos impressões. Umas vezes
reprehendendo Augusto, outras quasi deixando-lhe entrever esperanças. A
chegada de Henrique de Souzellas e os successos subsequentes despertaram
no velho uma especie de ciume, e fizeram-n'o mais ardente partidario de
Augusto.

Tudo isto estava agora transparecendo ao espirito de Augusto.

Beijou as cartas da morgadinha, releu-as, apertou-as ao coração, e tão
enlevado estava pelo perfume do affecto que rescendia de todas, que nem
se lembrava já da hora proxima da partida do motivo que a originára.
Motivo que era o desmentido da sua illusão.

Mas esta ideia amarga acudiu a final, e a impressão que produziu foi
dolorosa. Pela primeira vez, n'aquella noite lhe vieram as lagrimas aos
olhos, a fronte pendeu-lhe, quasi desfallecida, sobre os braços, e assim
permaneceu por muito tempo.

Depois levantou a cabeça n'um impeto de desesperação, exclamando:

--Para que me haviam de vir á mão estas cartas? Que espirito diabolico
se compraz de martyrisar-me assim? Saber que um anjo me acompanhava com
a sua vista protectora só quando elle me vae deixar para sempre! E dizia
ella que me não podia vir o infortunio d'aqui!... Não contava com as
mudanças do proprio coração.

Na vidraça da sala terrea, em que se achava Augusto, soaram algumas
leves e rapidas pancadas que o fizeram estremecer.

--O Cancella já?... É pois certo que vou partir?

Levantou-se para abrir, e os passos vacillavam-lhe como os do condemnado
ao caminhar para o supplicio.

Chegára o momento de romper com todas as esperanças.

--Estou prompto--disse elle, abrindo a porta e voltando para dentro, sem
reparar em quem entrava; e poz-se a reunir e a ordenar os papeis que
tinha dispersos na mesa.

--Cuidei que era mais cêdo--continuou elle.--Distrahi-me a ler umas
cartas que estive a pôr em ordem, e o tempo correu. Vamos lá, meu pobre
amigo, deixemos esta terra para os venturosos.

E, dizendo isto, desviou o olhar para o sitio onde julgava que devia
estar o Herodes; mas, em vez d'elle, achou deante de si Angelo e
Magdalena, que, parados no meio da sala, o fitavam com melancolico
sorriso.

Augusto estremeceu, soltando um grito de surpresa, e com o olhar fito em
Magdalena, ficou por bastante tempo n'essa muda contemplação.

Magdalena foi a primeira que falou.

--Admira-se de nos vêr aqui?--disse ella.--Que ha de mais natural?
Angelo recebeu a sua carta e mostrou-m'a. Tivemos ambos o mesmo
pensamento; viemos para dizer-lhe... pelo menos o adeus que lhe
deviamos... visto que vae partir.

E havia n'estas palavras de Magdalena um mal pronunciado tom de
recriminação, que feriu Augusto.

--E é certo que quer partir?--perguntou Angelo.

--Sim... parto...--respondeu Augusto, perturbado.

--Mas por quê? Que significa essa resolução? Lena contou-me ha pouco
tudo. Eu nada sabia. Disse-me que o offenderam com uma suspeita infame,
e em nossa casa! Mas, já resolvemos; ámanhã, eu e Lena, havemos de
falar, havemos de conseguir...

--Não, Angelo. É inutil. Deixe-me com o meu destino. É a elle que eu
obedeço.

--Não fala verdade,--acudiu a morgadinha--diga que obedece á sua
phantasia, e commette uma ingratidão.

Á palavra «ingratidão», Augusto não pôde reprimir um sorriso de
amargura.

--Uma ingratidão, sim--repetiu Magdalena, respondendo com firmeza e
serenidade áquelle sorriso.--Ha dias, depois de uma scena dolorosa para
todos nós, quando saía do Mosteiro subjugado por uma mysteriosa e cruel
fatalidade, encontrou alguem no limiar da porta, que lhe pediu que não
partisse sem se despedir... de quem através de tudo, o acreditaria
innocente. E para esta pessoa não houve uma só palavra na carta de
despedida que mandou a meu irmão! E escreveu-a sobre o tumulo de minha
mãe!

Estas palavras fôram ditas com tão sentida commoção, que Augusto esteve
quasi a lançar-se-lhe aos pés, para pedir perdão; reteve-se, porém, e
respondeu turbamente:

--Porém, minha senhora, por essa occasião eu jurei tambem á pessoa de
quem fala, e a quem serei sempre grato, que não procuraria tornar a
vêl-a, nem falar-lhe antes de me poder mostrar aos olhos de todos digno
da sua generosa confiança.

--Foi isso que jurou, ou antes que não procuraria ser visto?--perguntou
Magdalena, sorrindo.--Veja qual d'esses juramentos será mais em harmonia
com os seus actos.

A lembrança da excursão nocturna aos Cannaviaes, para espiar Magdalena,
tirou a Augusto o animo de responder.

Magdalena comprehendeu aquelle embaraço, e não insistiu.

--Mas supponhamos que assim foi; visto isso, parte para buscar as provas
da sua justificação?

--Não, minha senhora, parto, porque desisto d'ella. Basta-me estar
justificado para com a consciencia.

--Não tem direito para o fazer. Uma alma, que é nobre, deve homenagem a
si propria. Resignar-se á suspeita, é como um suicidio moral.

--Justamente, minha senhora; e não concebe que haja casos em que o
suicidio seja natural?

--Meu Deus, Augusto--exclamou Angelo--como eu o estranho! o que o levou
a esse desespero?

A morgadinha sorria, ao responder ao irmão:

--É uma febre que passa, verás. Quer que lhe fale com franqueza, sr.
Augusto? Tenho um secreto presentimento a dizer-me que, apesar d'essa
descrença, apesar d'essa carta, e apesar de estar por minutos o momento
da partida, não só não partirá, mas até ha de tomar parte na nossa
primeira festa de familia, a do proximo casamento de Christina.

Estas ultimas palavras fizeram impressão em Augusto, que
instinctivamente repetiu:

--Do proximo casamento de Christina?!

--Pois não sabia que Christina vae casar?-perguntou Magdalena com a
maior naturalidade, mas fitando os olhos em Augusto.--É verdade, o sr.
Henrique de Souzellas teve pressa de legitimar o titulo de primos, com
que arbitrariamente nos tratavamos.

Augusto olhou para Magdalena, com indefinivel expressão, dizendo:

--Quê?... pois é com Christina... pois Henrique vae casar com...

Só depois de lhe romperem dos labios estas palavras, é que, reconhecendo
a indiscreção da sua surpresa, accrescentou com mal simulada
indifferença:

--Ah! não sabia!

--Devéras? Pois não tinha ouvido falar d'este casamento? Oh... querem
vêr que suppunha tambem que era eu a que me casava?... Digo isto, porque
o Cancella tambem estava na mesma crença. Parece que correu essa voz na
aldeia. Estes boatos!... E acham logo quem se fie n'elles!

