Livro Morgadinha Canaviais1

                                                                      

 

 

 

 


A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

 


I


Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e genuino dezembro,
chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera,
subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa
vereda, que pretenciosamente gosava das honras de estrada, á falta de
competidora, em que melhor coubessem.

Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracissima provincia
começa já a resentir-se, senão ainda nos valles e planuras, nos visos
dos outeiros pelo menos, da vizinhança de sua irmã, a alpestre e severa
Traz-os-Montes.

O sitio, n'aquelle ponto, tinha o aspecto solitario, melancolico, e,
n'essa tarde, quasi sinistro. D'alli a qualquer povoação importante, e
com nome em carta corographica, estendiam-se milhas de pouco
transitaveis caminhos. Vestigios de existencia humana raro se
encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do
rachador, mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do
que a absoluta solidão.

Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes, que
dissemos.

Um, o mais moço e pela apparencia o de mais grada posição social, era
transportado n'um pouco esculptural, mas possante muar, de inquietas
orelhas, musculos de marmore e articulações fieis; o outro seguia a pé,
ao lado d'elle, competindo, nas grandes passadas que devoravam o
caminho, com a quadrupedante alimaria, cujos brios, além d'isso,
excitava por estimulos menos brandos do que os da simples e nobre
emulação.

Contra o que seria plausivel esperar d'este desigual processo de
transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e
fadigas da jornada não se pode dizer que fôsse o cavalleiro.

A postura de abatimento que lhe tomára o corpo, o olhar melancolico,
fito nas orelhas do macho, a indifferença, a taciturnidade ou o
manifesto mau humor, que nem as bellezas e accidentes da paizagem
natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silencio que apenas de
quando em quando interrompia com uma phrase curta mas energica, com uma
pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza
de gestos e desempenado jôgo de membros do pedestre, com a sua
torrencial verbosidade, a que não oppunha diques, e com as joviaes
cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por meio das quaes
se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbatico
companheiro.

Explica-se bem esta differença, dizendo que o cavalleiro era um elegante
rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o outro um
almocreve de profissão.

O leitor provavelmente ha de ter jornadeado alguma vez; sabe portanto
que o grato e quasi voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planisa
qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação que d'ella
guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores
delicias, do que as impressões experimentadas no proprio momento de nos
vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e
mórmente nas classicas estalagens das nossas provincias. As pequenas
impertinencias, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou
que a saudade consegue até dourar e poetisar a seu modo; esses
microscopicos martyrios, que de longe não avultam, actuam-nos, na
occasião, a ponto de nos inhabilitar para o gôso do que é realmente
bello. A dureza do colchão, em que se dorme, do albardão ou selim sobre
que se monta, o tempêro ou destempêro do heteróclito cozinhado com que
se enche o estomago, a lama que nos encrusta até os cabellos, o pó que
se nos insinua até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o
sol que nos congestiona o cerebro, tudo então nos desafina o espirito,
que traziamos na tensão necessaria para vibrar perante as maravilhas da
natureza ou da arte.

Só pelo preço de muitas jornadas se compra o habito de ficar impassivel
no meio dos episodios d'estas pequenas odyssêas, que atormentam e
exhaurem o animo dos Ulysses novatos; mas ai, quando se adquire esse
habito, tambem nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as
commoções do bello.

Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos enthusiasmo; analysa-se
mais e melhor; porém a propria analyse é a prova de que se sente menos.
Onde domina o sentimento e a imaginação, mal teem cabida a paciencia e
phleúgma, necessarias aos processos analyticos. O homem positivo e frio
recolhe de qualquer excursão á patria com a carteira cheia de
apontamentos; o enthusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos,
sentiu mais.

Mas Henrique de Souzellas--que era este o nome do cavalleiro--fôra
educado e passado da infancia á plena juventude, em Lisboa,
levantando-se por avançada manhã, frequentando o theatro, o Gremio, as
camaras, parolando no Chiado ou no Rocio, e indo alguns dias no anno a
Cintra, ou qualquer praia de banhos, desenfadar-se da monotonia da
capital.

Desde que fazia perfeito e consciente uso da razão, fôra esta jornada,
em que o encontramos, a primeira levada a effeito, e logo sob tão maus
auspicios, que era para suffocar-lhe á nascença os instinctos de
_touriste_, se porventura quizessem despertar n'elle.

Havia dois dias que cavalgava aquelle rocinante, unico vehiculo
accommodado aos caminhos por que passára. E então que dois dias!
D'aquelles, durante os quaes o céo, uniformemente pardo, parece
desfazer-se em agua, e a chuva cae sem interrupção e com uma teimosia e
constancia impacientadoras; d'aquelles em que a terra saciada rejeita já
a agua que recebe, a qual escorre nos declives, transborda dos algares,
e encharca-se nos terrenos baixos, transformando em brejos as lezirias;
em que as lufadas do sul vergam e torcem os ramos, melancolicamente
despidos, dos álamos e sobreiros, e emprestam aos pinheiraes a voz dos
mares; em que os campos se mostram desertos, a noite se anticipa, e tão
densas nuvens cobrem o firmamento, que parece tomar-nos a persuasão de
que nunca mais o veremos com as suas formosas vestes de azul.

Vejam se, n'estas circumstancias, o pobre rapaz podia deixar de ir
cabisbaixo, triste e dando ao diabo a viagem que commettera.

E para quê e por quê a commettera elle assim?

Em poucas palavras procuraremos satisfazer a natural interrogação, que é
de suppôr nos dirigissem os leitores, se podessem fazel-o.

Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos,
vivendo, como dissémos, aquella enlanguescedora vida da capital, e
dividindo as attenções do espirito pela politica, pela litteratura e
pelos destinos do theatro de S. Carlos, do qual estava habilitado a
fazer circumstanciada chronica, que abrangesse os ultimos dez annos.

Não concebia vida fóra d'aquillo.

O mundo para elle era Lisboa. Não sentia desejos, nem imaginava
possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a provincia; o que seria
maior façanha.

Não que lhe faltassem recursos para realisar qualquer projecto d'esta
natureza.

Henrique herdára dos paes rendimentos bastantes, dos quaes vivia
folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia.

Mas a indolencia lisbonense manietava-o alli. A poucos ia tão direita a
apostrophe de Garrett aos seus «queridos alfacinhas», a qual se pode ler
no livro setimo das _Viagens_.

De certo tempo em deante começou, porém, a incommodal-o uma especie de
vácuo interior, um mal-estar, doença infallivel nos celibatarios sem
familia, quando chegam á idade a que chegou Henrique, e passam a vida
como elle.

Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas camaras,
bocejava no Gremio, bocejava no Suisso, no Chiado e nos circulos dos
seus amigos, os quaes principiaram tambem a achal-o insupportavel de
insipidez; porque poucas coisas ha que mais perturbem o espirito, do que
o espectaculo d'um homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros
forcejam por divertir-se.

O demonio da hypocondria, esse demonio negro e lugubre, implacavel
verdugo dos ociosos e egoistas, o qual havia muito o espiava,
apoderou-se d'elle em corpo e alma.

Ahi temos, desde esse instante, Henrique muito preoccupado com a sua
pessoa, imaginando-se victima de mil e uma molestias, as mais
disparatadas e incompativeis, suspeitando-se conjunctamente predestinado
para a apoplexia e para a phtisica, para o cancro e para a alienação,
para a cegueira e para as aneurismas, tremendo á leitura do obituario da
semana, folheando livros de medicina, construindo theorias
physiologicas, consultando todos os medicos da capital, experimentando
todo o arsenal pharmaceutico e todos os annuncios, em parangona, da
quarta pagina dos periodicos, e elevando as crenças do seu espirito
amedrontado até ás mysteriosas e nevoentas alturas do credo
homoepathico! Ao mesmo tempo manifestou-se n'elle uma progressiva
degeneração de gôsto; não podia ler uma pagina dos livros que lhe eram
predilectos; desfazia-se sem desgôsto de quadros, móveis, estatuas e
objectos curiosos que colleccionára com paixão; detestava a musica, o
theatro, n'uma palavra, tornára-se um dos maiores flagellos, que podem
pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o supplicio dos
medicos que os aturam.

Foram estes os que, em parte de boa fé, em parte com o desculpavel
intuito de sacudirem de si tal pesadelo, lhe deram um dia de conselho,
que fôsse viajar.

Henrique de Souzellas julgou ouvir uma heresia n'esta palavra: viajar.

Viajar? E as suas aneurismas? E as suas imminencias apopleticas? E as
suas disposições para tantas outras enfermidades? Pois um homem pode lá
viajar com esta bagagem pathologica?

E se lhe désse alguma coisa pelo caminho? Recusou com mau humor a
receita, e ficou na capital.

Exacerbaram-se os padecimentos, repetiram-se as consultas, e os medicos,
como se para isso apostados, a insistirem em que saisse de Lisboa.

--O senhor não tem nada--diziam alguns.

Henrique perdia a cabeça, ao ouvir isto.

Prolongou-se este estado de coisas, até que um dia o hypocondriaco rapaz
persuadiu-se muito sériamente de que estava chegada a sua hora extrema.

Um medico velho e grave, que por essa occasião o escutou, em vez de se
rir d'elle, disse-lhe, muito sisudo:

--Homem! O senhor está realmente mal. Esse estado de imaginação não pode
prolongar-se mais tempo, sem romper por ahi em alguma doença que o
sacrifique. Se quizer salvar-se, saia-me d'aqui, emquanto é tempo.
Quebre por todos os habitos, e escolha entre as fortes impressões de uma
grande capital, como Paris ou Londres, ou as mornas sensações de um
completo viver de aldeia. Os revulsivos e os emollientes curam por meios
oppostos ás vezes as mesmas molestias.

Ora succedeu que n'esse mesmo dia recebesse Henrique um presente de
fructa de uma sua tia, santa creatura que elle, desde creança, não
tornára a vêr.

Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho onde na idade de cinco
annos Henrique passára alguns mezes na companhia de sua mãe.

Aquelle presente frugal recordára-lhe esse tempo, já meio apagado na
memoria, e conseguira fazer-lhe saudades. D'ahi uns vagos desejos de
voltar a vêr aquelles sitios.

Por isso ao ouvir o conselho do doutor, Henrique nomeou-lhe a aldeia, em
que esta sua parenta vivia.

O velho facultativo applaudiu a ideia e instou para que fôsse abraçada.

O sobrinho escreveu então á tia, e, passados dias, punha-se a caminho.

Mil vezes se arrependeu, depois da resolução tomada; mil vezes mandou ao
diabo o conselho do medico e phantasiou horriveis exacerbações em todos
os seus males. Os inconvenientes de uma jornada, feita ainda segundo os
velhos processos, com malas, coldres e pistolas, botas de montar e
almocreve, ampliava-lh'os a proporções estupendas, o prisma da
hypocondria.

No momento em que nos associámos ao cavalleiro, caira elle n'um
desalento profundo, n'um quasi convencimento de proxima anniquilação, do
qual nem a loquacidade do almocreve, condimentada, como era, de pragas
eloquentes e de cantigas pouco edificantes, o conseguia arrancar.

Havia mais de uma hora que estavam luctando com as difficuldades da
ascensão do ingreme e escabroso caminho, que torneava o monte como as
voltas de uma helice.

Era este monte uma como irregular pyramide, levantada no meio da
amplissima bacia, onde tinha assento a aldeia que Henrique demandava;
por isso o estafado rapaz não podia atinar a razão de conveniencia pela
qual, tendo de procurar o valle, assim porfiavam em descrever as
fastidiosas curvas da quasi interminavel espiral, que os approximava do
vertice.

Não se concebe uma estrada menos logica do que aquella.

No nosso paiz são porém frequentes estas faltas de logica nas estradas.

O almocreve havia-se separado por momentos de Henrique com o fim de
encurtar distancias, seguindo por um atalho só franqueavel a gente de
pé.

Henrique nem desviára os olhos para o fundo valle, que se abria á
esquerda, velado pela densa nevoa d'aquella atmosphera saturada de
humidade, nem prestava attenção á agreste e selvatica paizagem, do lado
direito, toda encrespada de pinheiraes nascentes e de espinhosas
tojeiras.

Os olhos procuravam, em anciosa interrogação, o mais alto da flexuosa
ladeira que subia, no sitio em que ella, formando um cotovello, furtava
á vista o seguimento ulterior.

N'estas curvas das estradas sorri sempre de longe ao viajante, cançado e
aborrecido, que pela primeira vez as trilha, uma promettedora esperança.

--D'alli verei talvez o termo do caminho--pensa elle.

Mas quantas vezes, ao approximar-se, esta esperança lhe foge!

Assim aconteceu a Henrique, que, ao chegar á almejada inflexão e quando
esperava principiar emfim a descer para o valle e approximar-se da
aldeia, viu que o macho, pratico no caminho, e á disposição de cujo
instincto elle collocára a razão, dobrava ainda para a direita e
continuava a contornar e a subir o monte. A espiral não terminára ainda.
Henrique olhou em torno de si, profundou a vista nas sombras do valle,
nada pôde descobrir, que lhe promettesse a aldeia procurada. Muita
arvore, povoação nenhuma!

Teve um paroxismo de impaciencia!

--Isto não é estrada!--exclamou elle, exasperado.--São os nove circulos
do Inferno de Dante virados para fóra.

E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva a augmentar, a calar
através do grosso gabão de jornada que Henrique vestia! O desgraçado
vergava sob o pêso da sua consternação.

Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve, assobiando com fleugma
desesperadora.

--Com um milhão de demonios!--bradou-lhe Henrique, não podendo
conter-se.--Essa maldicta terra foge deante de nós, homem!

--Estamos quasi lá, meu patrão. É alli logo adeante--respondeu o
almocreve, sem se alterar. Vê aquella capellinha branca em cima
d'aquelle monte? pois fica já para além da povoação. É a ermida da
Senhora da Saude. É um instante.

--Desde as duas horas da tarde que me dizes que é um instante, e eu
estou acreditando que cada vez nos afastamos mais. Pois se a aldeia fica
alli em baixo, para que diabo subimos nós? Ás voltas que temos dado,
estou persuadido de que vamos tão adeantados como quando principiámos a
subir.

--Pois olha que dúvida! Se se fôsse a direito lá por baixo, era mais
perto, mas...

--Mas foi então pelo prazer de trepar, que me trouxeste por aqui?

--Não é isso, patrão; mas bem vê v. s.^a que o caminho lá por baixo é
todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar taes voltas, que a
final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia
de como estão os riachos por lá! Só o esteiro do almargeal é para uma
pessoa se afogar. Mas tenha o patrão paciencia, que pouco falta agora.
Vê v. s.^a aquelle tronco de sobreiro que parece, visto d'aqui, um frade
de capuz?

--É alli?

--Não, senhor--disse o homem, rindo;--mas vêem-se d'aquelle sitio as
primeiras casas da aldeia.

--As primeiras!--murmurou Henrique em tom lastimoso; e penderam-lhe os
braços com mais desalento e augmentou-se-lhe a flexão da columna
vertebral.

O almocreve proseguiu, para o distrair:

--Tenho passado por estes sitios muita vez com neve de se cortar á faca
e de noite. E olhe que nunca tive mêdo. Qual historia! Mêdo? Isso sim! E
vamos lá! o sitio não é dos mais seguros. Vê o senhor essa cruz preta,
ahi á sua mão direita, pregada no tronco d'esse pinheiro? Pois ahi mesmo
mataram um homem, que vinha com uns centos de mil réis da feira franca
de Vizeu, fez pelo S. Miguel um anno. E ainda hoje se está para saber
quem foi. N'um ermo d'estes só os santos podem valer a uma creatura.

Henrique sentiu-se pouco á vontade com as elucidações do cicerone; olhou
para elle com desconfiança e quasi julgou vêr moverem-se sombras
suspeitas por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou nos coldres os
cabos das pistolas, e approximou as esporas dos ilhaes da cavalgadura.

Dentro em pouco attingiam o indicado tronco de sobreiro, de junto do
qual deviam avistar a aldeia.

Henrique olhou; viu lá no fundo do valle muitas arvores, mas continuou a
não enxergar vestigios de casas.

--Onde está a aldeia que dizias, homem?

--D'ahi já se vê--disse o almocreve, correndo para alcançar o
cavalleiro.--Não vê v. s.^a, além, além, aquelles pinheiraes mansos?

--Vejo, sim.

--Pois já são da freguezia. Se fôsse mais claro havia de avistar a casa
do guarda. É a tapada dos Bajuncos, que pertence á morgadinha dos
Cannaviaes.

Henrique não respondeu. A distancia a que ficava ainda a tal tapada
fel-o suspirar.

Emfim, passados minutos, principiaram a descer para o valle, costeando
sempre obliquamente o monte.

Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar um pequeno ponto branco,
que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo, mas já
indistinctamente, em virtude do adeantado da hora e da intensidade da
neblina.

--Lá está a capella da freguezia--dizia o homem.

--Alli? É um seculo para lá chegar!

--Qual! Estamos aqui, estamos lá. Eh, russo!

E applicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho, que accelerou o
passo.

O homem continuou:

--Até se fôsse mais dia podia-se vêr d'aqui a pedra, que está no
cemiterio novo, e que é da familia da morgadinha dos Cannaviaes. Foi a
mãe d'ella a primeira pessoa que lá se enterrou, e até hoje mais
ninguem. O povo, como o outro que diz, tem sua aquella em se enterrar
fóra da egreja. Elle, a falar a verdade... Eu bem sei que tudo vae do
costume... mas emfim a gente foi creada n'isto... Mas a pedra é coisa
asseada. É como as que estão na cidade.

Henrique, transido de frio, quebrado de desalento, já nem attendia ao
que o homem ia dizendo.

Cerrára-se a noite de todo, quando attingiram emfim o valle. O terreno
mudava agora de aspecto. Appareciam já, aqui e alli, alguns indicios de
cultura, annunciando a proximidade de um povoado. Os caminhos
estreitavam, internando-se no valle, e seguiam tortuosamente por entre
muros tôscos de pedra ensossa, silvados e sebes naturaes. A chuva, que
não cessára de cair, transformára estes caminhos, onde o declive não
dava escoamento ás aguas, em charcos e tremedaes.

Novos indicios da vizinhança da aldeia iam successivamente apparecendo.

Aqui era uma manada de bois soltos, em direcção do curral, guiados por
uma creança de palhoça e pernas nuas, os quaes paravam a olhar com
aquella expressão de composta curiosidade, que lhes é peculiar, para o
recem-chegado visitante da aldeia. Não faltou receio a Henrique, que
suppôz a estes bonacheirões quadrupedes a indole travêssa e bravia dos
touros, a cuja chegada tantas vezes fôra assistir em Lisboa.

Mais adeante passava por elles uma fileira de carros a vergarem sob o
pêso do matto e atroando os ares com o chiar incómmodo das rodas sob o
eixo, incómmodo para os ouvidos cidadãos de Henrique, cujos nervos se
irritavam com elle, mas apparentemente agradabilissimo para os
conductores aldeãos, que ou dormiam ou cantavam com aquelle
acompanhamento.

N'um e n'outro ponto deparavam-se-lhe já algumas casas de tectos de
colmo, de cujas innumeras fendas saía um fumo espêsso, que a atmosphera
humida mal deixava elevar nos ares. No olfacto deshabituado de Henrique
de Souzellas o cheiro resinoso e activo das pinhas e das agulhas sêccas
dos pinheiros, queimadas no lar, produziam sensações muito longe de
serem agradaveis.

Augmentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia que já lhe tomára o
animo.

--Tantas fadigas para este resultado!--pensava elle.--Sair de Lisboa
para me enterrar n'esta aldeia escura e suja! Enganou-se o parvo do
doutor. Cuidava que me salvava e matou-me. Eu morro por certo aqui. Deus
lhe perdôe o homicidio.

Os caminhos succediam-se aos caminhos, qual mais tortuoso e incómmodo de
trilhar; as curvas complicavam-se como as ruas de um labyrintho. Aqui
subiam; desciam mais além, para subir outra vez. Umas vezes caminhavam
em terreno descoberto, outras penetravam em tão estreitas quelhas,
apertadas entre paredes argilosas e humidas e toldadas de ramos
entrelaçados, que só o instincto do animal podia evitar-lhes os perigos.
Ora soavam as patas do macho como em chão lageado, ora amortecia-lhes o
som um terreno, que a chuva encharcava, e a agua lamacenta vinha
salpicar o rosto do cavalleiro.

As casas eram já frequentes, e algumas de menos humilde apparencia.

Os cães, que, pelo timbre de voz, mostravam ser gigantes, ladravam
raivosos por dentro dos portões ou de sobre os muros das quintas, ao
ouvirem os passos da cavalgadura ou a voz do almocreve, que falava ou
cantava sempre.

Outras vezes era um inharmonico grunhir suino que accusava a vizinhança
das córtes ou, partindo de um casebre rustico, o chorar de creanças,
entremeado com os ralhos das mães e com as pragas dos chefes de familia.

O almocreve não desistira das suas funcções de cicerone, que sómente
interrompia para saudar alguns conhecidos seus, a cuja porta passavam.

--Estes campos e lameiros--ia dizendo--são da morgadinha dos Cannaviaes;
andam arrendados a um compadre meu.

E exclamava para dentro de uma casa terrea, escassamente allumiada por
uma candeia:

--Boas noites, tia Escolastica. Como vae a pequenada?

--Ai, é vossemecê, sr. José? Então não entra?--respondia-lhe uma voz
feminina.

--Agora, não, ámanhã.

E proseguiu para Henrique:

--É uma santa creatura. A morgadinha...

Henrique interrompeu-o:

--Onde fica a final, a quinta de Alvapenha? onde mora minha tia? Não me
dirás?

--É logo ahi adeante, meu patrão. Em nós passando umas casas amarellas
que ha ahi... é logo ao pé. Essas casas que digo são tambem da
morgadinha, mas ha uma demanda pelos modos.

O almocreve falava pela decima ou undecima vez na morgadinha. Até esta
periodica referencia a uma personagem que elle não conhecia,
impacientava Henrique de Souzellas.

E continuavam a succeder-se em enredado dedalo as quelhas e azinhagas, a
ponto de fazer perder toda a orientação. Umas vezes ouviam o ruido das
levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado; adeante, transpunham
uma ponte rustica, escutando das profundezas do despenhadeiro, que ella
atravessava, o fragor das cascatas nos açudes ou o ranger das rodas dos
moinhos.

Henrique a cada momento imaginava cair n'um abysmo.

--São os açudes do Casal--dizia o almocreve berrando para se fazer ouvir
através do estrondo da torrente.--Pertencem á morgadinha dos Cannaviaes.

Henrique nem alento já tinha para falar.

Ao triste e quasi sinistro aspecto d'aquella aldeia tão cerrada lhe
envolveu o coração a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistencia ao
crescente torpor que o invadia, como o que desespera da vida e da
salvação.

Mais adeante, excitou-lhe ainda as attenções uma toada plangente,
melancolica, monotona, que exacerbou estes effeitos.

--É uma fiada em casa do Tapadas--disse o almocreve.--É um dos maiores
amigos do pae da morgadinha. Vê aquelle muro acolá?

--Eu não vejo nada. Deixa-me!

--Pois pertence já á quinta dos Cannaviaes, que a morgadinha...

--Outra vez! Cala-te para ahi com essa morgadinha--exclamou Henrique.

Era evidente emfim que estavam em pleno coração do povoado. As casas
appareciam mais juntas. De algumas saía um surdo rumor de vozes que
tinha o que quer que era de lugubre. Era a corôa rezada em familia a
Nossa Senhora. A voz grave do lavrador casava-se com a voz quebrada e
trémula do avô, com a voz sonora e fresca da mãe, e a juvenil das
raparigas e creanças n'aquelle piedoso côro, produzindo um effeito que
acabou por levar ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante.

--Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha, que não a acabamos de
attingir?

O almocreve d'esta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada sibilante
junto ás orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira
orlada de arvores, volveu á direita e, á voz do almocreve, estacou em
frente de um portão de quinta resguardado por um telheiro rustico.

--É aqui--disse o guia.

--Até que emfim!--exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de conforto e
de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem cançado da vida, quando
antevê o repouso do tumulo. Em Henrique era intima a convicção de que a
quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemiterio.

 


II


O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no solido portão de
castanho, deante do qual tinham parado.

As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois cães, que
acudiram de longe ao signal e vieram ladrar á porta com furia, que fez
agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção que o esperava. De
facto as intenções dos quadrupedes não pareciam demasiado hospitaleiras.
O almocreve divertia-se excitando-os de fóra com uma vara de vime,
apesar de quantas recommendações de prudencia lhe fazia Henrique, não em
demasia socegado.

A final ouviu-se uma voz aspera e rouca, chamando os cães á ordem, se é
licito, sem irreverencia, empregar n'este caso a phrase consagrada para
outro genero de algazarra.

Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba,
gemerem os gonzos, e emfim um homem de lavoura alto e magro, trazendo em
punho um lampeão de frouxissima luz, appareceu-lhes á porta e saudou-os
com a fórmula do estylo:

--Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.

E, levantando a luz á altura do rosto de Henrique, poz-se a miral-o com
a menos ceremoniosa curiosidade.

--É o sobrinho cá da senhora, não é verdade?

--Sou eu mesmo.

--Está um tempo muito azêdo. Eu já julgava que não vinham. Entre.

Henrique não se resolvia a acceitar o convite, porque lhe continuavam a
impôr respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois
façanhosos quadrupedes, cuja má vontade era a custo refreada.

--Entre, entre--insistia o homem.

--Mas esses animalejos?...

--Ah! isto não faz mal. Sae-te p'ra lá, Lobo: passa, Tyranno!

Lobo! Tyranno! Que nomes! E dizia o homem que não faziam mal!

--C'os diabos! ti'Manuel--disse o almocreve--em occasião de se esperarem
hospedes, não se soltam assim os cães. Os diabos não são nenhuns
cordeiros. Olhe no outro dia o sr. Joãosinho das Perdizes, que por pouco
lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas.

--Forte perca!--resmoneou o outro.--Não trouxesse cá os d'elle. Não tem
dúvida; entre o senhor, que elles não lhe fazem mal.

--Não entro; assim é que não entro--teimou Henrique, a quem as palavras
do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução.

O homem em vista d'isto encolheu os hombros e bradou:

--Ó Luiz!

Uma creança de cinco annos, e quasi nua, correu ao chamamento.

--Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor tem mêdo.

A creança, á palavra mêdo, fitou Henrique com uns olhos espantados, e
tomando do chão um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas
feras, que, com todos os signaes de respeito, de orelha baixa e cauda
abatida, fugiram deante d'ella.

O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um tanto maltratado com o
desfecho da scena; mas a prudencia consolava-o, dizendo-lhe que andára
ajuizadamente.

--Agora vossemecê--disse o camponez para o almocreve--arranje-se como
puder e mais a bêsta ahi pelas lojas, emquanto eu ensino o caminho ao
senhor.

--Vão, vão com Nossa Senhora, que eu cá me arranjarei. Muito boas
noites, sr. Henriquinho.

--Adeus, José--disse Henrique, passando para a mão do guia a esportula
da gorgeta, e após seguiu, com as pernas trôpegas de cavalgar, o homem
do lampeão.

Não era para dissipar a impressão penosa, que subjugava o espirito de
Henrique, o aspecto que lhe offerecia, áquella hora da noite, a parte da
quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha.

Primeiro, trilhou o pavimento molle de um quinteiro ou eido, estradado
de altas camadas de matto e embebido de chuva, d'onde se exhalava um
cheiro de cortumes, pouco de lisonjear o olfacto mal habituado a estes
aromas campezinos. A luz do lampeão a custo conseguiu evitar a Henrique
o tropeçar n'um carro desapparelhado, n'uma dorna, n'uma pia para
gallinhas, e em outros objectos que atrancavam o quinteiro. Transpondo a
cancella que terminava este, seguiram por uma rua de folhas;
atravessaram diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia;
ladearam a eira e a casa do cabanal, e, effectuados mais alguns rodeios,
acharam-se finalmente junto da escadaria de pedra, por onde se subia
para uma especie de patamar ou varanda alpendrada, que servia de um
modesto portico á casa de Alvapenha.

A propriedade da tia de Henrique era um genuino typo de casa rustica, á
moda do Minho.

Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar os objectos á escassa
luz que os allumiava, recebeu Henrique a primeira impressão agradavel de
toda aquella mal estreada excursão.

Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre avivaram n'elle
memorias, quasi apagadas. Lembrava-se agora vagamente de ter brincado
alli, a cavallo n'esse mesmo parapeito, então, como agora, enfeitado de
uma formidavel cohorte de aboboras meninas, victimas votadas ás festas
do proximo Natal.

A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um grande vaso de louça, que
elle, havia vinte e tantos annos, conhecera, e ao qual tinha a ideia
vaga de haver quebrado uma aza; abaixou-se no intento de se certificar,
e viu que de facto ainda lhe faltava a aza, sendo este o unico estrago
que após tanto tempo o velho utensilio soffrêra.

--É admiravel!--não pôde deixar de exclamar Henrique ao fazer a
descoberta, vendo que em oito dias operava maior reforma nos seus
aposentos em Lisboa, do que n'um quarto de seculo se realisava em
Alvapenha.

O hortelão bateu á porta e disse para dentro que era o sobrinho da
senhora que chegava.

Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de vozes, um arrastar de
passos; moveu-se a chave na fechadura; abriram-se as portas e no limiar
appareceu de braços abertos a tia Dorothéa, e por traz d'ella, elevando
a luz acima do hombro da ama, a criada Maria de Jesus, a que, havia
trinta annos, lhe era companheira e interessada em lagrimas e pesares.
Já Henrique lhe andára ao collo no tempo em que estivera creança na
quinta.

Deante da figura esbelta, do typo varonil e do comprido bigode de
Henrique, a sr.^a Dorothéa reprimiu as suas expansões e quasi recuou.

Nunca mais vira Henrique desde que este, aos cinco annos, deixára
Alvapenha, e dir-se-hia que esperava ainda encontrar os mesmos cabellos
louros e annelados e o mesmo rosto menineiro da travêssa creança de
outros tempos, em vez do homem feito, em que os vinte e tantos annos
volvidos o tinham transformado.

Ha d'estas illusões na gente.

A mais segura razão não está precavida contra ellas; a infundada
surpreza invade-nos de subito, e os labios não podem prender a
exclamação que a denuncia.

--Pois na verdade tu és o Henriquinho?!--disse espantada a boa senhora.

--Eu julgo que sim, tia Dorothéa.

--Tu! Ai como estás um homem! Ó Maria de Jesus, você não quer vêr isto!?

--Parece mesmo um soldado!--disse a criada, igualmente estupefacta.

--Credo, mulher! Santissima Trindade! Você que está a dizer? Nossa
Senhora nos livre de tal!--exclamou a ama, em cujo conceito o soldado
estabelecia a transição do homem para o diabo.

No entretanto Henrique de Souzellas abraçava a tia, que havia tanto
tempo que não vira, e ella correspondia-lhe, beijando-o com todo o
carinho e chorando.

Chorando por quê? Por quê? Pela muita bondade que tinha n'aquella alma.
A bondade é um rico manancial, que brota lagrimas ao toque da menor
commoção.

Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se dos roxeados
amplexos e mais provas de affecto de sua tia, quando se sentiu prêso em
novos laços. Era Maria de Jesus, que o abraçava tambem e lhe pespegava
nas faces dois beijos muito chiados, como aquelles que veem a ferver do
coração, e isto acompanhado de um--Ai o meu rico filho!--tão eloquente
como os beijos.

Henrique, habituado ás etiquetas da civilisação urbana, que estabelece
entre amos e criados distancias desconhecidas na aldeia, extranhou um
pouco a familiaridade, mas sujeitou-se a ella sem reflexões.

Maria de Jesus dizia, ainda admirada:

--Ó senhora! Não que uma coisa assim! Pois é este o menino que vinha á
cozinha limpar o tacho, em que se fazia a marmelada!

--É verdade! E que boa marmelada cá se fazia!

--Lambareiro!--disse a tia, sorrindo.--Se eu soubesse que eras assim,
não tinha mandado lavar o tacho do dôce, que ainda hoje serviu.

--Sim? Então ainda se faz dôce cá em casa, como d'antes?--perguntou
Henrique.

--Pois então? todos os annos. Mas valha-me Deus! E não querem vêr nós
aqui postas á palestra! Entra, menino, entra cá para dentro, que está
frio e tu deves vir cançado.

--Um pouco, um pouco, tia Dorothéa.

E Henrique entrou para a sala.

Demoremo-nos no limiar para informar o leitor sobre as pessoas, em cuja
casa se vae alojar com Henrique de Souzellas.

Não se imagina a santa paz de espirito, a placidez de paraiso, que estas
duas mulheres--D. Dorothéa e Maria de Jesus, ama e criada--gosavam na
quinta de Alvapenha, onde Henrique de Souzellas ia procurar allivio aos
seus muitos e variados males.

Ambas da mesma idade, ambas muito aferradas aos seus habitos, ambas
muito tementes a Deus e amigas do proximo, as duas celibatarias passavam
alli uma vida, rescendente a um suave perfume de santidade, como o da
alfazema e do rosmaninho, que lhes aromatizava as gavetas e de que se
repassava toda a roupa branca, objecto muito dos seus cuidados.

A inalteravel harmonia, mantida havia tantos annos entre as duas,
poderia ser exemplo á maior parte das familias d'este mundo. Entre
velhas, que nunca tiveram filhos, circumstancia que em geral faz o humor
mais acre e desabrido, era tanto mais para admirar o caso.

Tinham ellas porém a precisa tolerancia para fazerem mutuas concessões;
cada uma fechava os olhos aos pequenos caprichos da outra, e tudo corria
bem. Nunca a dentro d'aquellas paredes se ouviu uma só palavra, que, por
mais alto pronunciada ou por menos expressiva de paciencia, destoasse da
invariavel monotonia dos seus habituaes dialogos.

Eram um exemplo edificante para os vizinhos, que, pela maior parte,
devorados por demandas entre primos e irmãos, paes e filhos, marido e
mulher, mostravam infelizmente ser esta abençoada semente caída em
improductivo terreno.

As discordias intestinas nas familias do seu conhecimento affligiam as
duas sexagenarias e augmentavam o numero de Padre-Nossos com que todas
as noites se faziam lembrar dos santos, de quem eram validas,
pedindo-lhes a felicidade dos outros tanto ou mais do que a sua propria.

Ouvir rezar as duas santas velhas--e era essa a occupação dos seus
curtos serões--equivalia a escutar uma resenha das differentes
calamidades, que perseguem e apoquentam o genero humano, e que ellas,
d'esta maneira, pretendiam evitar.

--Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria a S. Marçal, para que nos livre do
fogo--dizia D. Dorothéa, e seguia-se o Padre-Nosso.--Outro a Santa Luzia
milagrosa, para que nos dê vista e claridade na alma e no corpo; outro a
S. Braz, para que nos proteja da garganta; outro a S. Vicente, por causa
das bexigas, etc. Seguia-se um Padre-Nosso por todos os que andam sobre
as aguas do mar; outro por os pobres sem abrigo nem alimento; outro por
os orphãos; outro pelos doentes; um pelos vivos; outro pelos mortos; um
pelos justos; outro pelas almas do purgatorio, não hesitando até a sua
caridade em transpôr as portas do inferno e pedir tambem a remissão dos
condemnados. E ainda depois d'esta minuciosa e longa enumeração, um
ultimo Padre-Nosso fechava a primeira serie, comprehendendo todos os não
contemplados por esquecidos, ou por não terem logar na classificação.

Compunha a segunda serie a menção especial de cada uma das pessoas
fallecidas das suas relações: parentes, amigos e conhecidos, por cujo
«eterno descanço entre os resplendores da luz perpetua» oravam com
verdadeira compunção. N'esta phalange ia tambem D. João VI, por quem,
havia quarenta annos, se costumára a rezar D. Dorothéa, e não era ella
mulher que rompesse com habitos semi-seculares. Era esse talvez o unico
Padre-Nosso que a alma do monarcha recebia no Céo, com procedencia do
seu antigo reino.

Quanto ás qualidades physicas, a imaginação dos leitores pintar-lh'as-ha
melhor do que a minha descripção. Forçosamente conheceram uma d'estas
boas velhas, para quem nos sentimos attrahidos; a quem se estima e com
quem se brinca ao mesmo tempo; que nos podem inspirar sacrificios e
simultaneamente nos tentam a travessura; a quem mystificamos agora e
logo beijamos respeitosamente a mão; contra quem não reprimimos
impaciencias, escutando depois submissos os seus nunca terminados
sermões.

Ora estas velhas assim teem quasi sempre um typo uniforme, que é o
reflexo exterior da bondade do coração; esse era o typo da tia Dorothéa
com o seu vestido rôxo, o seu lenço castamente cruzado no peito, a sua
touca de folhos alvissimos e de fitas escuras, o mólho de chaves á
cinta, o livro de orações na algibeira e os oculos a marcarem no livro a
reza habitual.

Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma edição popular da mesma
alma. Succedêra de mais com ellas o que é sempre de esperar de uma longa
e intima convivencia; haviam reciprocamente adoptado maneiras e modos de
pensar e de vêr e de dizer as coisas uma da outra, a ponto de qualquer
d'ellas ser como que uma premissa d'onde a modo de conclusão, se deduzia
a outra facilmente.

Tudo isto percebeu logo Henrique de Souzellas ao primeiro exame que fez
das duas santas mulheres.

Entremos agora com elle para dentro da sala.

Quem, vinte annos antes, tivesse visitado a casa de Alvapenha e ahi
voltasse de novo com Henrique julgaria, á vista da uniforme disposição
de coisas mantida alli dentro em tão distantes épocas, que todo esse
tempo não fôra mais do que um sonho de momentos.

Encontraria os mesmos móveis, na mesma collocação; as mesmas cobertas
nos leitos, apenas mais desbotadas; as mesmas ou iguaes cortinas nas
janellas; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosphera dos quartos,
os mesmos quadros na parede, as mesmas jarras nas cómmodas.

A memoria de Henrique, aquella inconstante e leviana memoria de rapaz
estouvado, sentia-se acordar, á vista d'aquillo tudo.

A sala tinha uma physionomia caracteristica.

Supponha-se uma não muito ampla quadra de pouca altura, toda pintada a
óca, e alumiada por duas mal rasgadas janellas de peitoril, com os seus
competentes assentos de pedra, um defronte do outro, com meias cortinas
de cambraia sempre corridas--pleonasmo de discrição que se não
justificava, visto que as janelas, abrindo para a quinta, não tinham
vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-se. O tecto era de
almofadas de castanho, em tempos pintado de azul, agora de uma côr
duvidosa. Havia quinze annos que D. Dorothéa falava em o mandar retocar,
mas o projecto, momentoso como era, ia sendo adiado de primavera para
primavera. Orlava a sala, no alto, um friso ou cornija saliente, onde
coroadas maçãs de inverno aguardavam, em vistosa fileira, a completa
maturação, e derramavam no aposento o mais agradavel aroma. O pavimento,
apesar de muito picado de caruncho, andava limpo e _escafunado_--termo
do vocabulario de casa--que mettia gôsto vêl-o. Cada parede era um museu
de estampas de devoção. Poucos santos e santas da côrte celestial não
estavam alli representados e com um colorido, que era o maior peccado, a
que estes bemaventurados haviam dado logar cá no mundo.

Cá se via Santa Quiteria e as suas sete companheiras; Santa Anna
ensinando Nossa Senhora a ler; o Senhor dos Passos, venerado em S. João
Novo, no Porto; o Bom Jesus de Bouças, representação da imagem, que,
segundo reza a respectiva chronica, é obra das mãos de José de
Nicodemus; os Santos Martyres de Marrocos, da igreja de S. Francisco,
etc., etc. Sobre a cómmoda de pau preto era devotamente venerado o mais
rubicundo, menineiro e bem disposto Santo Antonio, que ainda modelaram
as mãos de santeiro afamado. E seja dito de passagem que não sei por que
a tradição popular dá a este austero franciscano o aspecto chorudo de um
moderno reitor de farta abbadia de aldeia.

No interior da redoma onde se abrigava o santo estava estabelecido o
museu de raridades da tia Dorothéa. Eram flores artificiaes,
concharinhas e caramujos, um rosario de caroços de azeitonas, uns poucos
de vintens de prata, enfiados e pendentes do braço do menino Jesus, que
o santo sustentava ao collo, veronicas, escapularios, uma campainha
benta, uma medida do braço do Senhor de Mattosinhos, um pão do sacco de
Santa Isabel, que vae na procissão de Cinza, no Porto, e outros objectos
curiosos.

A mobilia da sala consistia em cadeiras de palhinha, que gemiam quando
entravam em serviço, como militar, cujas articulações o rheumatismo
invadiu; mesas cobertas com colchas de chita; bahús cravados de pregaria
amarella, disposta em lettras e arabescos; uma papeleira de pau santo, e
uma gaiola com um canario decrepito, objecto, havia muitos annos, das
tentações de um gato, mais decrepito do que elle e pertencente ás
classes inactivas.

Henrique, adivinhando por todo aquelle cheiro de beatitude e de
antiguidade que alli se respirava, os habitos da casa, sentia já certo
desconfôrto, como de quem é arrancado de subito ao ambiente, em que se
educou e vive, e engolfado n'um ambiente extranho; especie de asphyxia
moral, não menos angustiosa do que a do peixe fóra da agua.

A saudade que ao principio sentira, dissipára-se já. O perfume da
saudade é como o de certas flores, que só se percebe quando de longe o
recebemos. Se, illudidos, as tentamos aspirar de perto, dissipa-se.

Acontecera isto com Henrique.

Cada vez portanto se lhe radicava mais funda a crença de que não seria
por muito tempo que se demoraria alli.

--Os emollientes do doutor--pensava elle, emquanto sua tia falava--serão
efficazes para quem os pudér soffrer sem enjôo, mas para mim...

No entretanto sentou-se.

--Ora o Henriquinho!--dizia ainda D. Dorothéa, pondo-se de braços
cruzados em contemplação defronte d'elle.--Ó menino, onde foste tu
arranjar esses bigodes tamanhos? Então isso agora usa-se?

Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique.

--Quem quer usar, usa, tia. Não é obrigação--respondeu elle, com leve
mau humor.

--Em nome do Padre e do Filho!--dizia Maria de Jesus, benzendo-se e
tomando logar ao lado da ama.--Até nem sei que parece, lembrar-se a
gente que trouxe este marmanjão ao collo!

O termo «marmanjão» não soou bem a Henrique. Principiava tambem a
impaciental-o o vêr as duas embasbacadas deante d'elle; um homem sujeito
a uma exposição d'estas, por mais que faça, não atina com o modo de
arrostar com ella, que não seja ridiculo. Ora Henrique, como todo o
homem da sociedade, o que mais que tudo temia n'este mundo era o
ridiculo.

Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da tia Dorothéa, que fez
perceber á criada a conveniencia de ir preparando a ceia de Henrique,
que havia de querer recolher-se. Henrique, apesar de não costumar cear,
acceitou a ideia, porque o frio, as fadigas e a má alimentação dos
ultimos dias, haviam-lhe desafiado o appetite. Demais, o espanto de D.
Dorothéa, quando lhe ouviu dizer que as ceias não entravam nos seus
habitos, foi tal que lhe tirou o animo de rejeitar.

--Não ceias! Ó menino, que me dizes? então vaes-te deitar sem ceia? Ora
essa! Por isso vocês são uns pelens. Vejam lá que arranjo este! ficar
toda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento ao estomago, que
aconchegue. Nada, nada; a ceinha em todo o caso. E tu has de tambem
querer mudar de fato?

--Eu venho bastante molhado.

--Ai, então depressa, menino, que não ha nada peor do que a roupa
molhada no corpo. Ó Maria... ou deixe estar, eu vou... Anda,
Henriquinho, anda lá, que eu guio-te ao teu quarto para te arranjares.

Meia hora depois, Henrique banhado, enxugado e commodamente vestido,
saboreava uma gorda gallinha de canja, sobre uma mesa coberta de toalha
lavada, e na melhor louça da copeira.

Elle que tinha sempre severidades de critica contra os mais afamados
cozinheiros de Lisboa, estava achando deliciosa aquella comida
primitiva, com que o regalava a tia.

Esta sentou-se a vêl-o comer, e com a mesma familiaridade, que Henrique
já anteriormente extranhára, Maria de Jesus sentou-se ao lado da ama.

Ambas tinham ceado já; pois que o faziam ao cerrar da noite.

Emquanto Henrique comia, ellas, sem deixarem de o observar com a natural
curiosidade de quem havia tanto tempo não tivera um hospede, faziam-lhe
perguntas, ás quaes elle ia respondendo conforme lhe era possivel.

--Tu dizias-me na tua carta que estavas doente; pois olha que na cara
não o parece.

--Não--concordou a criada--tem boas côres, e, vamos, a magreza inda não
é lá essas coisas.

Era este o ponto fraco de Henrique; respondeu logo ao reclamo.

--Não me digam isso! Então não vêem como estou? Pois isto é lá côr de
saude? de febre, será. Gordo? pois acham-me gordo?!