E, mudando de inflexão, proseguiu:

--São dois noivos exemplares, Henrique e Christina, perdidos um por o
outro. Christina, com a sua timidez, exerce um forte imperio sobre
aquelle incorrigivel da capital. Mas para isso foi preciso encontral-o
doente. Tenho orgulho de ser eu a primeira a legitimar, de alguma
maneira, aquella sympathia. Fôram singulares as circumstancias em que
isto se effectuou. Eu lhe conto. Foi de noite, e noite de chuva, na
capella-mór da minha propriedade dos Cannaviaes, onde Christina fôra
rezar, pela saude de Henrique, as estações da meia noite; onde Henrique
foi para seguir e observar Christina, e onde eu fui, com a Brizida, para
os vigiar a ambos e preparar-lhes o futuro; intervenção algum tanto
perigosa, porque podia haver quem me seguisse a mim com menos generosas
intenções de que as de qualquer dos tres, e que, ao vêr-me em tão
extraordinario sitio, a taes horas, não me concedesse a confiança
precisa para acreditar, através de tudo, na minha innocencia.

A allusão era clara, e mais clara a fazia a inflexão com que foi
pronunciada.

Augusto curvou a cabeça e murmurou:

--Tem razão, algum miseravel.

--Ou algum infeliz--corrigiu delicadamente Magdalena.--Os infelizes são
tambem sujeitos a perderem a fé. Mas quem lhes pode levar a mal isso?

Houve alguns instantes de silencio, no fim dos quaes a morgadinha disse
mais jovialmente:

--Mas afiancei ha pouco que não partiria. Acaso me enganei?

Augusto, como o leitor concebe decerto, já não tinha animo nem razão
para dizer que partia. Calou-se.

Angelo, a cuja prompta intelligencia não tinha ficado latente o
verdadeiro sentido d'este dialogo, graças tambem ao conhecimento que
elle tinha, havia muito, do coração de sua irmã e do de Augusto,
respondeu por elle:

--Não te enganaste, não, Lena. Tambem eu já digo que Augusto não
partirá.

E Augusto sem protestar!

Magdalena tornou-se de subito mais séria e grave do que até alli, e a
mesma gravidade tinha na voz, quando de novo se dirigiu ao irmão,
dizendo:

--Para vir aqui, pedi o auxilio do teu braço de creanca, Angelo, como se
fôra o de um homem. Deixa-me considerar-te por mais algum tempo ainda da
mesma maneira, emquanto não termino a minha missão. Ha pouco, depois que
me leste a carta, que a ti tinha sido dirigida, perguntaste-me: «Que
tencionas fazer?» Não é assim?

--Foi, e tu respondeste-me o que eu esperava. Pediste-me que te
acompanhasse aqui.

--Has de já ter percebido que o pensamento que me obrigou a este passo,
que não sei se me deverão censurar, creio até que devem, que esse
pensamento não está cumprido ainda.

--Vejo que não.

--Pois é deante de ti, Angelo, que considero como um homem, como um bom
conselheiro, é deante de ti, como seria deante de quem quer que ahi
estivesse em teu logar a ouvir-me, que eu vou concluir o meu pensamento.

E voltando-se para Augusto, Magdalena accrescentou com firmeza, que só
um demasiado rubor trahiria, se a luz fôsse bastante para o denunciar:

--Augusto, está pobre, sem familia, sem amigos, e, para ultima provação,
até as traições e as suspeitas lhe não pouparam o nome honrado que
herdou. Essa posição dá-lhe direitos que eu sei comprehender, creia. É
uma especie de nobreza, de que se não pode exigir humilhação alguma. Por
isso, sem hesitar, com toda a lealdade, vim aqui em companhia de Angelo
para estender-lhe a mão e dizer-lhe que se, como tenho razão para crer,
as sympathias de uma alma que ha muito o comprehende, Augusto, se essas
sympathias podem bastar ás aspirações da sua, se, para ganhar coragem,
os meus affectos lhe podem servir, conte com o auxilio da minha alma...
e dos meus affectos. É deante de ti, que faço esta confissão, Angelo.
Terás que me ralhar por causa d'ella?

Ao ouvir aquellas palavras, Augusto esqueceu toda a hesitação, e tomando
entre as suas a mão que Magdalena lhe estendia, cobriu-a de beijos
apaixonados.

Magdalena não teve pressa de retiral-a.

Angelo veio tambem beijar as faces da irmã. Era assim que respondia á
pergunta d'ella.

Pobres creanças! Porque a final eram creanças todos tres, creanças a
quem ainda os romances namoram, sem que se lembrem de que, ao
transplantal-os para a vida real, todos os desconhecem e censuram, e só
regando-os de lagrimas é que as mais das vezes se consegue nutril-os.

O olhar de Augusto radiava já com o vivo fulgor da alegria.

--Obrigado, Magdalena, deu-me a vida com essas palavras generosas.
Deixe-me adoral-a, anjo, anjo libertador! Comprehendo os deveres que
tenho a cumprir. Hei de ter fôrça para conquistar as provas da minha
innocencia. Preciso agora d'ellas; hei de obtel-as, e depois...

Aqui reteve-se de subito, e uma nuvem de tristeza toldou-lhe de novo o
rosto.

Magdalena, como se o comprehendesse, concluiu:

--E depois sou eu quem tem o direito de exigir que não pare. Bem vê que,
depois do passo que dei, se algum escrupulo ou orgulho pesasse no seu
coração, Augusto, seria uma dolorosa offensa que me fazia. Acceitou a
mão, que eu com lealdade lhe offereci; a lealdade obriga-o agora a
seguir o caminho do Mosteiro.

Depois de alguns instantes de reflexão, Augusto respondeu outra vez com
firmeza:

--Tem razão, Magdalena. Terei coragem para cumprir o meu dever.

Escusado é dizer que o Herodes teve de partir só.

O bom homem ficou espantado ao encontrar em casa de Augusto tão
inesperada companhia, mas não lhe foi difficil, depois do que viu e
ouviu, conjecturar qual a natureza dos motivos que tinham feito mudar de
resolução o seu companheiro de jornada.

Partiu, desejando todas as felicidades aos seus amigos.

Estes não conseguiram dissuadil-o de partir.

Não havia já estimulo para arrancar aquelle coração ao desalento.

Magdalena e Angelo voltaram ao Mosteiro.

O resto da noite de Augusto passou sob a influencia de tão violentas
paixões, que desisto de descrevel-as.

 


XXXIII


Na manhã do dia seguinte estava toda a familia de Magdalena, na qual
incluimos já D. Dorothéa e Henrique, reunida em uma das salas do
Mosteiro.

As duas primas, Magdalena e Christina, trabalhavam em costura; Angelo e
Henrique jogavam o xadrez; D. Dorothéa e D. Victoria conversavam a
respeito do preço de umas meadas de linho, que esta tinha dado a córar,
e da pessima qualidade do fiado, effeito evidente, segundo D. Victoria,
das criadas que tinha, que nem para fiar serviam. O conselheiro
examinava distrahido varios memoriaes e cartas de empenho, que recebera,
já a pedir empregos e graças em paga dos serviços eleitoraes, ás vezes
hypotheticos.

A cada passo, porém, Magdalena suspendia o trabalho, para olhar para a
porta da sala, principalmente quando nos immediatos aposentos se
escutava algum rumor; ou trocava olhares com Angelo, que não com menor
frequencia os desviava das pedras do taboleiro para encontrar os da
irmã.

Henrique tambem, de quando em quando, tinha que perguntar a Christina, e
esta, para lhe responder, julgava-se obrigada tambem a afastar os olhos
da costura.

D. Victoria e D. Dorothéa não era raro metterem-se na conversa dos
outros, d'onde facil transição achavam logo para voltarem aos seus
assumptos favoritos: meadas e criados.

O conselheiro interrompia a cada momento a leitura com bocejos, ou fazia
notar alguma mais exorbitante pretensão de tantas que examinava.

Era evidente que todas aquellas cabeças estavam pouco preoccupadas com
os assumptos apparentes das suas cogitações.

--Ó Lena!--dizia Christina, que pela terceira vez chamava a prima, sem
conseguir ser ouvida--que tens tu esta manhã? Que distracções são essas,
que não respondes quando te chamam?

--Pois falaste-me?

--É o que eu digo! Ó menina, ha que seculos te estou eu a perguntar em
que tempo é que as laranjeiras teem flor?

--Ah! Christe!--acudiu o conselheiro do lado, sorrindo.--Esse pensamento
é linguareiro; ficamos todos sabendo aquillo em que tens estado a
scismar.

Christina córou intensamente, ao perceber o sentido das palavras do
conselheiro, e tentou defender-se, dizendo:

--Ora, não era isso, tio. Eu perguntava, porque...

--Socega, quando o véo estiver prompto, a laranjeira não nos faltará com
ramos e flores.

--Não, mano--disse D. Victoria--olhe que se não trata de vêr o que é que
está dando nas laranjeiras, dentro em pouco não ha uma só na quinta. Que
tambem para serem comidas as laranjas pelos criados... Porque quasi que
são só para elles. Não que não faz ideia!...

E continuou com D. Dorothéa a narração dos abusos de que os criados eram
culpados.

D'ahi a momentos foi o conselheiro o primeiro a falar.

--Esta é galante!--disse elle, examinando uns papeis e rindo.--Ora ouça
isto, Henrique. Aqui está um homem que deseja que eu lhe empregue nada
menos do que sete sobrinhos que tem. Sete! É uma geração como a de
Jacob; se estivessemos na côrte de Pharaó!...

--Se se satisfizessem cada um com uma pasta?... Era um ministerio
completo--disse Henrique.

--Oh! oh!--disse o conselheiro, passados alguns momentos.--Cá está o meu
amigo Pertunhas, teimando com o logar de recebedor.

--Pois o maroto ainda se atreve?

--E que despeza de estylo que faz! É uma ode congratulatoria em prosa.

N'estas entremeadas conversas e dialogos curtos e interrompidos
passou-se o tempo até a chegada do correio, successo que marca época
n'uma manhã passada na aldeia.

N'aquelle dia sobretudo eram esperadas com ancia as cartas e os
periodicos, que deviam trazer noticias do resultado das eleições dos
differentes circulos do paiz.

O conselheiro já por tres vezes consultára o relogio, extranhando que o
correio se demorasse.

Emfim, chegou. O conselheiro poz de lado os memoriaes e requerimentos;
Henrique deu subito desfecho ao jôgo com um lanço absurdo, e ambos se
precipitaram sobre os periodicos e cartas; Angelo veio encostar-se ao
espaldar da cadeira de Henrique.

O conselheiro principiou por ler uma carta.

Henrique rompeu a cinta do primeiro periodico.

--Oh! oh!--disse o conselheiro, logo ás primeiras linhas que leu.--Temos
crise ministerial. As eleições fôram pouco favoraveis ao governo;
perderam-se em quasi toda a parte!

--Assim tambem se deprehende do estylo em que vem escripto este artigo
de fundo--disse Henrique.

--Dizem-me n'esta carta que já se fala em que o ministerio vae pedir a
sua demissão.

--Este artigo allude apenas a uma reconstrucção do gabinete.

-«O governo--proseguiu o conselheiro, lendo,--nem espera pela
constituição da camara e cáe por estes dias, infallivelmente. Quando
vossê receber esta, já talvez elle pertença aos livros findos.»

--«Diz-se que ha para esta noite conselho de ministros para resolver
sobre qual o seu procedimento, visto a indole provavel na futura
camara»--lia Henrique no periodico, que logo em seguida pôz de lado,
para consultar outro.

--«Não imagina--continuava o conselheiro, lendo a carta--o movimento de
ambições que vae já por aqui». Ora se não imagino!

--Um numero do _Suffragio Nacional_!--exclamou Henrique, abrindo segundo
periodico.--Provavelmente é alguma amabilidade que lhe dirigem, sr.
conselheiro; elles que lh'o mandam!

--Sim, decerto. Como da outra vez. Veja lá,--disse o conselheiro,
sorrindo--aos moribundos tudo se perdôa.

Henrique correu a vista pela folha, para saber o que motivára a remessa
d'ella para o Mosteiro, onde não costumava vir.

--Ah! temos correspondencia cá da terra!--exclamou por fim.

--Deve ser isso. Já tardava. É communicado do Seabra. Leia, que são
curiosos. O homem a apreciar as eleições de domingo deve ser soberbo.
Isso não se pode perder. Leia, leia.

--Assigna-se _um eleitor indignado_.

--Justo. É o estylo do homem. Vamos lá a vêr isso.

Henrique principiou a ler em voz alta o communicado do brazileiro.

A peça litteraria, de precioso lavor, em que o sr. Seabra contava ao
mundo os factos eleitoraes da sua terra, muito desejaria eu
transcrevel-a aqui, se, pela sua extensão, não tomasse demasiado espaço,
e se, pela sua unidade e estreita ligação logica, se não subtrahisse á
menor tentativa de fragmentação.

Aquelle communicado era indivisivel.

Apesar d'esta forçada omissão, espero que os leitores farão a justiça de
suppôr o escripto digno do distincto economista, que ouvimos discursar
com tanta proficiencia na taberna do Canada.

O homem escrevia recheado de indignação pela serie de illegalidades,
escandalos, subornos e pressões de todo o genero, de que, dizia elle,
fôra theatro aquella pacifica aldeia do Minho.

Em _linguagem chã e rude_ ia tornar patente, accrescentava, aos olhos de
todos uma _pestifera chaga do organismo social_. _Sophismára-se a urna e
calcára-se aos pés a Carta_. As phrases em italico são d'elle. Depois de
um exordio por esta afinação, em que fazia a conveniente razão de ordem,
entrava o homem na materia. Era um modêlo de impertinente bisbilhotice o
escripto; desfiava-se alli a vida de todos os eleitores com uma
minuciosidade esmagadora.

Contava-se como o compadre de Fulano dissera isto e aquillo ao sobrinho
de Sicrano, e como tal individuo fizera e acontecera; e como tal disse
que havia de fazer, e não fez; e como aquelle nem disse nem fez; e como
aquell'outro dissera e fizera, e assim por deante. Um dos mais
maltratados era o sr. Joãozinho das Perdizes. Dizia o auctor da
correspondencia que o morgado se tinha vendido por vinho; que exercera
pressão sobre os eleitores da sua freguezia; que era homem de pessimos
costumes e moral depravada; jogador, bulhento, beberrão cheio de
dividas, amigo de malfeitores, _et coetera_.