--Gordo, não digo, mas assim, assim... E depois como vieste de
jornada... Mas a final que molestia é a tua, menino?

--Eu sei lá, tia Dorothéa? Nem os medicos a conhecem bem. É, entre
outras coisas, uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa, que me
persegue por toda a parte. Ás vezes parece-me que sinto apertar-se-me
dolorosamente o coração; outras, são palpitações, ancias... Tenho quasi
vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me, não quero que me falem,
nada quero vêr, nada quero ouvir; não leio, não durmo, não como.
Finalmente todo eu sou doença e tristeza.

A boa tia Dorothéa olhava com sisudez e attenção para o sobrinho,
emquanto elle falava, e na physionomia iam-se-lhe desenhando, ao
ouvil-o, os mais expressivos signaes de espanto e consternação.

Assim que Henrique terminou a exposição, ella disse-lhe com uma adoravel
candura:

--Então é assim uma especie de mania!

Á palavra «mania» Henrique sobresaltou-se. Seria a consciencia que se
sentiu ferida?

--Mania? Ó tia Dorothéa! Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte?
Mania!

--Sim, menino--insistiu ingenuamente a boa senhora--pois olha que não é
outra coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê... sim... porque
não te morrendo ninguem, nem te doendo nada...

Ó poetas devaneiadores, ó almas melancolicas, que percebeis no sussurrar
das brisas, no ciciar das folhas, no murmurar dos arroios, queixas
occultas de dryades e de nayades, sentidas vibrações das harpas de fadas
aereas, que vivem em palacios de nuvens; ó corações inoculados de
poesia, que vos confrangeis e gottejaes lagrimas sinceras ao desmaiar do
dia, ao desfolhar das arvores no outomno; poetas, que escutaes, com
Victor Hugo, as vozes interiores, os cantos do crepusculo, e com elle
adivinhaes os mysterios dos raios e das sombras, perdoae a involuntaria
blasphemia da tia Dorothéa, que não contem o menor fermento de malicia;
perdoae-lhe a dura expressão de que ella se serviu para caracterisar os
vossos arroubamentos, as vossas tristezas vagas, os vossos devaneios, e
crêde que, apesar da phrase, terieis n'ella uma alma mais afinada para
sympathisar comvosco, do que tantas que por ahi fazem gala de vos
comprehender melhor.

Henrique não podia porém digerir a expressão, de que se servira a tia,
para diagnosticar o seu mal.

--Mania!--repetia elle--essa agora! Sempre é forte de mais. Mania, não,
tia Dorothéa, lá isso não. Mania!

--Eu lhe digo--acudiu a criada.--Não vá sem resposta; que está quasi
como o cunhado da Rosa do Bacello. A senhora não se lembra? Andou
aquella alminha por ahi sempre triste, sempre a falar só, até que a
final lá foi parar...

--Aonde?--perguntou Henrique, erguendo os olhos interrogadoramente para
a criada.

--Lá foi parar a Rilhafolles--concluiu esta, espevitando a véla o mais
naturalmente d'este mundo.

Henrique de Souzellas pulou com a sinceridade.

Nem acabou de sorver a ultima colhér de caldo de arroz, que lhe estava
sabendo como nunca manjar lhe soubera.

--Então não comes mais?--perguntou a tia.

--Muito agradecido; eu o mais que tenho é somno.

--Pois sim, mas é preciso fazer por comer--insistiu ella.

--Ora vá mais este côxão--disse a criada.

--Não é possivel--teimou Henrique, e insistiu para se recolher ao
quarto.

--Tens razão, tens--concordou a tia Dorothéa--deves estar fatigado. Vae
com Nossa Senhora, menino. E deixa-te lá de pensar e estar triste, que
isso não é bom. É fazer por espairecer. Come, bebe, passeia, que é o que
dá saude. Nada de malucar.

--Sim--accrescentou a criada--e não queira estar doente, que não tem
graça nenhuma.

--E olha, Henriquinho, tu tens por ahi com quem te podes distrahir. O
brazileiro Seabra, que tem uma casa como um palacio; o Augustito do
doutor, que é um bom mocinho. E depois vae dar um passeio por ahi, um
dia até os moinhos outro dia até á ermida da Senhora da Saude. Agora me
lembra: a Lenita já mandou ahi outra vez saber se tinha chegado o
hospede--disse D. Dorothéa.

--Não foi só a morgadinha...

--Ahi está você a chamar-lhe tambem a morgadinha.

--Então, senhora?! isto é o costume. Mas todas as outras senhoras
mandaram tambem o Torquato saber do sr. Henrique. A sr.^a D. Victoria e
a Christininha.

--Ai, pois cuidadosas são ellas! Tu has de te entender com aquella
gente. É uma gente muito dada e sem ceremonia. É preciso lá ir. Olha,
ámanhã podes ir visital-as. É um passeio bonito.

Henrique, que tinha estado distrahido durante a conversa das duas, nem
se dava ao trabalho de intervir no dialogo em que ellas dispunham já do
seu tempo e traçavam-lhe planos de vida.

--Mas vae descançar, menino, vae e faze por dormir. Olha lá, tu costumas
dormir com luz?

--Não, tia, não costumo.

--É porque n'esse caso... Ó Maria, onde está aquella lamparina, que me
serviu quando eu estive doente, ha seis annos?

--Está lá dentro, senhora; se a senhora quer eu...

--Vê lá, menino...

--Não tia, não quero.

--Ha pessoas que não podem dormir ás escuras--dizia a criada.--Eu,
graças a Deus, durmo bem de qualquer fórma.

--Pois sim, mas nem todos são como você. Olha, ó Henriquinho, has de vêr
se queres o travesseiro mais alto ou...

--Muito agradecido, tia Dorothéa, tudo deve estar bom--disse Henrique,
procurando fugir ás muitas reflexões, perguntas e conselhos, com que as
duas o iam perseguindo até o quarto.

--Olha, ó menino, tu bebes agua de noite?

--Ás vezes.

--Você poz-lhe agua no quarto, Maria?

--Puz, sim, minha senhora; pois então? Já minha mãezinha dizia, que
antes sem luz do que sem agua.

--Bem, então está bom. Então muito boa noite, menino.

--Boa noite, tia.

--Ai, é verdade. Has de vêr se queres mais roupa na cama.

--Não hei de querer, não, tia.

--Olha que está muito frio. Você quantos cobertores lhe deitou, ó Maria?

--Cinco, senhora.

--Cinco!--exclamou Henrique, quasi horrorisado.--Cinco cobertores!

--É pouco?

--Pouco?--É de morrer esmagado debaixo d'elles.

--Ai, quer não! Olha que está muito frio.

--Bem, bem; eu cá me arranjarei.

--Então, muito boa noite.

--Muito boa noite, tia.

E Henrique ia a fechar a porta.

--Olha...--disse ainda a tia.

Henrique parou.

--Não sei o que é que me esquece...

--Não ha de ser nada, tia; boa noite.

--Não esquecerá?... Eu sei?... Emfim... boa noite. Ai, é verdade...
Sempre é bom ficar com lumes promptos.

--Ai, sim; lá isso sempre é bom.

--Vês? não que bem me parecia.

--Já lá estão, senhora--disse a criada de longe.

--Melhor; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor, menino.

--Muito boa noite, tia.

E Henrique conseguiu fechar a porta.

Estava finalmente só.

--Que desastrada lembrança a minha!--disse o pobre rapaz, ao fechar a
porta sobre si.--Como posso eu viver com esta santa e virtuosa gente,
que chama manias aos meus padecimentos? Que futuro de impertinencias me
espera! Ai, Lisboa, Lisboa, e pensar eu que só posso voltar para ti á
custa de outra jornada!

O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto leito de
almofadas na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não dispensava
o auxilio de cadeira para trepar acima d'elle, uma commoda com um
pequeno espelho, um bahú, um lavatorio e duas cadeiras mais, constituiam
a mobilia toda.

Henrique de Souzellas sentiu a falta de mil pequenos objectos de
toucador, a que estava habituado. Aquelle estrictamente necessario não
lhe promettia grandes confortos.

Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvissimo e respirava um asseio
e frescura convidativos: os travesseiros, de largos folhos engommados,
possuiam uma molleza agradavel ás faces; o colchão de pennas abatia-se
suavemente sob o peso do corpo fatigado.

Henrique conchegou a roupa a si; á falta de velador, pousou o castiçal
no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa, poz-se a
ler, para obedecer a um habito adquirido.

Não teria ainda lido um quarto de pagina, quando ouviu a voz da tia
Dorothéa, que lhe dizia de fóra da porta:

--Ó menino, tu já te deitaste?

--Já, sim, tia Dorothéa.

--Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um mêdo de fogos!

--Esteja descançada, tia. Eu apago já.

--Então será melhor. S. Marçal nos acuda.

E afastou-se, rezando ao santo.

Henrique continuou a ler.

D'ahi a pouco a mesma voz:

--Tu já dormes, Henriquinho?

--Não, tia, ainda não durmo.

--Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um mêdo de
fogos! Não descanço, emquanto não vejo tudo apagado em casa.

Henrique perdeu a paciencia.

--Pois pode socegar, olhe.

E apagou a véla, meio zangado.

--Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por
dormir. Então, muito boas noites.

--Muito boas noites--respondeu Henrique quasi amuado; e ageitando-se na
cama, dizia comsigo:--E esta! Já vejo que nem ler me é permittido aqui.
Olhem que vida me espera! É isto o que me devia curar? Que fatalidade!

Dentro em pouco, os dois felpudos cobertores de papa, unicos que
conservava dos cinco primitivos, começaram a fazer o seu effeito,
insinuando nos membros cançados da jornada um agradavel calor.
Convidavam ao somno o som da agua n'um tanque que ficava por debaixo das
janellas do quarto e as gottas da chuva, que dos beiraes do telhado
caíam compassadas na taboa do peitoril.

A noite socegára. De quando em quando apenas algumas lufadas de vento,
já menos impetuosas, faziam bater as vidraças.

Eram como estes estados, que succedem a um choro aberto. Correm ainda
algumas lagrimas nas faces, mas já não brotam novas dos olhos: saem
ainda do peito os soluços, porém mais espaçados; dentro em pouco será
completa a serenidade.

Henrique começou a experimentar uma languidez, um delicioso bem-estar
n'aquelle confortavel leito e no meio d'aquelle socego; fecharam-se-lhe
enfraquecidos os olhos, e deslisou suave, insensivelmente, no mais
profundo, tranquillo e restaurador somno, que, havia muito tempo, tinha
dormido.

 

 

III


Ao romper da manhã, quando a consciencia principia, pouco a pouco, a
acudir aos sentidos, até então tomados pelo torpôr de um somno profundo,
Henrique de Souzellas sonhava-se commodamente sentado em uma cadeira de
S. Carlos, disposto a assistir ao desempenho de uma opera favorita.

Moviam-se os arcos nas cordas dos violinos, violoncellos e contrabassos;
sopravam, a plena bôca, os tocadores dos instrumentos de vento; agitavam
descompostamente os braços os ruidosos timbaleiros; dedos amestrados
faziam vibrar as cordas da harpa; a batuta do mestre fendia airosamente
os ares, e comtudo não chegava aos ouvidos de Henrique, de toda esta
riqueza de instrumentação, mais do que uma nota unica, arrastada,
continua, plangente, baixando e subindo na escala dos tons, e sem formar
uma só phrase musical.

Era de desesperar um _dilettante_ como elle; torcia-se na cadeira,
inclinava convenientemente a cabeça, fazia das mãos cornetas acusticas,
e sempre o mesmo resultado!

Este violento estado de attenção, este esforço do sensorio, principiou
n'elle a obra de despertar; principiou pois pelos ouvidos, mas cêdo se
transmittiu a todos os outros orgãos.

Antes de dar a si proprio conta do que era aquelle som, e quasi
esquecido ainda do logar em que estava, Henrique abriu os olhos.

A luz do dia penetrava já pelas frestas mal vedadas das janellas e
espalhava no aposento uma tenue claridade.

Veio então a Henrique a consciencia do logar em que estava, e uma
alegria profunda lhe dilatou o coração.

O leitor se ainda não padeceu de insomnias, de pesadêlos, ou de somnos
febris, não avalia por certo o contentamento intimo, que se apossa das
desgraçadas victimas d'esses demonios nocturnos, quando por excepção
elles as deixam em paz, e lhes respeitam o somno de uma noite completa.
Acordar só aos raios da aurora é um dos mais ineffaveis prazeres, a que
elles aspiram na vida.

Penetra-lhes então nos membros um insolito vigor; a arca do peito
expande-se-lhes mais livre e as sombras do espirito dissipam-se-lhes com
aquelle clarão matinal.

Foi o que succedeu a Henrique. Pela primeira vez depois de muitos mezes,
dormira de um somno a noite inteira.

Sentia-se com isto tão bom, tão vigoroso, tão contente que teve vontade
de cantar.

Mas o som, que o acordára, aquella nota unica, em que se confundiam
todas as notas da sonhada orchestra, ainda lhe soava aos ouvidos.

Prestando-lhe a attenção de acordado, conheceu que era o chiar dos
carros--o mesmo som, que na vespera o irritára, agora assim a distancia,
estava-lhe agradando, como nota extrahida por mão habil das cordas de um
violino.

Não resistiu mais tempo ao impulso que n'aquella manhã o incitava ao
exercicio, rara disposição no indolente filho da capital, que tinha por
habito ouvir o meio dia na cama.

Ergueu-se e abriu as janellas.

Não é licita a comparação entre a mais surprehendente transmutação de
uma d'essas apparatosas magicas, que tanto extasiam as multidões
embasbacadas nas plateias e camarotes de um theatro, e as que de
instante para instante, realisa a natureza. Descerrando o véo de nuvens
que encobre o fulgor do sol, elevando, acima do horizonte, esse
magestoso lampadario do mundo, ou o brilhante reflectidor que illumina
as noites desanuviadas, a natureza opéra, a cada momento, as mais
admiraveis e completas metamorphoses.

Durante o somno de Henrique realisára-se um d'esses effeitos magicos.

Abrandára gradualmente a violencia do sul; o vento, mudando, voltou em
sentido opposto a grimpa do campanario; dispersaram-se as nuvens;
luziram trémulas por momentos as estrellas, empallideceram perante o
alvor do dia, e quando o sol assomou por sobre a crista das serras,
estendia-se-lhe deante um vasto manto azul, tapetando a estrada, que
tinha a percorrer. Só, muito para o occidente, ainda algumas nuvens
amontoadas formavam uma como franja, que o astro nascente em breve
tingiu de carmim e de ouro.

Foi pois a luz de um dia esplendido e a brisa, cheia de aromas, que vem
dos campos nas alvoradas serenas que penetraram no quarto de Henrique,
quando elle abriu as janellas.

A inesperada surpreza quasi lhe soltava do peito uma exclamação de
prazer!

A aldeia, aquella mesma aldeia, escura e triste que, com o coração
apertado, atravessára na vespera, parecia outra.

O sol da manhã baixára sobre ella, dissipára-lhe as sombras,
colorira-lhe as verduras, reflectira-se-lhe nas presas, dispersára-se em
iris cambiantes na espuma das torrentes e cascatas naturaes, perfumára-a
de aromas, animára-a de cantos, transformára-a emfim na mais risonha
paizagem, em que os olhos de Henrique, pouco habituados ás esplendidas
galas do Minho, tinham nunca repousado.

O inverno despojára parte d'essas galas; embora! Até da propria nudez de
algumas arvores resultavam encantos. As folhas crestadas, os ramos
despidos, as moitas sem flores infundem tristeza; mas não tem a tristeza
poesia tambem? Pode haver completa paizagem onde não haja uns tons
escuros de melancolia?

Henrique de Souzellas, debruçado na varanda de pedra do quarto, não se
cançava de admirar aquella scena.

Parecia-lhe estar assistindo a um milagre de fadas, que, n'um momento,
elevam, nos ermos, jardins e paços, como os de Armida e Alcina.

Pois era esta a mesma aldeia, através da qual elle cavalgára de noite?

Os accidentes do terreno, aquelles accidentes, que tão do fundo da alma
amaldiçoára na vespera, produziam, vistos então d'alli, os mais
pittorescos effeitos. Abatia-se-lhe aos pés um não muito profundo valle,
opulento em vegetação, e que a certa distancia se continuava insensivel
e gradualmente com uma amenissima collina.

Além, um bello bosque de carvalhos seculares, que o inverno, privando-os
de folhas, tingira quasi da côr da violeta, contrastava com a fronde
sempre verde das laranjeiras nos pomares vizinhos, fronde por entre a
qual se divisavam abundantes os dourados fructos, poupados pela mão do
lavrador. As copas, como umbelladas dos pinheiros mansos, desenhavam nas
encostas e eminencias fronteiras as mais suaves ondulações. Dispersos
aqui e alli, e entremeiados com a verdura, grupos de casas campestres,
alvejantes á luz do sol, moinhos e azenhas, noras toldadas de ramadas
conicas, eiras, pontes rusticas, as mesmas talvez que com mau humor
trilhára na vespera, tão sinistras então, como graciosas agora; extensas
e virentes campinas e lameiros, onde pastavam numerosas manadas de gado.
Mais longe a igreja com a sua alameda á entrada e o cemiterio, onde um
só mausoléo avultava ainda; uma ou outra casa apalaçada, ennegrecida
pelo tempo; algumas ruinas, consolidadas pelas heras, revestidas de
musgos, douradas de lichens; finalmente, tudo o que tenta os
paizagistas, tudo o que exalça os poetas, tudo quanto suspende os passos
ao viajante; e, encobrindo todo o quadro, um tenuissimo sendal de
vapores azulados, dando-lhe a apparencia de uma das mimosas composições
a pastel da mão de Pillement.

A mudança de aspecto da scena operou não menor mudança nos sentimentos e
disposição do enlevado espectador que das varandas de Alvapenha a estava
observando.

--É preciso sair! é preciso sair!--disse Henrique comsigo.--Quero vêr
isto de perto; quero entranhar-me n'estes bosques, quero trepar por
aquelles montes, debruçar-me d'aquellas ribanceiras.

E vestindo-se á pressa, e sem sentir a necessidade de uma escrupulosa
_toilette_, saiu do quarto.

Encontrou nos corredores a tia Dorothéa, que o saudou amavelmente.

--Muito bons dias, menino, então como passaste tu a noite?

--Deliciosamente minha querida tia--respondeu elle, abraçando-a com
maior affecto e bom humor do que na vespera.

O que é sentir-se a gente bem!

--Então não estranhaste?

--Estranhei immenso!

--Sim?!--disse a tia, mortificada.

--Dormi a noite de um somno, e acordei bem disposto; o que para mim é a
mais estranha das occorrencias.

A tia sorriu satisfeita.

--Pois antes assim. E agora...

--E agora quero sair, quero vêr esta terra, que me está parecendo um
paraiso terreal.

--Espera, menino. Não vás sem almoçar.

--Almoçar! Pois que horas são?

--Não é cêdo; são já sete horas.

--Já sete horas!

E Henrique insensivelmente desviou os olhos para a janella, para vêr
como era a natureza, a uma hora a que raras vezes a examinava.

--E então acha que se pode almoçar ás sete horas?

--Por que não? Se está já prompto.

--Bom; almocemos. O doutor disse-me que tomasse os habitos da aldeia.
Principiemos por este.

Entrando para a sala do jantar, Henrique viu deante de si uma taça de
leite espumante, tépido, odorifero, extrahido de pouco tempo.

Foi por elle que principiou o almoço.

Pela primeira vez na sua vida disse elle ter bebido o leite verdadeiro,
o leite que não faz mentir a analyse dos chimicos, de que os
physiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das
georgicas cantam as delicias e virtudes; só agora os comprehendeu elle,
que bem differente d'aquillo era o aguado e quantas vezes derrancado
sôro, a que estava habituado na cidade.

D. Dorothéa, almoçando, e Maria de Jesus, servindo, falaram, segundo o
costume, continuadamente.

Henrique, d'esta vez, falou tanto como ellas.

Ouvia-as já com mais attenção e respondia-lhes com mais vontade e
paciencia.

Falaram em muitas coisas.

A tia deu parte ao sobrinho de que varias pessoas da vizinhança,
sabendo-o chegado, lhe tinham mandado presentes de gallinhas,
offerecendo-se, ao mesmo tempo, para lhe mostrarem as raridades da
terra; disse mais que as senhoras da quinta do Mosteiro tambem tinham já
mandado saber d'elle, Henrique, e lembrou que seria delicado ir
visital-as aquella manhã.

Henrique concordou em tudo, quasi sem reparar em quê, e terminando o
almoço apressou-se a sair para o campo.

--E se te perdes, menino?--lembrou a tia.

--Se me perder, farei por achar-me.

Riram-se muito as boas mulheres e deixaram-o ir.

Dentro em pouco, Henrique atravessava a quinta, que tambem então lhe
parecia graciosa, de uma graça bucolica, a que não estava habituado. O
aspecto melancolico da vespera desvanecera-se. Até para ser completa a
mudança, estavam encadeados nas casotas o Lobo e o Tyranno, cujas boas
graças comtudo procurou conquistar, atirando-lhes biscoutos.

Foi um passeio delicioso o que elle deu. Tudo quanto via lhe era
novidade, tudo lhe captivava a attenção e o distrahia dos seus lugubres
pensamentos.

Depois de muito andar, de subir collinas, de descer valles e costear
ribeiros, foi sair a um pequeno largo, ao fim do qual havia uma casa
terrea, caiada de branco, com portas verdes e janellas envidraçadas,
sendo os vidros em alguns dos caixilhos substituidos por papel. Á porta
d'esta casa estava muita gente parada; mulheres, velhos, moços,
creanças, uns sentados, outros deitados, outros a pé e encostados á
umbreira, e todos apparentemente aguardando alguma coisa ou alguem do
lado de uma das ruas, que vinha terminar no largo, e para a qual se
dirigiam todos os olhares.

Henrique approximou-se d'esta casa com alguma curiosidade, que cêdo
satisfez, vendo em uma taboleta, suspensa no alto da janella, a seguinte
pomposa inscripção: «Repartição do correio», e, como a confirmar o
distico, um córte feito na porta para a recepção das cartas.

Lembrando-se da conveniencia de avisar o empregado do correio para lhe
serem remettidas a Alvapenha as cartas que lhe viessem de Lisboa,
Henrique entrou na repartição.