O conselheiro e Henrique seguiam a leitura com gargalhadas.

O communicado passava depois a occupar-se com o mestre Pertunhas.

O brazileiro não lhe perdoára a pressa com que este celebrára a victoria
do conselheiro, á frente da philarmonica que regia.

Por vingança chamava-lhe todos os nomes injuriosos, que a raiva lhe
suggeria, inclusivé o de estafador de trompa, e fechava por estas
memoraveis palavras:

«Para levar á evidencia o caracter infame e intriguista d'este
sevandija, basta que diga que foi elle que, poucos dias antes, subtrahiu
de uma pasta aquella celebre carta politica, que tanto deu que falar no
paiz. E este homem exerce o cargo de administrador do correio. _Proh
pudor!_»

Como o leitor imagina, esta parte da correspondencia produziu sensação
no auditorio.

Logo que Henrique concluiu a leitura, saiu de quasi todas as bôcas uma
exclamação de surpresa ou de alegria.

--Como é?... como é?...--perguntou o conselheiro.--Diz que...?

--É o mysterio que se explica--respondeu Henrique.--A traição
encarrega-se de a si propria se desmascarar.

--Então foi o Pertunhas?!... Mas... diz-se que tirou a carta de uma
pasta!

--Era a de Augusto.

--Mas como estava ella ahi?

--Lá isso sei eu como foi,--disse D. Victoria--fui eu que, por engano,
lh'a tinha dado junta com outras para elle escolher alguma para a
leitura dos pequenos.

Christina celebrou a descoberta, beijando com effusão a morgadinha, e
dizia:

--Venceste, Lena! agora está bem provada a innocencia d'elle, até para
os que mais duvidavam!

--E quem não duvidaria?--acudiu o conselheiro, como para se desculpar da
desconfiança.

--Quem o conhecesse bem, meu pae--respondeu Magdalena, a quem a commoção
recebida dava animação ao olhar e ao semblante.--Eu e Angelo, por
exemplo.

--E então eu?--accrescentou Christina.--Eu não entro na conta?

Esta reclamação valeu-lhe da parte da prima a paga do beijo que
recebera.

--Olhem o pobre rapaz!--dizia D. Victoria, sinceramente consternada.--E
eu que o tratei tão mal! Bem me dizia elle: «Não tenha pressa de dizer
nada a seus filhos, minha senhora, não lhes ensine a duvidar de um homem
que elles se costumaram a amar e a respeitar.» E o caso é que eu, desde
que lhe ouvi dizer aquillo, de um modo tão sério e triste, fiquei
resentida, e não disse nada ás creanças, que todos os dias me
perguntavam ainda por elle.

--Mas...--dizia D. Dorothéa, deveras embaraçada--eu não sei ainda bem do
que se trata. Pois suspeitavam de Augusto?... Mas o quê?...

--Ó tia Dorothéa--atalhou Henrique--por quem é, não insista na pergunta.
Depois que se sabe que uma suspeita é falsa, não ha nada que mais
escalde os labios do que obrigal-a de novo a passar por elles.

--Tens razão, menino. E que precisão tenho eu de saber uma coisa que não
é verdadeira? Mas na verdade! Suspeitaram de Augusto! Ah! Henrique,
está-me a parecer que tambem tu tens esse peccado a pesar-te na
consciencia. Ora anda lá.

--Não, tia. Ha muito que lhe faço justiça. Ao principio não digo que
não. Mas durou pouco tempo e já estava arrependido. Augusto convenceu-me
pela maneira com que me falou, convenceu-me sem provas: e até se, em
expiação, me não puz em campo a auxilial-o a justificar-se, é porque
elle exigiu que me abstivesse d'isso, e depois, o meu desastre... quero
dizer--emendou, olhando para Christina--a felicidade que me procurou sob
a fórma de doença...

Christina pagou-lhe com um sorriso o galanteio.

O conselheiro, que ficára pensativo depois das primeiras reflexões que
lhe ouvimos fazer, disse, suspirando:

--Estou sentindo verdadeiros remorsos pelo mal que por certo causei
áquelle rapaz com as minhas suspeitas. Mas que havia eu de fazer? As
apparencias eram-lhe contrarias!... E depois, n'esta vida de politica,
apprende-se tanto e tão depressa a duvidar! É sorte minha! Homens, a
quem eu estimava devéras, fôram exactamente os que mais fiz padecer!
Senão, vejam: o herbanario, meu companheiro de infancia, e que sempre me
teve amizade, apesar das apparencias rudes de que a revestia,
dispuzeram-se as coisas de modo que o privei da casa em que nasceu e
talvez lhe apressasse com isso a morte... E elle, coitado, vingou-se
nobremente; mas vingou-se, porque nunca mais me sairá da ideia aquella
scena da igreja. Augusto, um rapaz que conheci pequeno, e já então de
viva intelligencia e de sentimentos nobres... pois tudo se conspirou
para o perder, e não só o privei do modesto logar que elle exercia, mas
até levantei contra elle uma accusação infamante, e quasi o expulsei de
minha casa... É triste que a vida politica me tenha obrigado a estas
crueldades! Preciso de compensar de alguma sorte o mal que fiz. De que
maneira lhes parece melhor?

--Eu se fôsse--disse D. Dorothéa--fazia como a morgada, e o rapaz, em
vez de vir a ser só padre havia de se formar em Coimbra, como o reitor
de Friande...

--Isso era se elle quizesse ser padre;--acudiu D. Victoria--mas
parece-me que não quer. Nada, nada, eu o que fazia era demittir aquelle
velhaco do Pertunhas, e dava a este o logar de mestre de latim, e
arranjava que ficasse tambem com o correio. Ora anda, já que o outro foi
tratante!...

O conselheiro sorriu ao expediente da cunhada, e não pôde deixar de
dizer:

--N'esse caso deixava só ao Pertunhas a regencia da philarmonica? E tu,
Lena, qual é a tua opinião?

Magdalena respondeu sem vacillar:

--A minha opinião é que o pae deve ir a casa de Augusto, pedir-lhe
humildemente perdão pela offensa que lhe fez.

--Mas involuntaria--ponderou o conselheiro, em tom de despeito, que não
pôde bem disfarçar.

--Mas offensa--repetiu Magdalena, sem que o sorriso dissipasse
totalmente a fôrça da expressão.

--É um pouco dura de cumprir a sentença, sobretudo esse adverbio
humildemente... Não lhe parece?--perguntou o conselheiro, voltando-se
para Henrique.

--Eu tinha vontade de dizer tambem a minha opinião--respondeu
Henrique;--mas receio certos melindres... Comtudo, parece-me que
encontraria uma recompensa, que poderia fazer esquecer a Augusto a
offensa e dores muito mais pungentes do que as que soffreu em virtude
d'esta desagradavel occorrencia.

--Qual é?--perguntou o conselheiro.