Consistia esta n'uma loja apenas, mobilada com um banco de pinho e
dividida por um mostrador, para dentro do qual se alojava todo o pessoal
do serviço, isto é, um homem por junto; e era este o sr. Bento
Pertunhas, personagem importante na terra, e a cuja intelligencia e
solicitude estavam confiadas mais do que uma funcção. Além de servir, em
interinidade permanente, como muitas vezes são as interinidades do nosso
paiz, este cargo, dito por elle, de «director do correio», estava de
posse s. s.^a de uma das cadeiras de latim e de latinidade, com que se
procura em Portugal fomentar nos concelhos ruraes o gôsto pelas lettras
antigas; era ainda regente e director da philarmonica da terra, armador
de igreja em dias festivos, ensaiador de autos e entremezes populares,
e, quando Deus queria, auctor de alguns tambem.

Vendo entrar Henrique nos seus dominios, o illustre funccionario tirou
cortezmente o seu bonnet de pelle de lontra e ergueu-se da banca para
cumprimentar tão honrosa visita. Nos cumprimentos que formulou disse o
nome de Henrique.

Admirado por ser já conhecido, Henrique interrogou o latinista e,
achando-o muito informado de tudo quanto lhe dizia respeito,
convenceu-se de que estava na presença de um esmerilhador de vidas
alheias do mais fino quilate e de um falador de assustar.

Com o fim de cortar a divagação, em que o homem entrára a respeito de
certa viagem que fizera a Lisboa, perguntou-lhe Henrique se o correio
não chegára ainda.

--Saiba v. s.^a que ainda não--respondeu o sr. Bento Pertunhas--mas não
deve tardar; o homem que d'aqui vae buscar as malas á villa, se bem
andasse, já cá podia estar. Esse formigueiro de gente, que v. s.^a ahi
vê á porta, está á espera d'elle. Hoje então, que chegam as cartas do
Brazil, ninguem pára com este povo. Dão-me cabo da paciencia. Isto é um
inferno! Eu sirvo este logar interinamente, emquanto o empregado está
paralytico; porque eu tenho outro cargo publico; sou professor de
latinidade.

--Ah!...

--É verdade, mas a minha vocação era para as artes. Meu pae queria que
eu fôsse padre e mandou-me ensinar latim; mas já então a minha paixão
era a musica. Eu ainda queria que v. s.^a me ouvisse tocar trompa, que é
o instrumento que mais tenho estudado... Se v. s.^a se demorar ha de
fazer-me o favor...

--Com muito gôsto.

--Não poder um homem seguir no mundo a sua vocação!

--Ainda assim não se pode queixar muito. O cultivo das lettras latinas
deve-lhe proporcionar gosos; porque emfim para quem possue instinctos de
arte, a leitura dos poetas já é um lenitivo contra as agruras da vida.

O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos muito abertos.

--Os poetas? Os poetas latinos! Ora essa! Então parece-lhe que pode
achar-se gôsto em lêl-os? Ai, meu caro senhor, eu por mim tenho-lhe uma
vontade!... O latim!... a mais destemperada e desesperadora lingua que
se tem falado no mundo! Se é que se falou--accrescentou em voz baixa.

--Então duvida que se falasse latim?--perguntou Henrique, sorrindo.

--Eu duvido. Não sei como os homens se podessem entender com aquella
endiabrada contradança de palavras, com aquella desafinação que faz dar
volta ao juizo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é uma casa
desarranjada, onde ninguem se lembra onde tem as suas coisas quando
precisa d'ellas e passa o tempo todo a procural-as? Pois é o que é o
latim. Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e vae dizendo: «As
armas, o homem e eu, canto, de Troia, e primeiro, das praias.» Quem
percebe isto! Ora agora peguem n'estas palavras e em outras, que elles
punham ás vezes em casa do diabo, e façam uma coisa que se entenda! É
quasi uma adivinha. Ora adeus! E depois--continuou elle, enthusiasmado
com o riso de Henrique, suppondo-o de approvação--e depois as
differentes maneiras de chamar a um objecto? Isso tambem tem graça. Nós
cá dizemos por exemplo: «reino e reinos» e está acabado; lá não senhor;
diz-se _regnum_ e _regna_ e _regni_ e _regno_ e _regnis_ e até
_regnorum_. Ora venham-me cá elogiar a tal lingua!

Henrique estava achando delicioso o odio entranhado de mestre Bento
Pertunhas á latinidade que ensinava com a proficiencia, que o leitor
pode imaginar, depois do que ouviu.

--Ai, meu caro senhor--continuou o atribulado _magister_--eu se me vejo
um dia livre d'este amaldiçoado latim, faço uma fogueira, na qual me hei
de regalar de vêr arder o Tito Livio e os Virgilios todos tres.

É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural, ao referir-se a
Virgilio.

Quer-me parecer que para este interprete da litteratura latina tinham de
facto existido tres Virgilios, provavelmente irmãos, e cada um auctor de
cada um dos tres volumes da edição, que lhe servia de texto. Dizia
Virgilio 1.^o, 2.^o e 3.^o, como quem se refere aos monarchas homonymos,
que succederam n'um mesmo reino.

--Não me salvo se morro mestre de latim--proseguia elle.--Afunda-me no
inferno o trambolho da syntaxe.

Ia continuar, quando toda a gente, que Henrique viu fóra da porta,
principiou em desordenada azafama a entrar para a loja, que em breve não
comportava mais ninguem.

--Ahi vem o homem, sr. Pertunhas; ahi vem. Graças a Deus, que ahi
vem!--diziam todos á uma.

O funccionario principiou a impacientar-se.

--Então! então! Por onde ha de elle entrar, fazem favor de me dizer?
Saiam, saiam. Não ouvem? Então não fazem caso das minhas ordens? Dêem
logar. Não vêem que estão molestando este senhor?

Cada um dos reprehendidos n'estes termos indignava-se, ao vêr que os
outros não obedeciam ás ordens, mas, pela sua parte, não cedia um passo,
como se lhe valesse algum especial privilegio.

--Saia você, mulher--dizia um.

--E você por que não sae? Olha agora!

--A todos ha de chegar a vez. Descance. Se tiver carta lh'a darão. Lá
por estar aqui não é que...

--Pois então saia tambem. Ora essa!

--Ó santinha, não empurre.

--Ó filho, quem é que lhe faz mal?

--Por onde é que se quer metter, homem de Deus?

--Eu não sou menos que os outros.

--Que quereis vós d'aqui, canalhada?

--Não bata, que ninguem lhe tocou, seu velhote.

--Espera que eu te falo.

Estas e analogas vozes abafavam n'um rumor tumultuoso as agudas
declamações do «director do correio», o qual obrigou Henrique a passar
para dentro da teia, para se salvar das ondas populares.

Henrique estava achando igualmente curiosa a indignação do homem e a
alvoroçada anciedade do povo.

Ha de facto poucas scenas tão animadas, como a da chegada do correio e
da distribuição das cartas em uma terra pequena. Durante a leitura dos
sobrescriptos, feita em voz alta pelo empregado respectivo, um
observador, que estude attento as impressões que essa leitura opéra nos
semblantes dos que ávidos a escutam, como que vê levantar-se uma ponta
de cortina, corrida a occultar-nos as scenas da comedia ou da tragedia
da vida de cada um.

Que hora de commoções aquella, em que se abrem as malas, onde veem
encerrados porventura os destinos de tantas pobres familias! Quantas
vezes verdadeira boceta de Pandora, d'onde se espalham as desgraças e os
pezares!

Nas grandes cidades dispersam-se estas commoções; passam-se no recato
dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das vezes, em que teem
segurado com mão trémula na correspondencia, que o correio lhes traz; no
anciar do coração com que lhe rasgam o sêllo; nas lagrimas ou sorrisos
com que lhe interrompem a leitura; no irresistivel movimento de
desespero com que a amarrotam depois, ou nas expansões apaixonadas com
que beijaram o nome que a subscreve; lembrem-se d'isso, multipliquem
depois esses affectos todos, despojem-os das reservas que a etiqueta
impõe ás classes mais civilisadas, façam-os manifestarem-se n'um mesmo
momento e n'um mesmo logar, e digam se concebem muitas outras scenas, em
que mais sentimentos e paixões se agitem em lucta travada.

Chegou emfim o homem das cartas, e a custo conseguiu romper até ao
mostrador, onde pousou a mala. O «director», depois de tossir, de
assoar-se, de suspirar e de limpar os oculos com umas delongas, que
formavam com a anciedade do povo um contraste desesperador, abriu
fleugmaticamente o sacco, extrahiu um não muito volumoso masso de
cartas, que despejou n'um cesto de vime, e tomou apontamentos.

Era digno do pincel de um artista aquelle grupo de physionomias, que
seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Olhos e bôcas
abertas, mãos juntas, pescoços estendidos, a cabeça inclinada para
receber o menor som, tudo caracterisava profundamente a anciedade que
lhes dominava os animos.

Mestre Bento Pertunhas achou a occasião apropriada para dizer a
Henrique:

--Pois, senhor, eu nasci para artista. Quasi sem mestre aprendi a tocar
trompa e, não é por me gabar, mas prezo-me de tocar com certo mimo e
expressão.

Henrique volveu o olhar para o auditorio; apiedou-o a consternação
d'aquellas physionomias. Resolveu valer-lhe.

--Tem a bondade de vêr se ha alguma carta para mim?

--Ah! pois já as espera hoje?

--Não é provavel; porém...

Mestre Bento Pertunhas, em vista d'isto, começou em voz lenta e fanhosa
a leitura dos sobrescriptos.

Seguiu-se novo e não menos interessante espectaculo.

A cada nome proferido, erguia-se quasi sempre uma voz, ás vezes um
grito; estendia-se por cima das cabeças um braço, e, podemos
accrescentar ainda que se não visse, alvorotava-se um coração.

Outros, os não nomeados ainda, olhavam com anciedade para o masso, que
diminuia, e cada vez mais se lhes assombrava o semblante.

--Luiza Escolastica, do logar dos Cójos--lia mestre Pertunhas.

--Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem!--exclamou uma mulher
joven, apoderando-se ávidamente da carta.

--Joanna Pedrosa, de Serzedo--continuava elle.

--Aqui estou; será do meu Antonio, senhor?--disse uma velha, pobremente
vestida.

--Será do seu Antonio, será--respondeu o insensivel funccionario;--o que
lhe posso dizer é que traz obreia preta.

A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo
aquellas sinistras palavras. Apanharam-lh'a; e ella, tomando-a, saiu da
loja, a chorar lastimosamente.

--Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que ha de ser d'ella--disse
um dos circumstantes.

--Coisas do mundo!--respondeu outro.

Estes commentarios foram interrompidos pela continuação da leitura.

--João Carrasqueiro.

--Prompto, senhor--bradou um velho.

--A mezada, hein?--disse Bento Pertunhas, fitando-o por cima dos
oculos.--O rapaz não se esquece.

--Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom filho tem saido.

--D. Magdalena Adelaide de...

--É a morgadinha, é a morgadinha--disseram a um tempo muitas vozes.

--Agradecido pela novidade; era cá muito precisa a explicação--disse o
Pertunhas: e passando a carta para uma mulher, que era a encarregada de
fazer a distribuição a quem a podia gratificar, accrescentou:

--Leve-lh'a a casa.

E proseguiu:

--Augusto Gabriel...

--É o mestre-escola...

--Ora fazem o favor de estar calados! Esta... como elle vem por aqui...
pode ficar... ainda que... será melhor levar-lh'a a casa, leve, leve
tambem...

--João Cancella.

--É o João Herodes.

--Esse foi a Lisboa.

--Então, quando vier, que appareça.

--O tio Zé P'reira ficou de receber as cartas. É compadre d'elle.

--Eu não quero saber de compadrices. O tio Zé P'reira que se occupe com
o seu zabumba e deixe lá os outros.

A leitura mais ou menos acompanhada d'estes dialogos proseguiu,
redobrando de momento para momento a anciedade dos que iam ficando. Um
fundo suspiro, unisono, melancolico, expressivo de desalento, seguiu-se
á leitura do ultimo nome e ás poucas palavras, com que o funccionario
fechou a tarefa.

--E acabou-se.

Os que ainda estavam na loja sairam cabisbaixos, morosos e com tão má
vontade, como se ainda tivessem esperança de commover a inexoravel
sorte.

Henrique, ficando só com Bento Pertunhas, teve de lhe escutar ainda, por
muito tempo, a narração dos seus passados triumphos artisticos, das suas
amarguras presentes no magisterio, e das suas esperanças em
melhoramentos futuros. Entre as ambições mais inquietas do mestre, a de
obter o logar de recebedor de comarca, proximo a vagar por a morte
imminente do respectivo empregado, figurava em primeira linha.

Depois de varias tentativas, Henrique conseguiu deixar o seu
interlocutor, e continuou o passeio que este episodio interrompera, tão
satisfeito e distrahido, que nem apprehensões lhe causava a ideia de
trazer as botas humedecidas pelas hervas do caminho, ideia que, em outra
occasião, bastaria para o fazer doente.

Ladeava elle um campo, cingido de altas silvas, a procurar saida para a
deveza, da qual um fundo vallado o separava, quando lhe pareceu ouvir um
rumor de vozes, como de alguem, que conversasse perto d'alli.

Parou a certificar-se.

Não se enganára. Era do outro lado da sebe, e na deveza, para onde
tentava passar, que se estava falando.

Espreitou por entre as folhas do silvado que o encobria, e viu uma
scena, que lhe moveu a curiosidade.

Um grupo de creanças e de mulheres do povo escutavam em pleno ar e com
religiosa attenção, a leitura que uma senhora joven e elegante lhes
fazia das cartas, que ellas para esse fim lhe davam. A senhora estava
montada, não como romantica amazona, em hacanêa fogosa, mas modesta e
simplesmente n'um digno exemplar d'aquelles pacificos animaes, a que
Sterne não duvidou dedicar algumas palavras de sympathia nas suas
paginas mais humoristicas, e que Pelletan incluiu entre os
collaboradores da humanidade na grande obra do progresso, ou, deixando a
periphrase, em uma possante e bem apparelhada jumenta.

Á roda as ouvintes encostavam-se com familiaridade ás ancas e ao pescoço
do immovel quadrupede.

A leitora segurava no collo a mais pequena e a mais nua das creanças do
rancho.

Lia com voz agradavel e sonora; e, graças á serenidade da manhã e ao
socego do logar, ouviam-se distinctas, á distancia que ficava Henrique,
as palavras, que ella pronunciava lentamente, como para as deixar
penetrar bem na intelligencia do auditorio.

Henrique reconheceu muita d'esta pobre gente, por a mesma que, momentos
antes, vira na casa do correio.

Mas as suas attenções voltaram-se com especialidade para a leitora.

Era uma mulher muito nova ainda. Uma graciosa figura de mulher, suave,
elegante, distincta, um d'esses typos que insensivelmente desenha uma
mão de artista, quando movida ao grado da livre phantasia; a côr, essa
côr inimitavel, onde nunca dominam as rosas, mas que não é bem o
desmaiado das pallidas, encarnação surprehendente, a que ainda não ouvi
dar nome apropriado.

Os cabellos em fartas tranças, em ondas naturaes, não de todo pretos,
porém, mais distinctos ainda dos louros; a estatura esbelta, sem ser
alta, o corpo flexivel, sem ser languido; um vulto de fada, emfim, com a
magestade, com a graça que deviam ter estas creações da poesia popular,
se fôsse certo tomarem a fórma de virgens, para matar de amores.

Não se concebe attenção tão distrahida, que esta mulher não fixasse;
olhos, que se não voltassem para seguil-a, depois de a vêr passar;
coração, que não se perturbasse na sua presença.

Trajava um singelo vestido de xadrez branco e preto, adornado no collo e
punhos apenas por collarinhos lisos. Descaía-lhe natural e elegantemente
dos hombros um chale de casimira escura, sem lhe occultar as bellezas da
airosa conformação; o chapéo de palha de largas abas, cobrindo-lhe a
cabeça, espalhava pelo rosto as meias tintas, tão favoraveis ás bellezas
delicadas.

Henrique comprehendeu logo a significação da scena, a que, tão
inesperadamente, viera assistir. Aquella mulher parára alli, para ler a
essa gente pobre e ignorante, as cartas que haviam recebido do correio.

Tambem era caridade a acção, muito mais cumprida com o bom modo e com o
carinho com que ella o fazia.

Henrique applicou a attenção.

--...«E por isso, minha mãe»--lia ella--«se Deus me ajudar, espero
dentro em pouco ir a essa terra e darei remedio a tudo. E não me fale
vossemecê mais em vender o cordão e as arrecadas. Diga ao senhorio que
tenha paciencia, que eu satisfarei a tudo.»

Aqui a leitora parou para perguntar:

--Então que historia é esta das arrecadas, Anna?

--É, senhora, que o aluguer estava vencido...

--E não podia falar-me antes de se lembrar do seu filho?

--Ora, senhora, bem basta o que...

--Fez mal. Estar a affligil-o com estas coisas! Elle que precisa de toda
a coragem!

E continuou a ler a carta, no meio das lagrimas e das expansões de
alegria da ouvinte, mais interessada n'ella.

Acabando, deu um beijo na creança, que tinha ao collo, e estendeu a mão
a receber a carta, que outra mulher do grupo lhe passou. Esta era menos
de consolar. Não se falava alli senão de contratempos, de revezes e
desesperanças. Mais do que uma vez teve de suspender a leitura, para
mitigar a dôr e enxugar as lagrimas, que ella estava produzindo na pobre
mulher, a quem era dirigida.

Após esta, ainda outra e outra; uma do marido para mulher; outra de
filho para mãe; outra de noivo para noiva.

Foi com o riso nos labios e inoffensiva malicia nas inflexões da voz e
no olhar, que ella decifrou os mal legiveis caracteres, com que em papel
bordado, pintado e recortado, vinham expressos os mais arrebicados
conceitos amorosos, que ainda dictou uma paixão.

A noiva córava, sorria; mas, no meio da sua modesta turbação, era
evidente que estava exultando de jubilo.

Com esta terminou a leitura.

Henrique não resistiu a esboçar rapidamente o gracioso grupo na
carteira, que trazia comsigo. Não pôde, porém, deixar de dar-lhe um
sabor de idade média, substituindo a jumenta por um palafrem de pura
raça e dando á donzella, pelos trajes com que a desenhou, os ares de uma
castellã rodeada dos seus vassallos.

Não lhe bastou o natural do quadro, quiz revestil-o de um figurino de
convenção. Perdôe-lhe a arte, que julgou servir.

Depois de distribuir mais alguns beijos pelas creanças, a gentil
rapariga passou a que tinha no collo para os braços da mãe e partiu
rodeada de agradecimentos e bençãos, perdendo-a Henrique de vista, por
entre as arvores do caminho.

Aquelle typo delicado de mulher, aquella singeleza do apurado gôsto, em
que não podiam enganar-se olhos conhecedores, como os d'elle, aquella
preciosa perola alli na aldeia! em uma terra para chegar á qual era
necessario fazer uma comprida e laboriosa jornada! D'onde viera ella e
como? que nuvem a trouxera? que viração a transportára?

Em tudo isto ficou a pensar Henrique, e quando se lembrou de que podia,
para esclarecer-se, interrogar alguem do grupo, já não ia a tempo;
tinham dispersado.

Conseguiu finalmente passar para a deveza, e foi sentar-se no logar, em
que lhe apparecera a visão e ahi se demorou algum tempo; mas
lembrando-se de que eram quasi onze horas, levantou-se para não faltar
ás promessas feitas á tia Dorothéa, e que eram: a de visitar as senhoras
do Mosteiro e a de estar em casa pouco depois do meio dia, para não
transtornar a regularidade dos habitos domesticos em Alvapenha.

Pediu pois a uma creancinha que passava, que o guiasse á quinta do
Mosteiro, e ahi chegou depois de um quarto de hora de caminho.

 


IV


A casa do Mosteiro, com a quinta annexa á casa, como o dava a entender o
nome, pelo qual o povo a conhecia, tinha pertencido em tempo a uma ordem
monastica.

Era um d'estes conventos campestres, que hoje ou se encontram em ruinas
ou transformados em solar de alguma _notabilidade_ provinciana. Ao de
que falamos coubera o ultimo destino.

Incluido, depois do acto dictatorial de 1834, na lista dos bens
nacionaes, fôra, por insignificante preço, vendido a um modesto
proprietario das immediações, mais arrojado do que os vizinhos, ou mais
convencido da estabilidade da nova ordem de coisas politicas, que se
inaugurava no paiz.

E em tão auspiciosa hora lhe acudira aquella inspiração, que, em pouco
tempo, lhe restituia a quinta o capital empregado, regalando-o todos os
annos com não calculados juros, e elle, sem intermittencias, cresceu
d'ahi por deante em prosperidade a ponto de deixar, ao morrer, a familia
no numero das mais abastadas d'aquella terra.

A propriedade do Mosteiro, apesar de varios melhoramentos e reformas
effectuados n'ella, offerecia, ainda claros, muitos vestigios de seus
primitivos usos. Não era raro encontrar-se, aqui e alli, em pé uma cruz
de pedra marcando antigos logares de devoção; no alto de algumas portas
conservava-se visivel o emblema e divisa da ordem, ou restos de
inscripções latinas; nas paredes da arcaria, em que se apoiava a face
posterior do edificio, mantinha-se ainda um azulejo contemporaneo dos
frades; finalmente resistira a successivas reformações certo colorido
monastico, que só após muitos annos se dissiparia de todo.

Entrava-se para a propriedade por uma larga, comprida e magestosa álea
de sobreiros seculares, alcatifada de relva, que, sobretudo dos lados,
por pouco trilhada, crescia espêssa e verdejante. Abria-se, ao fim
d'esta rua, o alto portão do pateo.

Henrique, deixado só pelo guia ao chegar alli, foi caminhando
vagarosamente por esta avenida, dominado por a intima commoção e
sentimento quasi de temor, que se apodera de nós, em todos os logares a
que se ligam memorias do passado.

A phantasia estava-o transportando a tempos, a que não chegavam já as
suas recordações, ás épocas, em que, por entre estas arvores gigantes,
se via passar, como um phantasma, o habito escuro do monge, cuja sombra
o sol, ao declinar no horizonte, tantas vezes projectou, esguia e
estirada, ao longo d'aquella mesma avenida.

Impressionado por esta ordem de pensamentos, chegou Henrique ao portão,
transpondo o qual se introduziu no pateo. Era um largo terreiro de
perfeita fórma rectangular, limitado ao fundo pela fachada da casa, e
lateralmente por elevadas paredes, armadas á maneira de pannos de Arrás,
com tapeçarias de vigorosas heras. A cada uma das paredes encostavam-se
dois tanques de vasta capacidade.

No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as feias e enormes carrancas
de todos estes quatro tanques grossos jorros de fresca e purissima agua;
porém as medidas economicas do ultimo proprietario e as exigencias dos
seus projectos agricolas haviam derivado para outros fins, parte d'esta
abundante veia, de maneira que tres d'aquellas bacias estavam agora
completamente a sêcco.