Henrique olhou para Magdalena, respondendo:

--Repito que tenho escrupulos em dizêl-o, porque talvez não seja eu o
mais competente para o fazer.

--Tem razão, primo--disse Magdalena.--Elle proprio o dirá. É mais
natural.

--Mas sábel-o tambem tu, Lena?

--Sei.

--Então dize-nol-o. Melhor para mim, se puder prevenir desejos.

Magdalena hesitou.

--Vamos, Henrique--disse Cristina, sorrindo--não esteja com tantos
escrupulos. Diga o que pensa.

--Pois quer? mas se sua prima me não perdôa?

--Eu o protegerei. Fale.

--Então, Christe?--tornou Magdalena.

--Bem; n'esse caso... Visto que m'o ordena quem pode.

--Fale, fale--disseram a um tempo o conselheiro, D. Victoria e D.
Dorothéa.

--Falarei. A recompensa a que Augusto aspira é a de fazer parte da
familia de... da nossa familia--respondeu Henrique, olhando para
Magdalena, que já não tentava retêl-o.

--De fazer parte da nossa familia?--repetiu o conselheiro.--Mas como?

--Como ha de ser? visto eu não estar resolvido a prescindir de
Christina, e Marianna ser ainda creança, facil é de conjecturar o unico
meio que ainda resta de realisar aquella pretensão.

O conselheiro comprehendeu a final, e fitando Magdalena poz-se a rir,
dizendo:

--Pobre rapaz! Pois metteu-se-lhe isso na cabeça?

--Mas que é a final? eu não entendo--dizia, embaraçada, D. Victoria.

--É uma coisa muito simples--respondeu Henrique.--Augusto sentiu o
effeito dos encantos da minha prima Magdalena, mas sentiu-os a ponto de
ligar a elles a sua felicidade, e de cair em adoração para com a
magnetisadora.

Esta explicação foi recebida com espanto por D. Victoria.

--Ora! está a brincar, primo Henrique? Não ouve aquillo, prima Dorothéa?

--Mas que é, que é?--perguntou esta.

-Diz que o Augusto aspirava...

--Perdão, eu disse que o Augusto adorava e não aspirava. Quem pode tomar
contas a um coração do culto que elle guarda religiosamente em si? A
prima Lena é adorada por aquelle rapaz, isso affirmo eu, porém...

--É possivel!--exclamou tambem D. Dorothéa, espantada.--Por essa não
esperava eu. Olhem para o que lhe havia de dar! Pobre Augusto!

O conselheiro ria ainda da noticia que recebera.

Magdalena córou ao ouvir todas aquellas exclamações de estranheza.
Cedendo ao impulso energico do seu caracter impetuoso e apaixonado,
disse com vivacidade:

--Não sei que haja no que diz o primo Henrique nada que mereça esses
espantos. Pois quem sou eu a final? Que distancia me separa da
humanidade, para que se tenha por um desacato uma affeição que inspire?
É verdade. Julgo que não se enganou o primo Henrique. Tambem eu descobri
esse affecto em Augusto. Nasceu-lhe no coração e não na cabeça, meu pae.
Ha muito que o sei, e nunca a descoberta me causou o espanto que vejo
nos outros. Digo mais, causou-me orgulho. Orgulho, sim, porque é natural
sentil-o por ter inspirado sentimentos d'aquella ordem a um caracter
generoso que, experimentado pelo infortunio, saiu sempre da prova mais
nobre e mais puro do que d'antes.

O conselheiro, que ouvira a filha com impaciencia, acudiu, em tom
profundamente irritado:

--Bem, bem, deixemo-nos de loucuras e de poesias, Lena. Vê lá se me
queres fazer acreditar que a vida da aldeia te estragou o natural bom
senso, até o ponto de tomares a sério phantasias e creancices.

--Não é phantasia nem creancice, é uma resolução de mulher--respondeu
Magdalena, com firmeza.

--Uma resolução de creança, que está na minha mão remediar--tornou o
conselheiro, como quem desejava cortar o incidente.

Porém para o génio de Magdalena já não era possivel recuar nem parar;
replicou:

--Talvez não. E deixe-me então dizer-lhe tudo, meu pae. Augusto nunca me
revelou esse segredo do seu coração. Adivinhei-lh'o eu. Longe de
procurar ser entendido, occultava-se e fugia; ainda hontem estava
resolvido a deixar a aldeia para sempre.

--Mas ficou--notou o conselheiro com ironia.

--Ficou--respondeu tranquillamente Magdalena--porque eu lhe pedi que
ficasse.

O conselheiro, ouvindo estas palavras, estremeceu de surpresa e fitou a
filha com olhar severo e interrogador.

A morgadinha proseguiu com uma serenidade, que occultava um esfôrço
interior:

--Ficou, porque eu lhe disse que o havia comprehendido e que acceitava a
affeição desinteressada e pura que elle guardava no coração; ficou,
porque eu, que só tarde soube do desespero que o obrigava a partir, e
que o sabia tão leal como pobre, tão innocente como perseguido pelo
infortunio, eu, que o vi quasi expulsar d'esta casa, sob o pêso de uma
accusação em cuja verdade nunca pude acreditar, julguei do meu dever ir
eu propria procural-o para lhe estender a mão e dizer-lhe: «fique, e
prometto-lhe que todos lhe farão justiça em breve.»

Quando Magdalena acabou de dizer estas palavras com firmeza e exaltação
crescentes, ninguem ousou falar na sala; e os olhos de todos
dirigiram-se quasi instinctivamente para o conselheiro.

Christina tremia; as outras senhoras pasmavam: Henrique e Angelo
sentiram-se profundamente inquietos.

Todos viram passar por differentes côres as faces do conselheiro, os
labios agitaram-se n'um tremor convulso, e com a voz evidentemente
alterada pela cólera, disse para a filha, passados alguns instantes:

--Pois, saiba, senhora, que para as leviandades de uma rapariga
estouvada, ha meios mais racionaes do que esses que parecem
naturalissimos á sua razão estragada pelos romances. Eu ainda não
prescindi da minha auctoridade paterna, e ella me servirá para corrigir
essas levezas, de que deveria envergonhar-se.

Esta scena de familia augmentava cada vez mais a difficuldade da posição
de todos os que estavam presentes. Ninguem ousava intervir, ou,
desejando-o, ninguem sabia a maneira de o fazer.

Entre as falsas situações, em que nos achamos ás vezes n'esta vida,
poucas se podem comparar no incómmodo que produzem, á de assistir a uma
questão domestica, por qualquer motivo que seja originada.

Quem se conservou d'aquella vez menos inactiva foi Christina, que
prendeu Lena nos braços, não sei se para instinctivamente a defender, se
para reprimir-lhe o impeto de reacção que receiava n'ella.