Os fetos de folhas recortadas, as pegajosas parietarias, os funchos
odoriferos, havia muito que tinham invadido a bôca dos encanamentos
inuteis onde encontravam asylo imperturbado lagartos, aranhas e
myriapodes, e se estabeleciam pacificas colonias de caracoes.

A fachada do ex-mosteiro nada tinha de notavel pelo lado architectonico.
A arte não tivera fadigas, ao concebel-a; o cinzel pouco se embotára a
executal-a; nem uma columna singela, nem um florão, nem um tympano lhe
davam a menos pretenciosa apparencia monumental. Imagine-se uma vasta
casaria de um andar além do terreo, com muitas janellas de peitoril e
uma só varanda de pedra sobranceira á porta principal; acima do telhado,
uma especie de agua furtada, de construcção evidentemente posterior e
aconselhada aos proprietarios modernos por conveniencias de accommodação
domestica; e ter-se-ha concebido o edificio.

Emquanto Henrique se occupava a examinar estas particularidades, um
velhito, que, sentado em um banco de pedra, que havia á porta de casa,
se estava aquecendo ao sol, ergueu-se e veio ao encontro do
recem-chegado, tossindo e arrastando os passos.

Junto de Henrique, o velho, de apparencia meia rustica, meia urbana,
depois de o saudar com grave cortezia, que deixou a descoberto o
_solideo_ fradesco com que resguardava a fronte calva, perguntou se
havia alguma coisa, em que o pudesse servir.

Ouvindo, depois de repetida, a resposta de Henrique, que disse procurar
as senhoras, com nova cortezia lhe fez signal para que o acompanhasse, e
ambos atravessaram o pateo em direcção da casa.

No portal o velho afastou-se de lado com toda a deferencia para deixar
passar Henrique; em seguida abriu-lhe a porta de uma primeira sala, e,
voltando-se, pediu-lhe para que lhe dissesse quem havia de annunciar.
Henrique deu-lhe para esse fim um bilhete de visita, cuja significação
teve de explicar, porque o velho não a comprehendia bem.

A final porém retirou-se por outra porta, levando o bilhete.

A sala, em que Henrique ficou esperando, era toda mobilada com pesadas
cadeiras de couro lavrado e alto espaldar, mesas de pés em espiral, e
pelas paredes alguns ennegrecidos retratos de frades, pertencentes
provavelmente aos antigos proprietarios do mosteiro.

No momento em que o velho servo, que era uma especie de feitor honorario
da casa, abriu outra porta da sala, para ir annunciar á familia a visita
de Henrique, chegaram aos ouvidos d'este, de mistura com um tinir de
louças e de crystaes, as vozes e risos de creanças, que falavam ao mesmo
tempo. Com a entrada do velho produziu-se um certo silencio, e após uma
voz de mulher, de timbre fresco e agradavel, disse audivelmente e como
em resposta ás palavras do criado:

--Ora as etiquetas com que esteve, Torquato! Mande entrar para aqui.

O feitor parece que resmoneou não sei o quê, a que ainda a mesma voz
redarguiu:

--O que não é bonito é fazel-o esperar. Ande, vá.

Torquato--chamemos-lhe assim, visto que assim lhe chamaram--appareceu
outra vez e fez signal a Henrique, de que o esperavam na sala immediata.

Henrique que presentiu ir achar-se na presença de uma mulher nova e
porventura bonita, correu, com instincto de perfeito homem de côrte, os
dedos pelos cabellos, afagou o bigode, ageitou rapidamente o laço da
gravata e entrou.

Era completo o contraste d'este aposento com o primeiro; transpondo
aquella porta dissipava-se todo o perfume antigo, todo o caracter de
vetustez, que até alli reinava em tudo. Era moderno o estuque do tecto,
modernissimo o papel que forrava as paredes, e a mobilia toda de um
cunho de actualidade, visivel aos olhos menos pesquizadores. Como para
tornar mais frizante o contraste, a presença do velho feitor estava aqui
substituida por a de duas creanças, a mais velha das quaes mal passaria
dos seis annos.

O reposteiro, que caiu atraz de Henrique, foi como que uma cortina
corrida sobre o passado. A porta, que elle transpuzera, a barreira que
separava dois seculos.

Sentadas no tôpo de uma longa mesa de jantar, coberta de louça fina
ingleza, estavam as duas creanças que dissemos, com os seus babeiros
brancos e tendo cada qual defronte de si um prato de odorifera sôpa. Em
pé, á cabeceira, presidia ao _lunch_ infantil uma mulher, de quem
Henrique só pôde notar vagamente os contornos geraes do corpo e não as
particularidades das feições, porque, ficando voltada de costas á luz
das janellas, velavam-lhe o rosto umas meias sombras, que não favoreciam
o exame.

Ao vêr entrar Henrique, ella disse-lhe jovialmente:

--Na aldeia a sala de recepções é aquella em que a gente se acha, quando
lhe annunciam uma visita. É assim pelo menos que eu comprehendo o viver
do campo.

--E é assim que eu o aprecio, minha senhora--respondeu Henrique,
approximando-se da mesa.

As creanças, interrompendo a refeição, fitavam o recem-chegado com
aquelles olhos espantados e penetrantes, com que ellas, promptamente, e
quasi sempre com a certeza de um verdadeiro instincto, decidem para si
das sympathias ou antipathias de que lhes é merecedor um estranho, a
quem vêem pela primeira vez.

A mulher, que presidia ao banquete, não suspendeu com a entrada de
Henrique a occupação domestica, na qual estava empenhada. Mostrava
receber-lhe a visita com um perfeito «á vontade», que nada tinha porém
de affectado.

--Não sei se v. ex.^a sabe...--ia dizendo Henrique, quando, ao chegar
perto d'ella, parou subitamente em meio da phrase.

Na mulher, que estava deante de si, reconheceu a leitora da deveza, a
interessante rapariga, que tanto o preoccupára.

Era ella, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora
melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a fronte de um
primoroso modelo, e os cabellos penteados com tanta graça como
singeleza. Em vez do longo chale de casimira, trazia agora uma especie
de jaqueta, curta e larga, apertada por alamares, de fórma pouco mais ou
menos similhante á que, na nomenclatura das modistas, nomenclatura quasi
sempre absurda, e de mau gôsto, teve depois a impropria e desastrada
denominação de _zuavo_!

A surpreza de Henrique não passou despercebida a quem era causa d'ella e
que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.

--Perdão, minha senhora--disse Henrique, comprehendendo aquelle
gesto--mas ignorava que vinha encontrar aqui uma pessoa, que já me não
era estranha.

--E sou eu essa pessoa?

--É v. ex.^a effectivamente.

--Pois já nos vimos?

--Já... quero dizer, eu já vi v. ex.^a

--Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra de o ter
visto nunca. Apesar d'isso sei que é o sr. Henrique de Souzellas,
sobrinho d'aquella boa senhora de Alvapenha, a tia Dorothéa; não é
verdade?

--Eu proprio. O conhecimento que tenho de v. ex.^a não é antigo tambem;
data de algumas horas apenas.

A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contrahiu levemente as
sobrancelhas bem desenhadas, fez um movimento de labios e deu á cabeça
uma ligeira inclinação sobre o hombro, d'onde resultou para aquella
gentil physionomia a mais adoravel expressão de estranheza, que pode
animar um semblante de mulher.

--Esta manhã--proseguiu Henrique, a quem os encantos d'aquelle gesto não
tinham passado despercebidos--assisti a uma scena commovente. O logar
era uma deveza; uma joven senhora... joven e... e com outras qualidades,
além d'esta, para excitar attenções, lia, em voz alta, as cartas que
algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio...

Ella não o deixou continuar.

--Ah! entendo agora. Viu-me? Já andava por fóra? Não o suppunha assim
madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que é indiscreto... Não
admira, habitos da cidade. É verdade, é. Aquella gente encontrou-me no
caminho quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me
deixou sem que eu lhe abrandasse a ancia de coração que a affligia.
Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me, já pensou no supplicio que
deve ser olhar a gente para uma folha de papel escripta, na qual sabemos
que se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquelle
enygma? Que martyrio! Eu por mim, confesso que me falta o animo para
recusar pedidos d'aquelles, como me faltaria para negar uma gotta d'agua
ao desgraçado que visse a morrer de sêde. A crueldade seria quasi igual.
Não lhe parece?

Henrique formulou um galanteio, que ella porém não ouviu, entretida já a
escutar o que uma das creanças lhe dizia.

--Lena, olha a Annica, que está a deitar a sôpa d'ella no meu prato.

--Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ella que primeiro a deitou no meu.
Não tem vergonha de mentir!

--Então--disse Magdalena, que a este nome correspondia a contracção
familiar, de que se serviam as creanças.--Olhem agora se teem juizo.
Vejam se querem que eu vá dizer á mamã que venha para aqui.

--Não é ella a mãe, visto isso--pensou Henrique, como quem modificava
uma opinião que concebera antes e folgava com a modificação.--Será irmã?
Talvez... Ou mestra... É mais provavel que seja mestra. Esta mulher foi
de certo educada na cidade. Tem uns ares distinctos...

E elevando a voz:

--V. ex.^a está-me recordando uma scena de um precioso livro, que nunca
me canço de ler.

--Qual é?

--Werther.

--Ah!

--Conhece?

--Conheço... quero dizer, li-o, por acaso, ha pouco tempo. Compara-me a
Carlota? É por estar a distribuir as rações d'estas creanças? Que mulher
ha que não seja Carlota, n'essa parte? Em todas as casas se passa uma
scena assim. Bem se vê que não tem familia.

--Por quê?

--Por lhe fazer tanta sensação o espectaculo d'esta.

--É certo--respondeu Henrique com melancolia.--Deve ser essa uma das
causas; mas não a unica--accrescentou galanteadoramente.

E, de si para si, estava encantado de saber que a sua interlocutora
tinha lido Werther.

Magdalena, para mudar de conversa, perguntou-lhe:

--Então que lhe parece esta nossa aldeia?

--Um jardim. Hontem, ao chegar, confesso que me foi desagradavel a
impressão recebida. Nem admira; a noite, o frio, a chuva, o cansaço.
Esta manhã, porém, a transformação foi completa. Estou encantado,
fascinado! N'uma palavra, minha senhora, eu, cidadão em corpo e alma,
reconciliei-me em poucas horas com a vida do campo.

--Desconfie da mudança rapida. Habitos radicados, qualidades ou defeitos
de educação não se perdem assim depressa. Alguns dias aqui, e suspirará
por Lisboa outra vez.

--Talvez não. Hoje estou até em acreditar que tinha razão o doutor, que
me prometteu a cura das minhas doenças, se me costumasse devéras a estes
habitos campestres.

--Ai, prometteram-lhe isso? E espera costumar-se?

--Por que não? Hoje já almocei ás sete horas, já andei mais do que uma
semana inteira ando em Lisboa. E inda tenho por vêr as raridades da
terra.

--As raridades?! E que raridades são essas que inda tem para vêr? A
nossa pobre aldeia não lhe merece essa ironia.

--Então acha tão pouco curiosa esta terra? Do quasi nada que d'ella
observei esta manhã, parece-me até...

--Ai, se fala da natureza, é outra coisa. A cada passo se encontra um
ponto de vista, que nos obriga a uma exclamação. Mas ha por ahi certos
cicerones, que insistem em mostrar aos hospedes as bellezas da arte.
Peça a Deus que o livre d'esse flagello.

--V. ex.^a assusta-me. Embora; se lhes cair nas mãos, farei por achar
curioso o que elles acharem. Vae ser esse o meu systema de cura.
Interessar-me por tudo o que a um homem da aldeia interessa. Foi o
regimen que me prescreveu o medico, quando me receitou o campo, a titulo
de emolliente; se o seguir, salvo-me.

--E não o diga a rir. Se quizer prender-se á aldeia, abjurar os
attractivos da cidade, deve rustificar-se em tudo; principiar por
cultivar o interesse por as questõesinhas da terra; deve, por exemplo,
declarar-se pelo abbade contra a junta de parochia ou pela junta de
parochia contra o abbade; ralhar do regedor na questão com os
taberneiros ou defendel-o. Emquanto não chegar a isso, desconfie da sua
acclimação.

--Farei por conseguil-o o mais depressa possivel. Outra coisa necessaria
é deixar-me convencer ingenuamente dos inexcediveis dotes de espirito
das notabilidades da terra, o que é de rigor; estar em perpetua
admiração deante de uns certos nomes famosos que ha sempre em todas as
terras pequenas, e que nos atiram á cabeça a cada momento. Por exemplo,
aqui já sei de um, com que encherei a bôca a proposito de tudo; é o de
uma celebre morgadinha dos Cannaviaes, pessoa em quem ouço falar, desde
que puz os pés, ou por mim a alimaria que me trouxe, n'este productivo
torrão.

Magdalena sorriu de uma maneira singular, ouvindo isto.

--Então com que, tem ouvido falar muito n'essa morgadinha?

--Oh! mas não faz ideia; de uma maneira desesperadora. Não ha pinhal,
quinta, azenha, choça ou lameiro que não pertença a essa entidade, para
mim desconhecida. Este nome anda-me já nos ouvidos, como um estribilho
de cantiga popular; na estrada, nos campos, em casa de minha tia, na
loja do correio, em toda a parte o ouço pronunciar. Parece que voga nos
ares.

--Isso deve ter-lhe excitado a curiosidade de conhecer a pessoa.

--Qual! tem-me impacientado a ponto de nem perguntar por ella. E demais
parece-me que a estou a vêr.

--Ora diga. Então como a imagina? Annica, não tens ahi um guardanapo?

--Como a imagino? Imagino-a uma morgada, e está dicto tudo; uma senhora
nutrida, a rever saude por todos os póros, encarnada como uma romã,
sobre quem os vestidos á moda assentam como pendurados de um cabide, as
mãos cheias de anneis, meias luvas de retroz, um chapéo com uma
cercadura de rendas, pousado no cocoruto da cabeça... V. ex.^a ri-se?
Acertei?

--Parece-me que sim; mas julgue-o por si já que tem á vista o original.

--Como?!

--A morgadinha dos Cannaviaes, sou eu.

--Vossa Excellencia!...

Henrique de Souzellas, apesar do seu uso do mundo, esteve por muito
tempo sem saber como sair da situação em que se puzera.

Magdalena ria com toda a vontade; os pequenos riam, por contagio, sem
saberem de quê. Tudo augmentava pois a confusão de Henrique.

--Ora confesse--insistia cruelmente Magdalena--confesse que o está
lisonjeando a exactidão das suas conjecturas.

Henrique teve emfim uma lembrança. Tirou do bolso a carteira, em que,
horas antes, esboçára rapidamente a figura esbelta da morgadinha,
rodeada das mulheres do povo, e mostrando-lh'a, disse:

--Veja v. ex.^a se esse esboço, apesar da sua imperfeição, está de
accordo com a estupida concepção, que eu formára.

Magdalena lançou a vista para a carteira e sorriu.

--Ah! desenha?

--Quando os modelos tentam, tenho d'essas ousadias. Os resultados são
lastimosos, como estes. Perdôe-me o original, que julguei possivel
copiar, o desacato, mas...

Magdalena fitou em Henrique um olhar penetrante.

--Isso que diz sabe-me a um galanteio. Devo advertil-o de uma coisa, sr.
Henrique de Souzellas. Não ha nada tão mal empregado como uma fineza no
campo. Tudo quer o seu logar. Em Lisboa talvez o achasse pouco
delicado... ou pelo menos pouco amavel, se me não dirigisse d'essas
phrases conceituosas e bonitas. Vive-se d'isso lá. Aqui acho-as
affectadas e inuteis... Que quer? Influencias da scena. Ha tanta
semceremonia no campo! Aqui todos nos tratamos como parentes: ha de vêr.
Não repara como eu o recebo n'uma sala de jantar, sem nem sequer tirar
os babeiros a estas creanças? Olhe lá que fizesse o mesmo em Lisboa...

--Então v. ex.^a já lá esteve?

--Eu nasci lá e lá me eduquei.

--Ah! bem se vê.

--Ah? Ahi está um _ah_, que eu desejaria muito que me explicasse.

--Não me será difficil fazel-o. É que antes já de ouvir falar v. ex.^a,
só ao vêr certa distincção, certa elegancia de maneiras, conjecturei...

--Basta. É um _ah_ portanto, que tem umas poucas de más qualidades.

--Devéras? Uma interjeição tão innocente!

--Pelo contrario, é a voz mais perfida e inconstante da nossa lingua;
tudo exprime, a hypocrita. O seu _ah_ é vaidoso, adulador e iniquo pelo
menos. Pela vaidade castigue-o algum resto de modestia que ainda se
abrigue no seu coração lisbonense; a adulação competia-me castigal-a,
mas perdôo-lh'a porque quero ainda suppôr que é um symptoma da doença
das cidades, a meu vêr, a principal doença, que o obrigou a procurar a
aldeia; da iniquidade, da injustiça, que faz á educação que se pode dar
na provincia, ha de convencer-se dentro em pouco, quando eu lhe
apresentar minha prima Christina, uma rapariga, que tem vivido aqui
sempre e que protesta contra essa sua opinião; possue tudo quanto pode
dar de bom a educação das cidades, e, o que mais vale, aquillo que lá é
tão facil perder-se depressa, uma candura adoravel. É a irmã mais velha
d'estas creanças--accrescentou, pousando a mão na cabeça dos pequenos,
que comiam e conversavam um com o outro.

--Mas v. ex.^a...

--Perdão. Outra coisa. Já agora que entrei no caminho das admoestações,
permitta-me mais uma, antes de perder o ar grave, que hei de por força
ter. Não me sôa bem o impertinente tratamento de excellencia, que me dá.
Essa excellencia está a pedir-me uma senhoria, pelo menos, e,
confesso-lhe ingenuamente que me custaria a voltar na lingua uma palavra
tão comprida.

--Como quer então que a trate?

--Eu sei?... Olhe, uma ideia! Ha pouco não me comparou á Carlota de
Goethe? Deixe-me pois adoptar uma lembrança d'ella. Está certo de que
tratou o Werther por primo, a primeira vez que lhe falou? É um
tratamento como outro qualquer; e entre nós mais justificado, porque
sendo o sr. Henrique sobrinho direito de D. Dorothéa, e teimando minha
tia Victoria, a mãe d'estes pequenos e de Christina, que D. Dorothéa é
ainda uma especie de nossa tia arredada, e como tal a tratamos, nós a
final de contas vimos a ser uma especie de primos tambem. Pelo menos
assim o sustentou e decidiu hontem minha tia Victoria; e ha de vêr como
por primo o tratará! É um tratamento menos incómmodo; eu chamar-lhe-hei
primo Henrique; chamar-me-ha, se quizer, prima Magdalena, e
desterraremos para sempre a antipathica senhoria e excellencia;
concorda?

--Acceito e acho deliciosa a proposta. Adoptamos o principio falso,
admittido pela fidalguia em Portugal, de que «os primos dos nossos
primos, nossos primos são.»

--Fica pois ajustado?

--Fica ajustado.

--Bem. Mas que ia dizer ha pouco?

--Nem eu já sei... Ah!... Perguntava se tinha estado muito tempo em
Lisboa e o que a obrigou a vir viver para aqui.

--Isso é nem mais nem menos do que pedir-me a historia da minha vida.
Seja; é um sacrificio inevitavel a quem se vê pela primeira vez.
Deixe-me primeiro attender a estes pequenos, que eu principio.

E, depois de partir a cada creança uma fatia de queijo, a morgadinha
principiou:

--A historia é curta e sem peripecias, tranquillise-se. Eu sou filha de
Manuel Bernardo de Mesquita e...

Este nome era o de um dos principaes vultos politicos da época, e que
então militava no campo opposicionista, sendo indigitado para ministro
na primeira reforma ministerial, homem influente, de grande capacidade
politica, tendo sempre advogado no parlamento as ideias mais liberaes, e
militado no partido progressista.

Henrique de Souzellas, que conhecia todas as personagens de importancia
no paiz, fitou Magdalena com olhar estupefacto: tão longe estava de
encontrar alli a filha de um futuro ministro.

--Filha do conselheiro Manuel Bernardo! V. ex.^a?

--Excellencia! Esquece-se da nossa convenção? Repare! É verdade. Não
sabia que meu pae era d'aqui? Eu e meu irmão Angelo, que estuda
actualmente n'um collegio em Lisboa, somos os unicos filhos de meu pae.
Nasci, como disse, em Lisboa, mas as continuas enfermidades de minha mãe
fizeram-nos vir para aqui viver na companhia d'ella; aqui mesmo morreu,
e aqui está sepultada. O Angelo nasceu já n'esta casa. A morte de minha
mãe deixou-me orphã aos doze annos, e incompleta a educação que ella
principiára a dar-me e para a qual, se vivesse, ella só bastaria. Fui
pois obrigada a voltar a Lisboa, onde continuei com mestra a minha
educação. Mas, ao chegar á idade dos quinze annos, receiando meu pae que
os ares da cidade desenvolvessem em mim germens de molestia, que
porventura tivesse herdado, mandou-me outra vez para aqui, onde sempre
passava alguns mezes no anno, e para onde me chamavam tambem habitos
adquiridos em creança. Eu sou muito aldeã. Para aqui vim pois. A morte
de meu tio, passado pouco tempo, impressionou profundamente a minha tia
Victoria, que ficou desde então um pouco... um pouco... com pouca
paciencia para olhar por as coisas domesticas. Isto creou-me novos
deveres; havia aqui muitas creanças, estas duas, outras que estão lá
dentro, e Christina, que era então creança tambem; occupei-me a ajudar
minha tia.

--E tão admiravelmente, que a mais carinhosa mãe o não faria melhor.

--Dou-me bem com as creanças, dou. E a meu pae devo, em parte, o ter
aprendido cedo esta sciencia. Porque é uma sciencia tambem.

--Então como procedeu o conselheiro para a ensinar?