A morgadinha effectivamente repelliu-a com brandura de si e respondeu ao
pae:

--Ás vezes aos caracteres levianos estão confiadas tarefas generosas.
Cabe-lhes sanar muitas injustiças que por cálculo os mais reflectidos, e
por isso mais desconfiados, praticam sem piedade. Não me envergonho nem
arrependo do passo que dei. Não fiz mais do que salvar do desespêro uma
alma nobre e magnanima, que, se se perdesse, talvez um dia a sua
consciencia, senhor, o accusasse de não ser innocente n'essa perda. Quiz
evitar-lhe remorsos, meu pae. Se isto foi leviandade, que os annos m'a
não dissipem, como dizem que costumam fazer, porque prefiro ser leviana
assim, a ser cruel como...

O pae atalhou-a, e cada vez com mais vehemencia replicou:

--Pois siga, se quizer, a sua phantasia, senhora, mas terá de escolher
entre os seus caprichos e a minha approvação. Fique certa que, com o
consentimento meu, nunca um rapaz pobre, sem familia e sem posição,
especulará com o estouvamento de uma herdeira rica, que, tão esquecida
do que deve a si e aos seus, não hesitou em o procurar na propria casa,
sem reparar que estava sendo victima de uma comedia armada á sua credula
sensibilidade.

Antes do conselheiro concluir estas palavras estava alguem mais na sala.

Era Augusto.

Da sala proxima, onde chegára muito antes, ouvira elle o que o
conselheiro dizia em tom elevado, e o sentido das palavras que ouviu
venceu-lhe toda a hesitação e obrigou-o a entrar.

O conselheiro, reparando de subito n'elle, interrompeu-se e parou.

Augusto, respondeu-lhe então com dignidade e tristeza:

--Esse rapaz pobre, sem posição e sem familia, tem n'esse triplice
infortunio outros tantos titulos para ser respeitado dos felizes, como
v. ex.^a, e eu não prescindo d'esses direitos.

O conselheiro continuava silencioso, como hesitando no que devesse
responder a Augusto. A irritação dictava-lhe uma violenta resposta, mas
já lh'o não permittia a consciencia.

Augusto continuou:

--Sei que v. ex.^a está já convencido de que as suspeitas, que pesavam
sobre mim, eram injustas. N'esse periodico, que ainda tem na mão, veem
as provas da minha innocencia. Vi-o em casa do Seabra, d'onde venho
agora. Procurei-o, decidido a saber toda a verdade por qualquer preço
que fôsse; elle não m'a negou; contou-me tudo. Por isso, ao vir aqui,
sr. conselheiro, ao voltar a esta casa, onde era recebido como amigo,
antes que me expulsassem d'ella como infame, esperava encontrar a
receber-me a justiça e a amizade... Enganei-me; em vez d'ellas, foi o
insulto, mais pungente e menos justificado do que o primeiro, que eu
encontrei!

--Menos justificado?--repetiu o conselheiro, azedadamente.

--Menos justificado, sim, muito menos; porque v. ex.^a podia julgar-me
criminoso, pode julgar-se com direito de duvidar de mim, mas não tem o
de duvidar de sua filha; porque a sr.^a D. Magdalena pedindo a seu irmão
que a acompanhasse a casa de um pobre, que ella sabia ser victima de uma
immerecida accusação, e a quem o desalento e o desespêro faziam
succumbir, não se esqueceu do que devia a si e aos seus; pelo contrario,
aos seus devia aquelle acto de sublime generosidade, porque das mãos dos
seus viera o golpe que me ferira. Eu tinha sido expulso d'esta casa, sr.
conselheiro, como um miseravel e infame; os filhos de v. ex.^a, que
sempre fôram meus amigos, a quem v. ex.^a ensinára a sel-o, vieram á
minha dizer-me: «Não parta, deve á nossa confiança a justiça de ficar».

--É verdade--disse Angelo--eu acompanhei Magdalena. O pae diz-me muitas
vezes que não tenha pressa de principiar a duvidar; eu não podia
principiar por Augusto. Não duvidei.

O conselheiro respondeu a Augusto com reserva e mal disfarçado despeito,
ainda que em tom moderado:

--Sei que fui injusto comsigo, Augusto, e sinto-o do coração, creia.
Ainda que as apparencias o culpassem, arrependo-me de não ter tido mais
fôrça a minha confiança para não ceder. Peço-lhe por isso...
humildemente... perdão. Iria a sua casa pedir-lh'o se não viesse aqui.
Que mais quer? Acha-se com direitos a exigir mais? Será isso motivo para
antevêr realisadas loucuras de rapaz?...

Augusto não o deixou continuar.

--Ouça-me, sr. conselheiro--disse elle placidamente--deante de todas as
pessoas que me escutam, lealmente e sem hesitar, patentearei o meu
coração. É verdade que essas loucuras se apoderaram de mim, que desde
creança até hoje, tenho sido todo d'ellas; mas que importam aos outros,
se eu commigo as guardava? se nunca por ellas regulei os actos da minha
vida? Occorrencias imprevistas me arrancaram este segredo, que eu fiz
sempre por suffocar. Nem ambições me despertou, como meio de realisal-o,
porque nem eu realisal-o pensava. Resignar-me-hia a morrer com elle, sem
o revelar a ninguem; mas adivinhado por quem o fizera nascer, e,
deixe-se-me o orgulho de o dizer, adivinhado e correspondido, que muito
era que me tomasse a vertigem, e que eu por momentos me deixasse cegar
pelo fulgor de imprevistas esperanças? Perdôe-se-me a fraqueza. As
illusões duraram pouco; as palavras de v. ex.^a dissiparam-n'as... um
tanto cruelmente, mas em todo o caso acordei. Creia, sr. conselheiro,
que o ser pobre, sem familia e sem nome, impõe tambem uma certa ordem de
deveres, a que eu serei fiel. Não é o de humilhar-me, é o de manter a
unica dignidade que me resta, a dignidade moral. Já vê v. ex.^a que se
enganou de duas maneiras: nem da parte do rapaz pobre houve especulação,
nem da parte da herdeira rica estouvamento.

E, acabando de dizer estas palavras, Augusto inclinou-se respeitosamente
deante do conselheiro, e ia a sair, depois de lançar a Magdalena um
extremo olhar de despedida.

A morgadinha, porém, ergueu-se, e, apesar dos esforços de Christina para
a reter, veio collocar-se no caminho de Augusto, e estendendo-lhe a mão
disse:

--Não saia, Augusto. Em nome de meu pae lhe peço que não saia.

--Magdalena!--disse o conselheiro com severidade.

--Sim, em seu nome, senhor; porque quero livrar-lhe o futuro de
remorsos; sim, em seu nome, porque hei de fazer-lhe ouvir a voz do
coração, que tantas vezes desattende, arrependendo-se amargamente
depois.

--Magdalena!--repetiu o conselheiro com mais fôrça.

--Minha senhora! disse Augusto.

Porém a morgadinha obedecia agora inteiramente á vehemencia do caracter
apaixonado.

--Sinceramente revelei ha pouco os sentimentos do meu coração; todos me
ouviram; todos ouviram agora Augusto. Fale, senhor, com a mesma
franqueza e lealdade, com que nós o fazemos; poderá confessar a natureza
dos escrupulos que o obrigam a essa resistencia? Não se envergonharia
d'elles? E quer que lhe obedeça! mas obedecer-lhe seria offendel-o,
porque seria acreditar na constancia d'essa má paixão que o domina, e no
seu bom coração não pode ella durar muito tempo.