--Eu lhe digo. Meu pae tem em certas coisas umas ideias muito
singulares. Excellentes as acho eu. Oh! não imagina que boa e excellente
alma é a de meu pae! Era eu uma creança, tinha onze annos, talvez,
quando elle, um dia, vindo de Lisboa passar aqui algum tempo comnosco,
me trouxe uma boneca, realmente bonita; uma maravilha de Nuremberg. Nos
primeiros dias não me fartava de a vêr, de a beijar, até commigo a
deitava. Oito dias depois succedia o que era de esperar, já nem d'ella
sabia. Meu pae notou-o.--Então, Lena--aqui todos me chamam assim--já não
gostas da tua boneca?--Disse-lhe eu: Gosto, mas...--Bem sei, já fizeste
tudo o que tinhas a fazer por ella, e como, pela sua parte ella nada faz
por ti, enfastias-te, canças-te de conceber, a cada momento, brinquedos
novos. Tens razão; onze annos já não é idade em que o interesse se
sustente com tão pouco, é necessario mais. Ora dize-me, Lena,--continuou
elle--se eu te mandasse vir uma boneca que movesse os braços e os olhos,
que te sorrisse, que chorasse tambem, que te beijasse até...--Pois ha
bonecas assim?--perguntei eu, admirada.--E desejaval-a?--Oh! se a
houvesse!...--Trago-t'a ámanhã. Não dormi aquella noite a pensar na
boneca. No dia seguinte apresentou-me meu pae uma creança de um anno,
orphã de uma pobre familia, que uma epidemia extinguira, e
disse-me:--Ahi tens a boneca que te prometti, Lena; vou confial-a aos
teus onze annos. Veremos se tens juizo para brincares com ella. É assim
que eu quero que aprendas os deveres de mãe, que é a verdadeira sciencia
apropriada a mulheres. E o que é certo é que eu, dissipado o desgosto
dos primeiros momentos, porque o tive, confesso, costumei-me a querer
áquella pobre creança, fui avara nas suas caricias, troquei por ella
todos os meus brinquedos, e senti-lhe do coração a morte, quando, um
anno depois, ella me expirou nos braços. Quando fui para Lisboa, já ia
educada para amar creanças.

Magdalena contára tudo isto naturalmente, sem a menor affectação, sem
deixar até de attender aos primos, o que augmentava o interesse com que
a escutava Henrique.

--E assim fica sabendo quem é a morgadinha dos Cannaviaes--concluiu
ella, desatando o babeiro das creanças, que tinham terminado o _lunch_.

--É verdade, mas d'onde lhe vem este titulo singular, prima
Magdalena?--perguntou Henrique, tomando ao collo uma das creanças, que a
morgadinha pousou no chão.

--É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha
madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui
perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa;
chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e,
sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d'ahi começaram a
chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo
quanto possuia; n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que
sou proprietaria ainda. Foi uma como confirmação do titulo, que já desde
creança me tinham dado; e para todos sou aqui a morgadinha, titulo na
verdade pouco elegante e que tão mau conceito fez conceber ao primo
Henrique da possuidora d'elle.

--Retracto-me, prima Magdalena; agora que sei a pessoa a quem elle
pertence, parece-me outro. Acho-o bonito, gracioso...

--Vamos, vamos. Confesse que o titulo não é dos mais romanticos e que,
de boa vontade, escreveria outro nome debaixo do desenho de phantasia
que ahi fez, da mesma maneira que deu á humilde e fiel jumenta, que eu
montava ha pouco, a conformação e orelhas elegantes de um palafrem, e
quasi me transformou em uma amazona ingleza.

Henrique respondeu, sorrindo:

--Na impossibilidade de reproduzir as graças naturaes, soccorri-me ao
expediente das bellezas de convenção. Confesso o meu deploravel erro.

--Olhe que não estamos em Lisboa, primo Henrique. Repare para essas
arvores e refreie o sestro galanteador, com que está.

--Por quem é! Não leve o rigor a tal extremo. Tão injusta é comsigo, que
se recuse a acceitar, como naturaes e sinceras, as phrases que a sua
presença inspira?

--Ai, meu Deus, como refina! Veja como essa creança, que tem no collo, o
está encarando com os olhos espantados. Se ella nunca ouviu falar assim
aqui!

Henrique beijou as faces da creança, movimento em que não ia uma
intenção menos lisonjeira do que nas phrases que dissera, porque elle
percebia que Magdalena era extremosa pelos seus pequenos primos.

Abriu-se, n'este meio tempo, a porta da sala, e entrou, saltando, outra
creança mais crescida, mas ainda de vestidos curtos, trazendo na mão uma
folha de papel.

--Lena--dizia ella em alta voz.--Olha; queres vêr o que o sr. Augusto só
me emendou hoje no thema francez?

Chegando ao meio da sala, parou a olhar com estranheza para Henrique.

--É o sr. Henrique de Souzellas--disse Magdalena.--O hospede da tia
Dorothéa. Esta é Marianna, outra de minhas primas--accrescentou,
voltando-se para Henrique.--Já vê que não faltam creanças n'esta casa; e
ainda ha mais. É o que lhe dá o ar alegre que tem.

Marianna cumprimentou Henrique e não se constrangeu por mais tempo;
mostrando á prima a composição que o mestre lhe emendára, disse:

--Ora vê que não tive muitos erros.

Magdalena sorria, examinando o thema.

Henrique ia a fazer não sei que pergunta a Marianna, quando á mesma
porta, por onde ella entrára, appareceu o mestre, de quem se falava.

Augusto, que assim se chamava o recem-chegado, era um rapaz de pouco
mais de vinte annos de idade; de rosto pallido e physionomia
intelligente.

Ninguem adivinharia n'aquelle typo um mestre-escola de aldeia.

Trajava com simplicidade, porém com asseio e gôsto, e havia em toda a
sua figura certo ar de distincção, que feria quem pela primeira vez o
visse.

N'um leve pendor de cabeça, no olhar penetrante e fixo, e nos labios,
como habituados a fecharem-se á saida dos pensamentos intimos, lia-se o
caracter pouco expansivo d'aquelle adolescente.

Magdalena dirigiu-lhe a palavra, em tom de manifesta deferencia.

--Como vão os seus discipulos, sr. Augusto?

--Optimamente, minha senhora--respondeu o interrogado.

--O sr. Augusto--disse Magdalena, apresentando-o a Henrique--o primeiro
mestre de meu irmão Angelo e hoje mestre de Marianna e Eduardo.

--Esquece-se, minha senhora,--accrescentou Augusto--que de Angelo sou
discipulo tambem, e mais discipulo do que fui mestre.

--Do que me esqueci, e, a falar a verdade, não devia, foi de que de
Angelo é effectivamente mais do que mestre, é amigo; assim como de todos
nós. Este senhor--continuou ella, concluindo a apresentação--é o senhor
Henrique de Souzellas, que se esperava em Alvapenha; é ainda nosso
primo.

Os dois cortejaram-se com affavel delicadeza.

--Teve carta de Angelo?--perguntou em seguida a morgadinha.

--Não recebi ainda o correio de hoje.

--Nem nós; e é de estranhar que meu pae pelo menos não me escrevesse!
Angelo não virá passar a festa comnosco? Pobre rapaz! Parece que renasce
quando se vê aqui. É uma perfeita creança então.

Eduardo, outro primo de Magdalena, que Henrique ainda não vira, entrou
n'este momento na sala, trazendo um masso de cartas na mão. Depois de
cumprimentar Henrique, a quem Magdalena o apresentou, disse para
Augusto:

--A mamã deu-me essas cartas para o sr. Augusto escolher d'ahi aquellas
que eu pudesse ler.

--Eu verei devagar--disse Augusto, guardando-as n'uma pasta que trazia.

--Ah! já temos o Eduardo a ler cartas!--disse a morgadinha, afagando o
primo.

--Pelo que vejo--disse Henrique de Souzellas, vendo Augusto em
disposições de partir--tem uma vida muito occupada?

--E tanto que sou obrigado a pedir licença para me retirar. Tenho de ir
esta tarde a casa do Seabra...

--Ai, lecciona ainda as pequenas do brazileiro?--perguntou Magdalena.

--Ainda, sim, minha senhora.

--E como vão essas mulatinhas?

Augusto encolheu os hombros, sorrindo; gesto que não devia lisonjear a
vaidade do sobredicto brazileiro, se tomasse a peito os dotes
intellectuaes das referidas mulatinhas.

Passados segundos, Augusto retirou-se, apertando a mão a Magdalena que
familiarmente lh'a estendeu, e a Henrique, que a imitou.

--Ia apostar que vae alli uma intelligencia--disse Henrique ao vêl-o
sair--algum d'esses grandes espiritos, que vivem e morrem ignorados e
improductivos, porque os não aquece o sol do favor publico, nem os
bafeja a aura da moda caprichosa. É terra de maravilhas esta, ao que
estou vendo.

--É um rapaz intelligente, é--disse a morgadinha--e uma alma generosa.
Desde tenra idade costumou-se a trabalhar. Não tem familia. O pae foi um
pobre e honrado advogado de um logar perto d'aqui, que morreu quasi na
miseria, deixando-o por educar. A mãe, que era d'estes sitios, para ahi
veio, depois que viuvou. Elle tem sido, pode dizer-se, mestre de si
mesmo. Dirigiu os primeiros estudos de Angelo e hoje é o seu melhor
amigo. A morgada, minha madrinha, legou-lhe um patrimonio para elle se
ordenar: não quiz, e preferiu ser mestre-escola. Meu pae, que lhe
reconhecia intelligencia para mais, tentou dissuadil-o d'isso, mas nada
conseguiu. Não ha quem o arranque d'estes sitios.

--Prende-o talvez alguma paixão?

--Não sei. É certo que é um professor modelo. O seu primeiro despacho
foi temporario; agora, porém, espera meu pae fazel-o effectivo; para o
que já elle fez novo concurso. Já vê que ambições são as d'este rapaz.

--Na verdade! com muito menos fundamentos ha quem aspire a ser ministro.
Mas com certeza o coração entra como elemento no problema d'esse
caracter.

--Mas ainda agora reparo!--exclamou a morgadinha--eu esquecida a
conversar, e sem avisar a minha tia e Christina da sua chegada! Não o
fiz logo, porque as sabia occupadas em umas longas novenas, em que
andam; mas agora é tempo. Vae, Marianna, e tu, Eduardo; ide ambos
dizer-lhes que está aqui o... o primo Henrique de Souzellas.

Marianna e o irmão sairam a correr.

--Vae conhecer duas boas almas--disse Magdalena, voltando-se para
Henrique--minha tia é uma santa senhora, cujo peor defeito é suppôr-se
victima dos criados; e Christina... Christina é um anjo.

 


V


Henrique de Souzellas sentia-se cada vez mais penetrado da sympathia,
que logo á primeira vista, aquella mulher lhe despertára.

Havia na morgadinha um mixto de candura e de ironia, certa delicada
reserva fluctuando, como uma sombra diaphana, na conversa familiar, a
que tão espontaneamente se dava; um visivel conhecimento dos usos e
etiquetas sociaes, e ao mesmo tempo uma coragem para cortar por elles,
como quem se sentia sobranceira a toda a ousadia, inaccessivel ás
suspeitas dos mais atrevidos: havia tantos enygmas n'aquella sympathica
indole feminina, que poucos seriam impassiveis deante d'ella.

A pensar n'isto se ficou Henrique de Souzellas, calado, immovel,
absorto, seguindo com os olhos os movimentos de Magdalena, que, sem o
menor constrangimento, proseguia nas suas occupações domesticas.

Ouviram-se finalmente passos e vozes de differentes timbres na sala
immediata.

--Ellas ahi veem--disse a morgadinha.

De feito, precedidas por Marianna e Eduardo, entraram na sala D.
Victoria e Christina.

A mãe vinha dizendo:

--É o que eu digo... Não que vocês não querem crer! Ora vejam se isto se
atura... se isto não é para metter uma pessoa no inferno!... Não tem que
vêr!... Não ha ninguem que mais dinheiro gaste com criados e que seja
tão mal servida como eu!... Eu só queria saber o que fazem os criados
d'esta casa? Sim, só queria que me dissessem o que elles fazem, esse
bando de mandriões!... Elle é o Torquato, elle é o Luiz, elle é o
Damião, elle é a Ermelinda, elle é a Rosa, elle é a Violante... e não
havia um só que me viesse dizer que tinha chegado o primo! É forte
coisa!... Compromettem uma pessoa! Então como está?--accrescentou ella,
mudando de tom para cumprimentar Henrique, a quem estendeu a mão.

Magdalena, ao ouvil-a, tinha já trocado com este um olhar malicioso.

Henrique correspondeu delicadamente á saudação das senhoras e procurou
justificar os criados.

--Não m'os desculpe,--atalhou D. Victoria, elevando outra vez o tom de
voz--aquillo é de proposito para fazerem ficar mal uma pessoa; ninguem
me tira isto da cabeça... Aquillo é de proposito!

--Mas a mamã não vê que as criadas estavam comnosco á novena?--lembrou
timidamente Christina.

--Pois que não estivessem. Quem tem serviço a fazer não pode ouvir
novenas.

--Mas se a mamã é que as mandou!

--Pois sim... pois sim... mas... mas ellas é que me deviam dizer que
tinham que fazer. Então eu é que lhes hei de estar a lembrar as suas
obrigações? Não me faltava mais nada! Ora tens coisas, menina! Mas então
vamos a saber, primo Henrique, fez bem a sua jornada?

Henrique principiou a falar para desvanecer a irritação de D. Victoria.

Como nós já sabemos dos pormenores da tal jornada, aproveitaremos a
occasião para dizer duas palavras a respeito das novas personagens, que
estão em scena.

D. Victoria, havendo attingido já a idade respeitavel dos quarenta e
tantos annos, dispensa-nos grandes longuras e esmeros de descripção.
Basta que o leitor saiba que era uma senhora nutrida, bondosa no fundo,
e que sabia muito bem trazer os vestidos escuros da sua viuvez.
Impertinente com os criados, doida pelos filhos e sobrinhos, muito
sujeita a esquecimentos, e confundindo-se facilmente sempre que tentava
forçar o espirito a abraçar alguma ideia mais complexa; mãos rotas com a
pobreza; intolerante, em theoria, com os ladrões e malfeitores, porém
felizes d'elles se d'aquellas mãos lhes dependesse a condemnação; eis o
que era D. Victoria. Christina, porém, tinha dezenove annos; e esta
idade gosa de privilegios, que eu não posso infringir. O leitor não me
perdoaria se me visse passar estouvadamente por deante da prima de
Magdalena, sem um olhar de homenagem á sua juventude e ao seu typo
feminino. Reparemos pois.

Christina era mais bonita do que bella. Não havia n'aquelle rosto uma só
feição, que não fôsse correcta e delicada. Tez alva e finissima; olhos
meigos e quebrando-se com suavidade infantil; bôca, d'onde parecia
sempre prestes a sair um afago ou uma consolação; voz, que da muita
piedade d'aquelle bom coração, tirava ás vezes modulações commoventes;
n'uma palavra, uma figura de cherubim, como as sonharam os mais
inspirados artistas, cuja mão representou na téla os augustos mysterios
do christianismo, tal era a primogenita de D. Victoria. Mas não
procurassem n'ella alguns d'aquelles attractivos, que fixam de repente e
como por magnifico influxo, a attenção dos olhos, uma d'essas
particularidades physionomicas, pelas quaes a natureza, destruindo com
arrojo feliz a geral harmonia de um semblante, consegue tornal-o mais
fascinador; temperavam-se alli tão completamente todas as feições, que a
attenção não se sentia obrigada a passar do conjuncto d'ellas, o que
lhes diminuia muito a intensidade. É o grande senão dos rostos
harmonicamente perfeitos.

Concordava-se em que Christina era galante, ninguem lhe negaria
sympathias; mas o pensamento na ausencia d'ella, não se sentia dominado
por a sua imagem: perdia-a até n'um vago, quando pretendia fixal-a: eram
suaves de mais as inflexões d'aquelles contornos, brandas as tintas que
lhes davam relevo, para que a memoria conseguisse reproduzir facilmente
o typo angelico, de que lhe ficára uma agradavel, mas vaga impressão.

Por um homem, em quem predominasse a razão, Christina poderia vir a ser
adorada; mas nas imaginações ardentes, nos corações inflammaveis,
difficil lhe seria produzir alguma impressão duradoura.

Para bem se comprehender a belleza de Christina, era preciso sondar-lhe
primeiro o coração, apreciar todo o thesouro de sentimentos que alli se
continha; então descobrir-se-lhe-hia nas feições certa belleza ideal,
reflexo de bondade e candura, uma d'essas claridades que as almas puras
e generosas vertem nas physionomias. Se não fôsse receiar-me de
linguagem que saiba a philosophia, diria que a belleza, que possuem umas
mulheres assim, é uma belleza subjectiva.

De tudo isto é natural concluir que Henrique de Souzellas podia
sympathisar com a candida figura de Christina, a qual baixava
timidamente os olhos deante d'elle, córando cheia de enleio e confusão,
mas que qualquer sentimento que ella lhe inspirasse, não conseguiria por
muito tempo desviar-lhe o sentido dos encantos mais attrahentes da
morgadinha--que a muitos respeitos, menos na bondade de coração, formava
contraste completo com sua prima.

Travára-se animada conversação entre as pessoas presentes, e
principalmente entre Henrique, D. Victoria e Magdalena.

D. Victoria quiz ser informada da doença de Henrique. Este passou a
fazer-lhe uma exposição igual, com pequenas variantes, á que fizera á
tia.

Mencionou, como a ella, aquelles vagos symptomas, aquellas tristezas,
impaciencias e desalentos, que tão ingenuamente a boa senhora
classificára como mania.

Emquanto Henrique falava, Magdalena poz-se a rir.

Henrique tornou para ella os olhos.

--Ó menina, de que ris tu?--perguntou D. Victoria, com certo tom de
severidade.

--Rio-me d'aquella doença, tia. Pois já viu alguem padecer d'aquillo?
Ora diga?

--Eu?... mas...

--Pode dizer que não. E comtudo o primo Henrique não mente. Ha
d'aquellas doenças na cidade, ha; mas na aldeia são tão raras, que eu
mesma as estranho já, eu que as vi em outro tempo...

--Então não crê na realidade d'ellas.

--Não lhes estou a dizer que sim? Ouço até que já teem levado ao
suicidio. Acredito-o. Os habitos da civilisação affeiçoam a seu modo a
natureza humana e criam molestias novas, que nem por isso são menos
naturaes. Mas que quer, primo? A minha estranheza, ao vêr um d'esses
doentes em plena aldeia, não é modificada por todas essas considerações.
É como um homem de casaca e gravata branca; não ha nada mais sério e
mais grave n'uma sala de baile, mas colloque-m'o n'um monte, e diga se o
pode olhar a sério.

--Quer dizer que não devo queixar-me aqui, sob pena de zombarem de mim.

--Tanto não digo; mas não o entenderão; isso não.

--Porém a minha doença não é só d'essas, que se não dão na aldeia, prima
Magdalena; eu creio que verdadeiras desordens organicas...

--Ah! tambem?--Com esse aspecto de robustez?!...

--Se eu sei o que tu estás ahi a dizer Lena!--disse D. Victoria, que não
tinha percebido bem o dialogo.

--É que eu, minha tia, teimei em fazer perder ao primo Henrique todos os
maus habitos da cidade, com que veio para aqui. Sem isso não pode
curar-se.

--Sujeitar-me-hei da melhor vontade a tão agradavel dominio.

--Principia mal, se principia com uma fineza. Já o avisei ha pouco...

--Será necessario tornar-me grosseiro, para me salvar? N'esse caso
renuncio á cura.

--Grosseiro, não; basta que seja razoavel e sobretudo...

--Acabe.

--Acabo? eu sei? Eu ás vezes sou sincera de mais.

--Eu adoro as sinceridades.

--Já que o quer... É preciso que seja razoavel e sobretudo...
desaffectado.

Henrique de Souzellas mordeu ligeiramente os labios, córando.

--Então acha?...

--Acho que está sempre a imaginar-se n'um salão; faz uns gastos de
galanteria, desnecessarios e perdidos.

--Ó meninos, eu não vos entendo--repetia D. Victoria.

Magdalena sorriu.

--Digo eu que...

Um criado entrando com as cartas do correio não a deixou continuar.

--Sempre chegou o correio!--exclamou Magdalena com vivacidade, recebendo
as cartas.--Por que veio tão tarde?

--A mulher contou-me lá umas historias de uma quéda, e...

--Coitada! Aconteceu-lhe algum mal?

--Esteja descançada, minha senhora. Ella partiu já e era um gôsto vêl-a
a correr.

Magdalena abriu com pressa a carta recebida.

--É de meu pae--disse ella, olhando-lhe para a lettra e, depois de pedir
licença, começou a ler para si.

--Pois agora--dizia, n'este meio tempo, D. Victoria a Henrique--o que
deve é aproveitar estes bonitos dias para dar alguns passeios. As
pequenas acompanham-n'o. Aonde me dizias tu no outro dia que querias ir,
Christina?

--Eu! disse Christina, córando.

--Tu, sim, menina. Inda hontem me falaste n'isso. Ora onde era?...

--Á Senhora da Saude, mamã.

--Ai, é verdade, á Senhora da Saude. Ahi está já um passeio bonito. Vê?
Saem d'aqui uma manhã cêdo, levam alguma coisa para lá comer, porque o
ar do monte abre o appetite, e a cavallo estão lá n'um instante...

--A cavallo, mamã! d'aqui á Senhora da Saude? Ora! Vae-se muito bem a
pé--notou Christina do lado.

--Isso é por os açudes.

--Pois por onde haviamos de ir?

--Por a Granja, que é melhor.

--Por a Granja! É uma legua!

--Que tem? mas escusam de trepar como cabras por o lado dos açudes, que
é até perigoso; e depois para que hão de ir a pé, se para ahi estão os
cavallos sem fazerem nada? É vontade de se cançarem.

--Mas appetece ainda mais n'este tempo. Só se... só se alli o sr.
Henrique...--disse Christina, embaraçada ao continuar.

--Eu o quê, minha senhora?

--Perdão--interrompeu D. Victoria.--Por que não has de tu chamar primo
ao primo Henrique? pois não chamamos tia á tia Dorothéa?

--Por isso mesmo, mamã,--respondeu Christina--os sobrinhos da tia
Dorothéa não são...

--Não averiguemos d'esses parentescos, priminha,--acudiu Henrique--eu
acceito a proposta da mamã, peço para ser considerado do numero de seus
primos.

Christina baixou os olhos, sorrindo.

Henrique proseguiu:

--Mas parece que receiava por mim, quando falou em ir a pé á Senhora da
Saude. Não sei onde é o logar, mas desde já me comprometto a não cançar.

--Não tem que saber--disse D. Victoria, caminhando para uma
janella.--Ella lá está. Olhe que inda é necessario saber trepar.

--Tendo duas tão galantes companheiras de viagem--tornou Henrique,
depois de reparar no monte escarpado que ficava a alguma distancia
d'alli, o mesmo que o almocreve lhe mostrou--parece-me que daria a pé
uma volta ao globo e que subiria a correr o Pico de Tenerife.

--O que eu lhe digo, primo--accrescentou D. Victoria--é que se acautele,
porque se lhes vae a fazer todas as vontades, tem que vêr.

--Inda que morresse em tão agradavel serviço, teria de agradecer a Deus
a morte.

--Cá me chegou aos ouvidos o cumprimento--disse Magdalena, que
continuava a ler.--Logo ajustaremos contas.

--É implacavel esta nossa prima, não acha?--perguntou Henrique,
sorrindo, a Christina, que por unica resposta só soube sorrir tambem.

--Pois então, é arranjarem, é arranjarem isso e quanto antes, que não ha
que fiar no tempo. Eu se pudesse tambem ia, mas já não são passeios para
mim, e depois estes criados...

Henrique de Souzellas receiou nova divagação sobre o assumpto predilecto
de D. Victoria; mas felizmente acudiu-lhe a morgadinha, que disse,
terminando a leitura da carta:

--Escreve-me o pae que tenciona vir passar comnosco as ferias do Natal e
trazer Angelo comsigo. Promette demorar-se até o dia dos Reis.

As creanças saudaram a nova com gritos de alegria, e saltos de causarem
inveja a um clown de circo.

D. Victoria zangou-se.

--Então que pouca vergonha é essa? Parecem-me um bando de patetas! Ora
vamos! Já quietos. A culpa tem a Ermelinda, que já vos devia ter levado
para a quinta. Ó Senhor, esta praga de criados, que nunca ha de fazer a
sua obrigação!

As creanças reprimiram um pouco mais as expansões de seus jubilos, mas
ainda ficaram cantando a meia voz, em musica de composição d'ellas, o
seguinte:

--Vem o primo Angelo! Vem o primo Angelo! Ora viva, viva! Ora viva, olé!

--Pschiu! Calae-vos!--bradou ainda D. Victoria; e voltando-se para
Magdalena:--Mas então como se entende isso, Lena? Então o pae diz que
vem...

--Nas vesperas do Natal.

--Sim, nas vesperas do Natal, e vae...

--Depois dos Reis.

--Sim; está bem; e... sim... e então o Angelo?...

--O Angelo vem com elle. Quer vêr a carta?

--Não, menina. Mas é preciso não fazer confusão... Então...

--Não ha nada menos confuso... É só isto.

--Sim; pois agora, sim; agora está bem claro. Calae-vos, diabretes! Ó
meu Deus, que consumição! Mas então por que não entregou o criado ha
mais tempo essa carta? Eh! não que vocês dizem que elles...

--Ó tia, pois não ouviu que foi a mulher das cartas que se demorou,
porque...

--Historias! Não me venham para cá com esses contos. Vocês estão sempre
promptos para desculpal-os. São elles...

--Ó Lena, Lena--diziam as creanças--o primo Angelo não torna para
Lisboa?

--Ha de tornar.

--Ora!

--Olha lá, ó Lena--disse D. Victoria--sabes tu o que me lembra?... Mas
eu nem sei... com estes criados que tenho... Mas a mim lembra-me... uma
vez que teu pae vem com o pequeno... e... está agora cá o primo
Henrique... lembra-me a mim... mas, já digo, era se eu pudesse contar
com os criados que temos... lembra-me, juntarmo-nos todos para
consoar... A prima Dorothéa tambem, e aqui o primo; mas era se...

Uma perfeita ovação acolheu o projecto; as creanças levaram as suas
demonstrações de enthusiasmo até o delirio, penduraram-se ao pescoço, á
cinta, ao avental da mãe, gritando todas a um tempo:

--Ai, sim, mamã, sim; mande convidar a tia Dorothéa, mande! E ha de
ficar em casa, sim? Olhe e... e arma-se o presepe... e... e... e havemos
de cantar as janeiras... Mande, mande, mamã, por as alminhas; ora mande.

D. Victoria fingia arrenegar-se com aquella pequenada, e erguia o braço,
como para a fustigar asperamente, mas, contra a sua vontade, rompia-lhe
o riso dos labios.

--Saiam d'aqui!--exclamava ella, quando conseguiu estar
séria.--Saiam!... Não ouvem?... Espera que eu vos falo... Ai, não fazem
caso? Ora esperem... Marianna, já devias ter mais juizo... Então,
Eduardo! Tu tambem? Não tem vergonha! Um homem quasi! Saiam d'aqui,
estafermos!

A ideia das consoadas em familia fôra uma ideia que a ninguem deixára
impassivel. Christina, a timida Christina, não disfarçou um movimento de
jubilo; as mãos ajuntaram-se-lhe instinctivamente, e raiou-lhe no olhar
suave um fulgor pouco costumado.

A propria Magdalena não se mostrou superior áquella tocante puerilidade.

Approximou-se com viveza da tia, e beijando-a nas faces, disse-lhe
affectuosamente:

--Ora ahi está o que é muito bem pensado.

--Pois sim, sim, mas o peor é... os criados--disse D. Victoria.

--Quem fala n'isso? Na noite de Natal quem mais trabalha somos nós.
Demais, teremos, para dirigir as tarefas, a Maria de Jesus, a criada da
tia Dorothéa.

--Isso é que é a perola das criadas! Oh! aquella prima Dorothéa, aquella
sua tia, primo Henrique, é que teve felicidade! Mas dizes tu... Bem se
importam os de cá com a Maria.

--Não tem dúvida. N'aquella noite quanto mais barulho e desordem,
melhor--aventurou-se a dizer Christina, com impeto revolucionario.

--Ahi temos outra! Não, filha; isso é que não. Para barulhos é que eu já
não estou. Então, não.

--Está resolvido--disse a morgadinha, para cortar pelas divagações da
tia.--Aqui o sr. de Souzellas--accrescentou, com maliciosa
inflexão--fica desde já encarregado de transmittir á tia Dorothéa o
nosso plano e, ao mesmo tempo, officialmente convidado.

--Acceito da melhor vontade.

--Não sei se o deverá dizer. É preciso que o avise de que n'aquella
noite todos teem de trabalhar na cozinha; a ninguem se dispensa, um
minuto, pelo menos, de collaboração nos guisados. Por isso veja lá....

--Ó menina, tens coisas!--disse D. Victoria.--Deixe-a falar, primo.

--Não é deixe-a falar. Eu não dispenso ninguem.

--E eu prometto não me recusar. Promptifico-me a tornar detestaveis os
pratos em que puzer a mão. Que mais querem?

Foi alegremente acolhida a promessa.

As creanças, familiarisadas já com Henrique, em quem tinham adivinhado
um humor jovial, o que é sempre para ellas um motivo de attracção,
trepavam-lhe já aos joelhos e dirigiam-lhe perguntas sobre perguntas,
difficultando-lhe as respostas.

--Havemos de jogar o rapa, não havemos?

--Havemos de jogar, havemos--respondeu Henrique.

--E o par ou pernão?

--Tambem; tambem havemos de jogar o par ou pernão.

--E?...

--Tudo, tudo; havemos de jogar tudo.

--Olhe: e sabe contar historias?

--Sei tambem contar historias.

--Então ha de contar-nos, que nós tambem lhe contamos a da Gata
borralheira, a da Maria de pau e a da Menina com as tres estrellinhas na
testa.

--Ora, o sr. Henrique já as sabe--disse, fazendo-se sisuda, Marianna.

--Pois não sei, não, senhora; quem lhe disse que eu as sabia? hei de
querer ouvir isso tudo.

--Ó meninos!--exclamou D. Victoria, que até alli estivera distrahida a
discutir com Magdalena.--Então isso que é? Já para baixo. Ai, se lhes dá
confiança, está arranjado, primo.

--Deixe-os estar, minha senhora, este contacto de alegrias é salutar;
pegam-se.

--E não o diga a brincar--disse Magdalena--que tambem confio n'essas
creanças para o curarem dos seus males.

--Então devéras emprehendeu curar-me?

--Com toda a certeza.

--N'esse caso havemos de discutir devagar esse ponto de pathologia.

--Não havemos, não, senhor. É mau medico o que soffre que o doente o
interrogue sobre a molestia e o tratamento. O medico deve ser obedecido
com fé, e cega.

Christina que, havia muito, defronte de Magdalena, fazia esforços por
lhe chamar a attenção, resolveu-se a falar-lhe.

--Lena--disse ella--que te parece a lembrança que teve ha pouco a mamã?

--A das consoadas? Excellente.

--Não, menina, a do passeio á ermida.

--Ah! Excellente tambem. Marquemos já o dia.

--Quando queres?

--Depois de ámanhã, que é quinta feira.

--Seja.

--Que diz, primo Henrique?

--Quando quizerem, primas; agora mesmo...

--Mas, veja lá, atreve-se a fazer uma madrugada?

--Pois não viu hoje?

--Ai, pois não! Na aldeia não se chama isso uma madrugada. É preciso que
se levante ás horas, a que se deitava na cidade.

--Que estás a dizer, Lena?--acudiu Christina.--Deixa-a falar. Basta que
saiamos d'aqui ás cinco horas.

--Esta innocente Christina! Pois não é o mesmo que eu digo? Pergunta ao
primo Henrique se tinha costume de se deitar mais cêdo em Lisboa.

--Engana-se, prima Magdalena; lembre-se de que, ha perto de um anno, sou
valetudinario.

--Ai, é verdade, que me tinha esquecido. O que vejo é que ha por aqui
muita indolencia.

--Quem a ouvir falar, ha de julgar que será ella a mais madrugadora; ora
havemos de vêr--disse Christina.

Magdalena poz-se a rir.

E o passeio ficou ajustado. A morgadinha lembrou que se convidasse
Augusto, por ser conhecedor do sitio e poder mostrar os mais bellos
pontos de vista.

Henrique saiu finalmente da quinta do Mosteiro, já retardado uma boa
hora ao que promettera á tia Dorothéa.

Um criado serviu-lhe de guia até Alvapenha.

Henrique de Souzellas, ao findar aquella manhã, era inteiramente outro,
do que viera para a aldeia. Todas aquellas horas se haviam passado, sem
que o affligissem os males habituaes, sem que nem sequer pensasse
n'elles. O viver intimo a que assistira, a troca reciproca de affectos
entre os membros de tão numerosa familia, a franqueza cordial com que
fôra recebido, produziram n'elle uma impressão profunda.

Costumado ao viver desconsolador e de gêlo de rapaz solteiro e só; não
passando, nas casas que visitava, além da sala de visitas, esse palco
artificioso e reservado, onde as familias ante as familias representavam
a comedia social, Henrique estranhára, mas agradavelmente, o
espectaculo, quasi novo, d'aquelle interior, d'aquelles modestos
costumes, d'aquellas alegrias, que não se envergonham de apparecer sem
reservas nem disfarces. Foi uma revelação que recebeu. Sorriu-lhe a
ideia de ter um dia uma familia assim; de viver entre creanças que lhe
trepassem aos joelhos, na companhia de affectos, que alli via
manifestarem-se, e até com alguem que ralhasse com os criados, á maneira
de D. Victoria.

Escusado é dizer que a imagem da morgadinha apparecia sempre n'estes
quadros que lhe traçava a phantasia: assim como, nos quadros dos grandes
mestres, apparecem quasi sempre reproduzidas as feições queridas da
mulher que elles traziam no pensamento e a quem deram assim a
immortalidade.

De manhã parecera-lhe a aldeia um paraiso terreal; completára-o a figura
de uma mulher; sem o sorriso d'ella nem o primeiro homem seria feliz no
eden, onde a mão de Deus o collocára.

--Anda, vagaroso, anda--disse D. Dorothéa a Henrique, assim que o viu
chegar.--Se o jantar tiver esturro, a culpa é tua.

--Perdôe-me, tia. Demorei-me no Mosteiro...

--Ah! foste lá? E então gostaste d'aquella gente?

--É uma familia para o coração. Passa-se o tempo alli tão depressa! A
morgadinha, sobretudo, é adoravel!

--Ai, ai; como elle nos vem! Olha lá no que te mettes, menino! A mina
boa é, mas... filho, anda alli encanto, que ainda ninguem descobriu.

Henrique fitou os olhos na tia Dorothéa, que dissera isto com certa
malicia.

--Que quer dizer, tia?

--Tu bem me percebes. Anda lá, anda. Se fizesses tu o milagre, se
quebrasses o encanto, grande coisa seria; mas sempre te digo que não
tomes a coisa a peito, que podes aggravar o teu mal.

Henrique levou o caso a rir, mas é certo que esteve um pouco mais
preoccupado e distrahido no resto da tarde.

 


VI


O leitor, se alguma vez realisou uma viagem na companhia de qualquer
amigo, ha de ter observado que, durante os primeiros tempos que passam
juntos n'uma terra para ambos desconhecida, tão alheios ás coisas como
ás pessoas, no meio das quaes se vêem, nem por momentos se soffrem
separados; um segue sempre o outro em todos os passos que dá, precisa
d'elle para communicar-lhe as primeiras impressões recebidas, e
pedir-lhe em troca as suas; á medida porém que, pouco a pouco, se vão
familiarisando mais com os logares e com as personagens d'aquelle mundo
novo, afrouxa a constricção d'esses laços, e cada um principia a
readquirir a independencia individual, que de motuproprio havia
abdicado.

Um facto similhante nos succede com Henrique de Souzellas. Encontrámol-o
na estrada; na companhia d'elle entrámos em uma terra, onde tudo nos era
estranho; nada mais natural do que dar o braço um ao outro, passar
juntos a manhã, e fazer, em commum, as nossas visitas. Agora, porém, que
temos já algum conhecimento da terra e da gente, é tempo de nos
declararmos independentes, e sacudirmos o jugo de uma companhia forçada,
a qual, embora seja de um amigo estimavel, se é forçada, é sempre jugo,
em certas occasiões.

Os proprios Castor e Pollux, ou Pylades e Orestes, penso eu, haviam de
ter momentos em que se desejassem sós; se é que não deviam aos deuses a
felicidade de possuirem curtos espiritos, o que não creio.

Deixemos, pois, Henrique de Souzellas entretendo com a tia Dorothéa a
mais pacifica das conversas que podem auxiliar a digestão de um jantar;
deixemol-o no tranquillo recinto de Alvapenha, e vamos associar-nos a um
dos nossos recentes conhecimentos, que é Augusto, o mestre de Marianna e
de Eduardo, aquelle pallido rapaz que entrevimos na sala da casa do
Mosteiro.

Ao sair d'alli, Augusto seguiu através de campos e á beira de vallados,
com aquelle ar pensativo que lhe era peculiar.

O pouco que da historia d'elle soubemos, pelas palavras da morgadinha, é
já bastante para que nos não admire a quasi incessante melancolia de
Augusto.

Aos vinte annos e sem familia! com intelligencia e mal podendo, á custa
de sacrificios, cultival-a, e eleval-a á altura das suas aspirações!
Alma generosa e compassiva, tendo muita vez de limitar-se a chorar os
infortunios que via, porque a pobreza lhe negava meios de remedial-os!..
não serão estas ainda nuvens bastantes para toldarem a luz de uma
existencia, embora a juventude as illumine?

Havia alguns annos que esta disposição para a tristeza se exacerbára em
Augusto. Coincidiu o facto com algumas circumstancias, que convém
referir.

A morgada dos Cannaviaes, madrinha de Magdalena e de quem viera a esta o
nome de morgadinha, pelo qual mais conhecida era na aldeia, havia ao
morrer instituido um legado a favor de Augusto, então creança, com a
condição d'elle abraçar a vida ecclesiastica. O conselheiro, pae de
Magdalena, devia administrar este legado, educando o rapaz nas escolas
de Lisboa ou Porto, desde o dia do seu primeiro exame até o da primeira
missa, porque n'esse lhe entregaria o capital por inteiro.

Isto succedeu no tempo em que a mãe de Augusto, que havia dois annos
viuvára, luctava com a miseria, e o rapaz, pela sua penetração e pelo
enthusiasmo com que aprendia, causava o espanto do velho mestre regio da
localidade.

Foi por todos abençoada a memoria da morgada, por tão bem cabido legado,
que era ao mesmo tempo que remedio ás privações de uma familia, premio e
estimulo á intelligencia e á applicação de uma creança, que promettia
vir a ser... Deus sabe o quê.

Ninguem se lembrou de perguntar a si proprio se a clausula, posta pela
legataria como condição á concessão do beneficio, não podia ser uma
crueldade que o annullasse; se comprar um futuro por dinheiro, sem
querer saber a quantidade de aspirações, de esperanças, de phantasias
que sejam, a que se tem de renunciar pelo contracto, não é uma
iniquidade; se não era uma quasi simonia ir a casa do pobre, e fazendo
luzir os reflexos do ouro nas sombras da miseria, propôr-lhe trocar por
estes thesouros, que o fascinam, os valiosos thesouros da alma. Eu por
mim abomino estes legados condicionaes, que um espirito malevolo,
egoista e desejoso de dominar ainda depois da morte, tantas vezes dicta;
essas meigas generosidades são ás vezes a causa do infortunio de uma
vida inteira; acceites ou recusadas, é raro que depois, a cada provação
que nos experimenta, uma voz interior nos não exprobre o partido que
abraçamos.--«Louco! para que hesitaste em trocar meia duzia de
phantasmas por um bem real? Quem te mandou sacrificar a vaporosos idolos
de poetas o beneficio que te offereciam?»--dirá ella aos que rejeitaram
o pacto.--«Ambicioso!--clamará aos outros--ahi tens a felicidade que
julgaste comprar á custa do que ha de mais nobre na alma humana;
embriaga-te agora no incenso, em que envolveste o altar do bezerro de
ouro, consumindo ahi as tuas mais santas e generosas aspirações.»
Augusto não adivinhou porém logo a crueldade da disposição
testamentaria. Era muito creança ainda; e depois uma ideia nobre o
preoccupou; comprehendeu que ia ser o amparo d'aquella pobre mãe, que só
podia abrigal-o com os extremos do seu muito amor. Seu pae, morrendo,
apenas conseguira deixar uma herança; foi á viuva o dever de velar pelo
filho. Augusto exultou vendo que podia inverter aquelle legado, velando
elle pela fraca mulher, que, para bem o cumprir, esgotaria de certo a
vida.

Redobrou por isso a solicitude no aprender; desenvolveu-se mais e mais a
intelligencia, quasi espontaneamente, pois justo é confessar que bem
rudes eram os cuidados de cultura que o velho _magister_ lhe sabia dar.
Mas quem ignora os surprehendentes effeitos que da intelligencia e do
estudo, da aptidão e da vontade, podem resultar? Dotem um homem d'essas
duas faculdades poderosas e neguem-lhe embora os meios de progresso,
elle caminhará, inventando-os primeiro, se tanto lhe fôr preciso.

E depois, é um grande alento aos espiritos superiores a consciencia de
uma nobre missão a cumprir. Não ha fadigas que tal estimulo não vença;
abnegação, que não inspire.

A Augusto era-lhe incitamento a ideia de que sua mãe precisava d'elle.

Quando ainda aos seus treze annos fôsse já bem conhecida a grandeza dos
sacrificios que lhe exigiam, não hesitaria talvez, instigado por aquella
aspiração; quanto mais que ainda mais lhe tinham animado os sonhos, as
doces imagens, tão gratas ao coração do adolescente, e a que teria de
renunciar.

Suspirava por o dia do seu primeiro exame, o qual, graças aos esforços
empregados, não se fez esperar muito.

Quando se approximava a occasião, o pae de Magdalena mandou vir Augusto
para Lisboa e hospedou-o em sua casa até que chegou o dia.

Não confiando demasiadamente no ensino publico da aldeia, o conselheiro
quiz que o seu pequeno hospede recebesse algumas lições de um professor
da cidade, e d'este obteve as melhores informações da intelligencia do
rapaz, que só por milagre d'ella conseguira sair muito pouco eivado dos
vicios do ensino de campo.

Augusto demorou-se algumas semanas em casa do conselheiro. A final fez o
exame, no qual foi felicissimo, obtendo n'elle as mais distinctas
qualificações.

Imagine-se o effeito que a noticia produziu na aldeia. Exaggerando-se,
dizia-se por lá que em toda Lisboa corria a fama do rapaz, e houve até
quem não hesitasse em affirmar que a creança confundira os mestres, que
fôra uma maravilha.

O mestre-escola reclamou para si a gloria do acontecimento, fundando-se
em que, através do discipulo, resplandecia a sciencia do mestre.

Os invejosos disputavam-lhe porém tão inquestionavel gloria e riam-se
d'elle.

A pobre mãe, essa, levou todo o dia a chorar de prazer e a render graças
á Virgem, a quem tanto encommendára o filho.

Voltou Augusto á terra.

Era o rapaz o assumpto de todas as conversas: olhavam-o como um
prodigio. Todos o queriam vêr, como se até alli o não tivessem visto
bem, e de feito todos o foram vêr; nem o abbade, nem o administrador,
nem o presidente da camara faltaram. Foi tudo. Pois bem, de tantos que o
viram, não houve um só que não notasse que o pequeno vinha triste.

Ninguem contestava o facto: que elle como que saltava aos olhos; as
interpretações é que variavam.

--Aquillo é dos ares de Lisboa; a quem não está costumado... dizia um.

--São canceiras de estudos--aventava outro.--Ha lá coisa que puxe mais
por uma pessoa do que o estudo!

--Não que vocês cuidam! Um exame sempre abala a gente cá por
dentro--dizia um doutor, que levára dez annos a vencer um curso de
cinco.

Fôsse pelo que fôsse, Augusto trouxera de Lisboa uma melancolia, que os
ares da sua terra não dissiparam e que augmentava sempre que lhe falavam
no futuro e no legado da morgada.

Quem mais a estudou, e sentiu aquella subita melancolia, foi, como era
de suppôr, a receiosa mãe. Deus sabe que noites mal dormidas, que sustos
e que intimos terrores ella lhe causou! Perguntas, supplicas, arguições,
lagrimas, promessas, nada tiravam de Augusto, que teimava em responder
que nada tinha que o affligisse, que era a illusão de quem o via a
tristeza que lhe suppunham, e, para confirmar o que dizia ria; mas era
mais triste aquelle riso, do que o pranto, em que se desafogasse.

Para breve estava a entrada de Augusto no collegio de Lisboa, onde, á
custa do legado da defuncta proprietaria dos Cannaviaes, devia continuar
nos seus estudos, quando o rapaz pediu para ficar algum tempo na aldeia.
Não se pôde atinar com os motivos d'este pedido. Indolencia não era;
pois no entretanto começou a estudar os rudimentos do latim com o
illustre professor, que o leitor conhece já, mestre Bento Pertunhas.

A saude vacillante da mãe de Augusto declinou n'esse inverno; o que veio
dar outro motivo á demora do filho.

Dias e dias passou o pobre rapaz sentado á cabeceira do leito dividindo
os seus cuidados entre o estudo e os carinhos pela estremecida enferma.
Dois annos se passaram d'esta vida, e quando, ao fim d'elles, Augusto
abandonou aquelle leito, foi depondo um beijo nas faces geladas de um
cadaver.