O conselheiro, no auge da irritação, ia talvez a responder
violentamente. Christina e Angelo tinham-se approximado de Magdalena; as
outras senhoras principiavam a ensaiar em surdina as primeiras
tentativas conciliadoras; Henrique meditava um plano de intervenção, que
elle suppunha já indispensavel, quando um incidente veio interromper
esta scena e modificar a feição critica do caso.

O incidente foi a chegada de um criado de farda, pertencente ao serviço
de um proprietario da villa proxima. Este criado era portador de uma
mensagem para o conselheiro.

O velho Torquato tinha adormecido na sala immediata; o lacaio
dispensou-se de o acordar, e guiou-se pelo som das vozes para chegar á
presença do conselheiro.

A chegada do lacaio acalmou a tempestade domestica, que principiava a
carregar-se.

O conselheiro, conhecendo-o, interrogou-o sobre o fim d'aquella visita.

O criado respondeu:

--Venho para entregar a v. ex.^a esta parte telegraphica, que chegou a
meu amo logo depois que tinham partido as malas do correio, de maneira
que não pôde mandal-a com ellas.

O conselheiro, agitado ainda, pegou no papel, que o mensageiro lhe deu,
e correu-o com a vista.

Immediatamente um raio de alegria lhe fuzilou nos olhos.

Acabando de ler, disse ao criado, que esperava resposta:

--Dize a teu amo que recebi, e que pode responder que sim.

O criado saiu.

N'este meio tempo as senhoras e Christina rodeavam Magdalena e
combinavam um projecto de harmonia domestica; Angelo e Henrique
desempenhavam-se junto de Augusto de quasi identica tarefa.

O conselheiro estendeu a Henrique a parte telegraphica, emquanto que uma
visivel satisfação se lhe desenhára no semblante.

--Leia e admire--disse elle.

Henrique leu, e não reteve uma exclamação de surpresa.

A parte dizia:

«Avise o conselheiro Manuel Bernardo para quanto antes se apresentar em
Lisboa. Estou encarregado de organisar ministerio e quero que elle
acceite uma das pastas.»

Assignava-a um dos mais notaveis vultos politicos do paiz.

Henrique, que sabia o valor de certas opportunidades, e a quem a
surpresa da noticia não fez esquecer a crise domestica a que assistira,
disse, logo que acabou de ler, e dirigindo-se a Magdalena:

--Prima Magdalena, compete-lhe ser a primeira a dar ao novo ministro os
emboras pela sua nomeação.

A palavra «ministro» produziu sensação na sala. D. Victoria exclamou:

--Ministro! Pois quem é que está ministro? O mano?... Ora, sim senhor!
acertou sua magestade!...

--Mas... valha-nos Deus! O ponto está que não façam por ahi alguma
revolução para o deitar abaixo--acudiu D. Dorothéa, em cujo animo os
factos das nossas dissenções civis tinham deixado sinistras ideias
ligadas á palavra ministro.

Magdalena, Angelo e Christina correram a abraçar o conselheiro; Henrique
reteve, porém, os dois ultimos dizendo:

--Primeiro Lena. Talvez tenha a pedir alguma mercê a s. ex.^a, e á
primeira não ha caracter de ministro que não ceda.

O conselheiro sorriu já.

Magdalena beijou-lhe a mão, e o pranto, provocado pela violencia das
scenas anteriores, e até alli a custo reprimido, rebentou agora
abundante, banhando as mãos do pae.

Henrique afastou-se a conversar com Augusto, para o não deixar sair da
sala.

O coração do conselheiro não era de pedra. Duas causas poderosissimas
conspiravam-se para abrandal-o. Como homem politico, havia a satisfação
da maxima ambição de todos, a noticia de ser chamado ao ministerio. Nos
momentos em que vemos satisfazer-se qualquer ardente desejo do nosso
coração, abrimo-nos ás sympathias para com os desejos dos outros; se de
nós depende realisal-os, cedemos de boa vontade. Como pae, havia as
lagrimas da filha a convencel-o, e a eloquencia d'este argumento das
lagrimas em olhos de mulher, é geralmente sabida: quanto mais se a
mulher é joven e bella! quanto mais se a mulher é filha!

Sem o menor vestigio da irritação anterior, o conselheiro ergueu
Magdalena, apertou-a ao seio e disse-lhe meigamente:

--Por que choras tu, Lena? Creança! Então promettes-me ser muito feliz,
se eu te deixar fazer as tuas loucuras?

Magdalena respondeu-lhe, abraçando-o affectuosamente, e beijando-o.

Ha argumento mais convincente do que este? Conhecem arma mais poderosa
contra as severidades de um pae?

O conselheiro beijou tambem paternalmente nas faces a filha, e
voltando-se depois para Augusto, disse-lhe, em tom de voz quasi
affectuoso:

--Augusto, vou confiar-lhe a minha felicidade, confiando-lhe a
felicidade da minha Lena. Vingue-se da injustiça e do mal que lhe fiz,
tornando-m'a venturosa. É a unica vingança á altura da sua alma.

Augusto não teve tempo para responder. Se uns restos de orgulho
tentassem luctar ainda com o amor, suffocal-os-hiam os esforços
combinados de Christina, de D. Victoria e de D. Dorothéa, que o
arrastaram quasi para junto do conselheiro.

E toda aquella familia, em que não havia n'aquelle momento um só coração
triste, confundiu-se por algum tempo no mais desordenado, pueril e
pathetico grupo, que pode desenhar um artista.

Para mais tocante confusão ainda, as creanças, que voltavam dos seus
brinquedos na quinta, entraram então na sala, e de boa vontade se
associaram áquella manifestação de alegria, sem querer saber o que a
motivára,

São assim as creanças. Alegres por instincto, saudam as scenas alegres
sempre que as vêem, sentem-as antes de as explicarem.

Fôram innumeraveis os beijos, os abraços, as palavras de affecto, os
sorrisos, as lagrimas, as exclamações pueris que se trocaram entre os
diversos actores d'esta scena de familia.

Chegado a este ponto da minha narração, nada melhor posso fazer do que
deixar á imaginação dos leitores concluil-a.

Haverá algum tão malfadado, que na sua vida não tenha visto representada
uma scena assim?

Esse mesmo, se existe, obriga-me a não proseguir.

O quadro que reproduzisse, exacerbar-lhe-hia o desconsolo da alma, de
que por certo é victima.

Paremos aqui, para que nos fique nos ouvidos este jovial rumor de
beijos, de risos e de vozes de alegria, porque, a prolongarmos mais a
narração, vêl-o-hiamos abafado pelos sons revolucionados e anarchicos da
philarmonica da terra, que não tardará a festejar a nomeação do
conselheiro, e sobretudo pelo estridor da tuba do mestre Pertunhas, tuba
verdadeiramente épica, e capaz de mudar a côr ao gesto, como a de que
fala o poeta.

Fechemos pois aqui a historia, dando apenas succinta conta dos
acontecimentos ulteriores.

 


CONCLUSÃO


O conselheiro partiu no dia seguinte para Lisboa, para tomar parte na
pilotagem da nau do Estado. Estive tentado a dizer, para satisfação de
animo dos meus leitores, que, sob a direcção dos talentos e aptidões do
novo estadista, se locupletou a fazenda publica, prosperou a agricultura
e a industria, refulgiram as artes e as lettras; e que Portugal, como a
Grecia, sob Pericles, causou o assombro das nações do mundo.

Mas receiei que, phantasiando no nosso paiz um governo fecundo e
prospero, a inverosimilhança do facto prejudicasse no espirito dos
leitores a dos outros episodios narrados, e, lhes entrasse com isto a
desconfiança no chronista. Resolvi pois ser franco, declarando que sob a
direcção do conselheiro e dos seus collegas, Portugal regeu-se, como se
tem regido sob as duzias de ministerios, que nós todos havemos já
conhecido.

O conselheiro, já ministro, voltou tempos depois á aldeia, para assistir
aos casamentos de Magdalena e de Christina, que se verificaram no mesmo
dia.

Christina e Henrique foram viver para Alvapenha, para condescender com
D. Dorothéa, que não podia resignar-se a viver só.

Sob a superintendencia do novo administrador, transformou-se
completamente a quinta, e é hoje uma das mais rendosas e bem geridas
propriedades d'aquelles sitios.

Henrique, o elegante do Chiado, o frequentador do Gremio e de S. Carlos,
está um rico e laborioso proprietario rural. Apaixonou-se pela
agricultura, e promette realisar o typo do antigo patriarcha.

Cumpriu-se a sua visão.

Das mil e uma molestias, com que saira de Lisboa, já nem memoria lhe
resta.

Christina, além de ser adorada pelo marido, vê-se rodeada pelo amor e
carinhos de D. Dorothéa e de Maria de Jesus, as quaes, sem o menor
despeito, a viram tomar o sceptro da realeza domestica, que usa com
adoravel brandura, desenvolvendo de dia para dia os seus talentos de
mulher.

No Mosteiro não correm peor as coisas, sob os cuidados de Augusto e de
Magdalena, que ahi ficaram, por exigencias de D. Victoria. Augusto, além
de se occupar de agricultura, alimenta a imaginação, já não a fazer
versos, mas em outra fórma de poesia: a organisar a escola sob bases
mais racionaes, e dotação mais fecunda; a generalisar e educar os
processos agricolas; a implantar industrias novas.

É assim que a sericultura, graças aos seus cuidados, é hoje alli
cultivada com bons resultados, e outras já principiam a ensaiar-se.

Magdalena é sempre a mulher que foi; se é que as nobres qualidades já
reveladas nos seus actos de juventude, não se vão caracterisando inda
melhor, á medida que de mais graves deveres se incumbe a sua missão de
mulher. Intelligencia temperada por um bom senso natural, que a educação
esmerada não estragou, como a tantas acontece, caracter apaixonado, mas
de trato affavel e insinuante, meiga sem indolencia, grave sem
severidade, acompanha-a o encanto que a todos prende, que não faz sentir
a ninguem o peso da obediencia.

É hoje quem tudo dirige no Mosteiro; querida pelos primos, querida por
D. Victoria, adorada pelo marido e abençoada pelo povo, que soccorre com
esmolas e conselhos, pode bem dizer-se que reina n'aquelles sitios.

D. Victoria resignou na sobrinha todos os encargos domesticos, salvo o
direito de ralhar com os criados, que ella sustenta serem os peores do
mundo; prompta sempre a intervir a favor de qualquer d'elles, quando
despedidos.

Em relação ás personagens secundarias d'esta historia pouco teremos a
dizer.

O brazileiro fez as pazes com o conselheiro, porque este, logo que
entrou para o ministerio, mandou lavrar o decreto em que se nomeava
visconde de não sei quê o seu antigo inimigo. Foi este o primeiro acto
politico do gabinete, que o paiz ingrato teve a sem-razão de não
applaudir.

O brazileiro, em paga, entrou com Augusto em competencia de
melhoramentos locaes, com grande proveito da aldeia.

O sr. Joãozinho, em vista d'esta fusão de partidos, achou-se encorporado
na liga, e em pouco tempo teve occasião de demonstrar de novo a sua
influencia eleitoral, trazendo compacta á urna a freguezia de Pinchões,
para reeleger o conselheiro que, pela sua nomeação, perdera o logar de
deputado. D'esta vez ninguem lh'o disputou, e era edificante vêr o
brazileiro ao lado do Tapadas, esquecidos antigos odios, votando de
commum accordo e de boa harmonia.

A reconciliação entre dois adversarios commove sempre a alma.

O sr. Joãozinho não mudou de habitos, e cada vez tem mais dividas, mais
cães e mais bebedeiras.

O Pertunhas foi perdoado, e continua imperturbavel nas suas funcções de
ensino e na commissão do correio, odiando os irmãos Virgilios e
desafogando as suas mágoas na embocadura da trompa.

O homem queixa-se de ter sido victima de uma vingança. Confessa que por
brincadeira tirára uma carta da pasta de Augusto, mas que a tornára a
collocar no seu logar e por isso...

A familia Zé P'reira vae em rapida decadencia; o homem já nem tem fôrça
para fazer resoar o zabumba. É esta uma das que mais deve á caridade de
Magdalena.

O conselheiro, ainda hoje no gôso imperturbado dos votos unanimes
d'aquelle circulo eleitoral, vem de quando em quando retemperar o animo
exhausto nas fadigas parlamentares e nas diversões da capital, no seio
da sua feliz familia, e volta melhor.

Angelo, logo que principiam as ferias dos seus estudos superiores, corre
com alvoroço de creança a gosar na aldeia os dias que elle já presente
terem de ser os mais felizes de toda a sua vida.

A quinta dos Cannaviaes, á qual andam ligadas suaves recordações dos
dois venturosos pares, que os incidentes d'esta historia reuniram, foi
transformada por Magdalena n'uma habitação de recreio, onde as duas
familias celebram, durante o anno, algumas festas em commum.

Estes melhoramentos vieram confirmar o titulo de que Magdalena havia
muito estava de posse.

E hoje é ella ainda entre a gente do povo conhecida pelo nome de
«Morgadinha dos Cannaviaes».


FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME

 


Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


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  |          |      Original       |      Correcção       |
  +----------+---------------------+----------------------+
  | Volume I |                     |                      |
  |#pág.  144| precipios           | precipicios          |
  |#pág.  162| se se sentem        | se sentem            |
  |#pág.  169| a seu seu vêr       | a seu vêr            |
  |#pág.  264| uma uma explicação  | uma explicação       |
  |          |                     |                      |
  | Volume II|                     |                      |
  |#pág.   27| glo['r]ia           | gloria               |
  |#pág.   68| examimal-a          | examinal-a           |
  |#pág.   95| encontrassse        | encontrasse          |
  |#pág.  148| coisapor            | coisa por            |
  |#pág.  200| ovialmente          | jovialmente          |
  |#pág.  215| fregrezia           | freguezia            |
  |#pág.  218| principalte         | principalmente       |
  |#pág.  248| saparámo-nos        | separámo-nos         |
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