Era orphão.

A vaga sombra de melancolia, que já lhe toldava o rosto,
condensou-se-lhe mais então. Era quasi um negrume de tristeza.

Por esse tempo, veio o conselheiro trazer Magdalena para a aldeia, pois
receiava pela saude d'ella se persistisse em Lisboa.

O conselheiro propunha-se levar comsigo Augusto, quando voltasse a
Lisboa. Uma manhã, porém, este, de pouco mais de quinze annos,
procurou-o e disse-lhe com uma gravidade, que revelava uma tenção
meditada e irrevogavel:

--Venho prevenir v. ex.^a de que desisto do legado da sr.^a morgada. Não
quero ordenar-me.

O conselheiro fitou-o, estupefacto.

--Não queres ordenar-te! Por quê?...

--Já não tenho mãe a quem amparar. Por ella forçaria a minha vocação sem
remorsos; por interesse proprio não o posso fazer; parece-me um
sacrilegio.

O conselheiro era um homem muito do seculo. O seu trato social, a
frequencia dos circulos politicos e elegantes, haviam-lhe dado todas as
boas e más qualidades, que caracterisam aquella classe de homens, e
sabe-se que a candura de sentimentos não entra no numero das mais
habituaes d'essas qualidades. Tinha uma razão clara, mas fria; se
abraçava uma boa causa, não o fazia cedendo ao enthusiasmo, mas sómente
depois de ponderar fleugmaticamente os fundamentos em que ella se
baseava; assim era que, em politica, se costumára a contemporisar,
espaçando a adopção de qualquer medida, inquestionavelmente boa, para
tempos em que fôsse mais conveniente; não se apaixonava por utopias,
desconfiava d'ellas; havia muito tempo que desviára dos olhos o prisma
encantado, através do qual olham o mundo os poetas e todos os mais
sonhadores; costumára-se a marcar por modelo nas differentes carreiras
da vida, não um typo ideal dotado de todas as virtudes, limpo de todos
os defeitos e vicios; assentára a menor altura o alvo: parecia-lhe que
bom fito eram já os individuos que tinham conseguido maior consideração
na sua classe; as maculas que elles tivessem, eram, por esse facto,
maculas auctorisadas. O pensar de outro modo era pensar de romance;
agradavel para entreter, porém mau nas applicações ás coisas da vida.
N'uma palavra, o conselheiro era um homem de bem, mas na esphera
mundana; não um d'aquelles typos de pureza crystallina, através da qual
parece passarem sem desvio os raios da luz celeste, mas já um tanto
embaciado do bafo social, que não o fazia ainda totalmente opaco.

Por isso sorriu á declaração de Augusto. A carreira ecclesiastica não
lhe parecia tão escabrosa como o futuro sacerdote a fazia; nem tão dura
a lei, como em theoria se mostrava. O conselheiro não pensava necessario
tomar ao pé da lettra certos deveres impostos; o mundo seria, como elle,
tolerante em naturaes infracções; por tudo isso se riu. Fez a Augusto
uma longa dissertação sobre as vantagens da vida ecclesiastica, sobre os
muitos interesses que lhe promettia, e a leviandade com que elle queria
renunciar a uma carreira segura movido pelas instigações de um espirito
timorato ou de uma visão phantastica.

Augusto insistiu. Sem córar perante o sorriso sceptico do conselheiro,
declarou que não abraçaria a vida ecclesiastica sem que se sentisse com
a coragem precisa para cumprir todos os deveres que ella lhe impunha;
que era precisa uma grande abnegação, e que elle, depois da morte de sua
mãe, não tinha a certeza de a conseguir. Nos interesses não pensava, e
se pensasse, seria isso a primeira prova de não estar preparado para a
missão de que se queria encarregar.

Quando alguem abraça com lealdade e franqueza uma boa causa,
difficilmente é vencido. O conselheiro, costumado a não recuar nas mais
acerbas luctas do parlamento, calou-se dentro em pouco ás objecções
d'aquella creança. Como que teve remorsos de tentar sequer desvanecer as
illusões a que o via abraçado,--illusões pelo menos as suppunha elle;
parecia-lhe uma obra satanica envenenar com um sorriso aquelle ideal, em
que vivia.--Respeitou-o e calou-se.

--Alguma creancice amorosa dos quinze annos--pensou para si. Deixemos ao
tempo convencel-o. Não me encarregarei eu d'esse papel, que é pouco
sympathico. Quem me restituira aquellas canduras! Teria alcançado menos
no mundo, mas talvez tivesse gosado mais... ou melhor...

O conselheiro cedeu apparentemente, esperando que a reflexão
modificaria, mais tarde, as ideias do rapaz.

Exigiu d'elle que a ninguem annunciasse as tenções, em que estava de não
se ordenar, pelo menos emquanto não passasse mais tempo sobre aquella
resolução.

E uma vez que ficava na terra, pediu-lhe o conselheiro que se
encarregasse da primeira educação de Angelo, então de nove annos; pois
mais confiava para isso em Augusto, do que no professor official.

Augusto acceitou com prazer a incumbencia, que, sobre adequada aos seus
gôstos, lhe abria uma carreira, que elle já imaginára adoptar.

De então nasceu uma intima amizade entre Angelo e Augusto. Foram rapidos
os progressos do discipulo, e não menos reaes as vantagens que ao mestre
resultaram do ensino, que lhe desenvolvia cada vez mais a
intelligencia.--O conselheiro tinha motivos para estar satisfeito da
escolha.

Ao fim de um anno as repugnancias de Augusto em acceitar o legado eram
as mesmas; o egoismo paternal do conselheiro não o deixou ser muito
ardente a combatel-as.--Espaçou-se mais uma vez a decisão.

Outras lições appareceram a Augusto, as quaes elle acolheu com gôsto; o
mestre-escola reclamava tambem muitas vezes o seu auxilio; compadecido
da sua velhice, Augusto nunca lh'o recusou.

O velho acabou por declinar n'elle o serviço todo, sem que Augusto
consentisse em receber por isso o menor estipendio.

O publico não se cançava de perguntar quando seria que o rapaz
principiaria os seus estudos em Lisboa e por que o não fazia já. Como
não obtivesse resposta, commentava o facto, como costuma commentar todos
os que não entende.

No entretanto a educação de Augusto não ficára estacionaria. Com grandes
sacrificios a continuára elle; e n'um êrmo, como era aquella aldeia,
tinha muito de milagre o que fazia.

O latim de mestre Bento já mal satisfazia ás impaciencias do espirito
d'este discipulo enthusiasta; e não era raro que a intelligencia de
Augusto visse mais fundo nos textos, do que a experiencia do mestre.

O acaso favoreceu os desejos do estudante.

N'uma freguezia proxima estava, como abbade, um doutor em theologia,
homem de solido saber e de reputação extensa.

Um dia em que, por convite do seu collega, viera assistir e prégar na
festa do orago da aldeia, o padre encontrou-se com Augusto na sacristia
e, conversando-o, admirou-lhe a penetração, captivou-se da sua modestia
e lamentou não estar mais perto d'elle, porque o auxiliaria, como
pudésse, nos estudos.

Augusto perguntou-lhe se era sincera aquella vontade; affirmando-lhe o
padre que sim, respondeu que não seria então estorvo a distancia, porque
elle a venceria.

E d'ahi em deante, duas vezes por semana, ás quintas feiras e domingos,
franqueava legua e meia dos mais escabrosos caminhos, para ir ouvir as
lições do erudito abbade. Assim se aperfeiçoou na latinidade, cultivou a
philosophia e adquiriu o gôsto pelos nossos velhos prosadores e poetas.
Vinha de lá carregado de livros para ler durante a semana. Toda a
bibliotheca do padre lhe passou pelas mãos.

Era porém o theologo classico exclusivo e nada visto em linguas e
litteraturas modernas.

A sorte não recusou ainda a Augusto um novo mestre.

Entre os muitos estudos de estradas, de que os governos em Portugal
fazem preceder, vinte annos antes, a construcção definitiva de uma só,
que de ordinario sae sempre como se não fôsse tão estudada, um houve que
levou á aldeia, em que eu e o leitor nos achamos, um engenheiro que ahi
fez quartel e centro de operações, durante tres mezes inteiros.

A casa em que elle se alojou ficava proxima da de Augusto. Cêdo travaram
conhecimento os dois. O engenheiro o menos que possuia eram livros de
mathematica; mas, emquanto a litteratura moderna, trazia nas malas e
bahús uma excellente provisão.

Não tendo que fazer ás noites, entreteve-se a ensinar o francez a
Augusto e a ler-lhe os livros da sua bibliotheca portatil. Voavam as
horas a Augusto n'aquelles serões; n'elles aprendeu todos os nomes da
nossa litteratura moderna, bem como os principaes da de França e de
Inglaterra.

Quando o engenheiro partiu da aldeia já Augusto sabia o francez bastante
para se aperfeiçoar por si; este amigo deixou-lhe em lembrança grande
parte dos seus livros, que Augusto releu muitas vezes.

Attingiu finalmente Angelo a idade de precisar do collegio. O
conselheiro, ao leval-o comsigo, insistiu mais uma vez com Augusto para
que viesse tambem e acceitasse o legado da morgada. Foi em vão,
encontrou-o ainda inabalavel.

E d'esta vez fez publica a sua desistencia, e o ambicionado patrimonio
foi concedido a outro.

Mezes depois morria o velho mestre-escola da aldeia.

Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe que pretendia aquelle
logar, que já havia muito tempo servia, e pedindo-lhe para que se
interessasse por que elle o obtivesse. O conselheiro quiz tirar-lhe da
ideia tal projecto; escreveu-lhe que, na idade em que estava Augusto, o
não ter ambições era indicio de uma profunda doença moral; que a posição
a que elle aspirava, equivalia a uma sepultura estreita a que se
acolhesse vivo. Augusto persistiu porém no intento; o conselheiro
empenhou-se por elle em Lisboa. Conseguiu que uma portaria, meio pelo
qual se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa, o dispensasse da
idade que ainda não tinha, pois mal completára dezenove annos, e Augusto
foi por conseguinte admittido a concurso para tão pouco disputado logar
e provido n'elle por tres annos. O conselheiro, a quem não fôra
impossivel obter-lhe despacho vitalicio, quiz vêr assim se, no fim de
tres annos, o obrigava a abandonar tão laboriosa e mal recompensada
carreira, e de proposito o fez despachar temporariamente. Comquanto o
legado da morgada tivesse tido já outra applicação, o conselheiro não
hesitaria em proteger, em qualquer carreira, o mestre de seu filho.

Mas ao fim de tres annos, Augusto, apesar de por experiencia conhecer já
os espinhos da profissão, apresentou-se novamente ao concurso para obter
novo despacho. Na época em que abrimos esta narração, voltára Augusto de
pouco de ultimar a nova prova; e estava pendente ainda a decisão do
ministerio competente. D'esta vez tivera um competidor, homem muito
protegido por influencias da localidade, as quaes ainda não tinham
podido vencer a do conselheiro, que pugnava por Augusto.

Desde que fôra para Lisboa, Angelo não se esquecera de escrever
amiudadas vezes a Augusto, contando-lhe dos seus estudos, e
descrevendo-lhe a sua vida na capital; e quando vinha a férias,
procurava transmittir ao que fôra seu mestre a sciencia que durante o
anno adquiríra.

Foi assim que Augusto principiou a estudar a lingua ingleza, a
geographia e a historia.

Recebido o primeiro impulso, a sua intelligencia e applicação faziam o
resto.

Um homem que havia na aldeia e com quem cêdo teremos de travar
conhecimento, um velho herbanario, para alguns um sabio, para outros um
louco, para todos um homem honrado, concorreu tambem, com o seu
contingente, para a educação de Augusto.

De tempos a tempos, este velho mysterioso apresentava-se em casa d'elle
com um pacote de livros debaixo do braço e, sorrindo, pousava-lh'os em
cima da mesa.

Eram quasi sempre aquelles, que Augusto mostrava ou sentia mais desejos
de possuir. Da primeira vez, Augusto fitou o herbanario com espanto.
Ninguem o suppunha rico; como podia elle pois obter aquelles livros,
alguns dos quaes eram de preço? O velho porém disse-lhe, ao perceber-lhe
a surpreza:

--Não queiras saber da minha vida, rapaz. Suppõe que eu tenho a
servir-me uma vara de condão ou uma fada qualquer, e deixa correr.

Augusto acabou por persuadir-se de que o herbanario tinha accumulado
riquezas, á fôrça de economias: porque de economias vivera sempre.

De pequeno merecera áquelle velho uma singular sympathia, e com affecto
de pae fôra sempre tratado por elle.

Resignou-se a acceitar sem reflexões; até porque sabia ser facil o
escandalisar o velho com ellas. O que fazia era evitar, na presença
d'elle, qualquer palavra que pudésse denunciar desejos de possuir um
livro qualquer. Mas o velho, como se tivesse de facto algum poder
occulto a informal-o, ás vezes parecia adivinhar; e trazia-lhe livros
que Augusto devéras desejava, mas a respeito dos quaes tinha a certeza
de lhe não ter falado, nem eram d'aquelles que o velho conhecia.

A seu pesar via-se quasi inclinado a adoptar a crença supersticiosa do
povo a respeito d'aquelle seu velho amigo.

Pensando melhor, pareceu-lhe procederem de Angelo as informações, pelas
quaes o velho se guiava na escolha. Não lhe attribuia porém o presente,
porque as economias de Angelo não chegavam para tanto.

Depois de tudo quanto temos dito de Augusto, poderá ainda o leitor
estranhar os ares pensativos com que o vemos?

Poucos passos andados, depois que saiu do Mosteiro, encontrou Augusto a
distribuidora das cartas, que lhe entregou uma sobrescriptada para elle.
Era de Angelo.

Augusto abriu-a immediatamente e leu-a ainda pelo caminho.

Era uma extensa carta, em que se succediam os periodos em um d'esses
longos, incoherentes e diffusos arrazoados, que constituem a essencia de
uma carta de amigo para amigo.

Angelo falava dos seus estudos, de saudades da terra, de esperanças e de
projectos, projectos que, n'aquellas idades, nascem e morrem a todo o
instante. Terminava esta carta, em que lhe participava a sua vinda á
aldeia pelo Natal, com o seguinte periodo:

«Peço-lhe que diga á Lindita que se não esqueça de mim. Dentro de poucos
dias conto ir vêr os coelhos do quintal d'ella, e ajudal-a a tirar a
agua do poço. O pae d'ella chega ahi ao mesmo tempo que esta carta; leva
um livro para si.»

Augusto sorriu, ao ler o _post-scriptum_.

--Pobre Angelo!--murmurou elle,--Deus não permitta que sobreviva á tua
ultima creancice essa sympathia por Ermelinda. Estas generosas affeições
de creança muitas vezes, ao crescer, envenenam o coração.

Havia tanta amargura n'estas reflexões de Augusto!

E, como absorvido n'ellas, caminhou para casa do recoveiro Cancella, que
era o pae da pequena, a quem na carta se alludia.

 


VII


A casa do recoveiro Cancella ficava n'uma das mais estreitas ruas da
aldeia e ao lado de um pequeno quintal, objecto dos cuidados e das
diversões do proprietario, que alli gastava algumas horas disponiveis da
sua occupada e laboriosa vida.

Cancella era um verdadeiro Judeu errante da aldeia. A maior parte do
tempo ia-se-lhe nas estradas; pernoitava hoje n'uma estalagem; viam-o
ámanhã já a mais de seis leguas de distancia; acotovelava um dia a
multidão nas ruas e feiras da cidade; no outro entretinha os curiosos da
sua terra, deixando-lhes entrever os thesouros da experiencia adquirida
á custa de muitos annos de fadigas.

As estradas em Portugal e os novos meios de transporte, que
conjunctamente vieram, não destruiram totalmente esse typo dos antigos
tempos, anterior a ellas. Além da época, que parecia dever marcar-lhes
limite á existencia, passaram, sustentados pela fôrça dos habitos e
justificados pelas irregularidades do serviço das postas; e Deus sabe
quando de vez acabarão. Mas Cancella era além d'isso um recoveiro de uma
especie rara e superior. Em todas as profissões ha sempre, no meio do
vulgo, que as exerce sem enthusiasmo nem consciencia dos gôsos,
superiores aos interesses, que ellas podem offerecer, certo grupo de
escolhidos, que as idealisam, e enxergam um raio de poesia através das
sombras, uma flor entre os espinhos. Cancella era d'estes; era o poeta
da sua profissão. Tinha em si o que quer que era de um _touriste_, e
assim aproveitava todos os ensejos que se lhe offerecessem de explorar
algum ponto do paiz, ainda por elle desconhecido.

Este instincto levava-o frequentemente a Lisboa. As muitas relações do
conselheiro, pae de Magdalena, com as familias da aldeia, e a barateza
relativa das recovagens operadas por este meio primitivo,
proporcionavam-lhe algumas occasiões d'isso, as quaes o Cancella de
boamente aproveitava. Era de uma d'essas expedições que elle devia
voltar aquella manhã, como o dava a entender a carta de Angelo.

Quando porém Augusto lhe bateu á porta, achou-a ainda fechada; escutou á
fechadura, mas não pôde verificar o menor signal de que alguem estivesse
dentro.

--É cêdo ainda--pensou comsigo.--Vejamos se estará em casa do compadre.

Seguiu mais para deante pela rua por onde viera.--A poucos passos mais,
e do lado opposto, deparou-se-lhe outra casa de aspecto não menos
rustico do que a primeira, uma pequena casa terrea, de uma só porta e
uma só janella, e com o respectivo quintal ao fundo.

Do interior vinha um sussurro de vozes, como de conversa animada;
julgando que seria o Cancella, de quem o proprietario era, além de
vizinho, confidente e compadre, Augusto empurrou a porta, que estava
apenas cerrada e entrou.

A primeira sala achou-a deserta. Era um aposento quadrado, todo adornado
á volta de cruzes de pau, para as devoções da via sacra, e de imagens de
santos e santas em caixilhos de todos os tamanhos. Mais do que os outros
enramalhetado e enfeitado, via-se alli o bento registo de uma confraria,
havia pouco tempo instituida na terra pelos missionarios, o qual
occupava o logar de honra n'aquella devota exposição.

Era recente na aldeia o estabelecimento d'esta confraria, sociedade um
tanto mysteriosa, por meio da qual seus interessados instituidores só
visavam a dar o reino do céo aos filiados, contentando-se _apenas_, em
paga, com o do mundo, do qual, lembrados de antigos tempos, teem
saudades já. Os missionarios, certos evangelisadores em terras onde a
palavra do Evangelho não é chave que abra a porta, pela qual entraram os
martyres no céo, lá andavam por aquelle tempo, na aldeia onde se passa a
acção d'esta historia, plantando a vinha, que elles chamavam do Senhor;
as mulheres, abandonando os lares, seguiam-os como rebanhos; o culto
catholico era por elles cada vez mais arrebicado com orações absurdas e
ceremonias ridiculas, e o eterno anathema da ignorancia contra o
progresso da sociedade servia de thema predilecto aos seus barbaros
discursos.

Ardente proselyta d'estes apostolos de fé duvidosa, a sr.^a Catharina do
Nascimento de S. João Baptista, a metade feminina do casal em questão,
tomára por modo de vida as devoções da igreja, onde ia chorar as
desgraças da humanidade, que tão fóra via andar da estrada direita.

Augusto pouco se demorou n'esta sala; respeitando a alcova conjugal, que
era vedada aos olhares profanos por uma colcha de chita de largas e
folhudas ramagens, tomou pelo corredor, que conduzia á cozinha d'onde
lhe continuava a chegar aos ouvidos o som de vozes, que primeiro o
attrahira.

Ao contrario do que esperava, porém, só uma pessoa encontrou na cozinha,
comquanto falasse com a vivacidade que em poucos dialogos se mantem.

Esta pessoa era o dono da casa, o sr. José do Enxerto, ou vulgarmente
chamado ti' Zé P'reira--nome que lhe vinha do popular e ruidoso
instrumento, o classico zabumba, que nas nossas aldeias tem ainda hoje
aquelle nome.--Era muito para vêr e admirar a mestria, com que o nosso
homem o sabia tocar nas festas e arraiaes, á frente das procissões e
cêrcos, e finalmente em todas as solemnidades publicas.

O ti' Zé P'reira era homem dos seus quarenta e tantos annos; tinha no
rosto, principalmente no nariz, vestigios evidentes das suas sympathias
pela divindade celebrada nos antigos dithyrambos. Esposo da sr.^a
Catharina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perenne sabatina
com a sua cara metade, sujeitando-lhe todas as suas acções, mas salvando
sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no officio de
hortelão e, aos domingos e dias de festa, á fôrça de rufos e pancadaria
na retesada pelle do seu companheiro inseparavel--o zabumba. Era aos
cuidados e vigilancia d'este par conjugal que o recoveiro Cancella
confiava o seu mais precioso thesouro, a pequena Ermelinda, uma mimosa
creança, que lhe ficára á sua viuvez tão cheia de saudades, e a quem
elle mais queria do que á menina dos olhos.

Ermelinda era afilhada da familia Zé P'reira, e a mesma a quem ouvimos
referir-se Angelo no fim da carta.

Zé P'reira estava, como dissémos, só na cozinha, quando Augusto alli
chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo
para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e
vazio, falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e
rouca da sua escala de barytono, até o mais agudo e desafinado falsete.
A lingua pegava-se-lhe ao céo da bôca, difficultando-lhe suspeitosamente
a articulação de algumas syllabas; era evidente que se apossára do
hortelão o espirito familiar, o qual n'este caso, era um verdadeiro
espirito, na accepção chimica do termo.

Ze P'reira era um homem baixo, já grisalho, sufficientemente nutrido, de
olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o enthusiasmo, o rapto
artistico se apoderava d'elle; usava de umas suissas que pareciam tentar
sumir-se-lhe pela bôca dentro; tinha longos braços, accommodados ás
difficuldades e evoluções da sua arte, e pernas que, do joelho para
baixo, lhe divergiam em angulo de mais de trinta graus.

Quando Augusto deu com elle, o homem monologava, gesticulando:

--Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... É forte desgraça!...
Aqui estou eu!... Um homem casado... casado á face da igreja... que me
casou em dia de S. Thiago o abbade que foi... e que Deus tenha em
descanço. Não faltou nada... correram-se banhos deante de quem os quiz
ouvir, e não houve quem puzesse impedimento... porque eu não devia nada
a ninguem... sempre fui liso de contas... Sou casado com a Catharina do
Nascimento de S. João Baptista, filha do Antonio Canhestro, do logar dos
Fójos... E casado para quê? Faz favor de me dizer? Para que casei eu?...
Forte desgraça a minha! Casei-me para isso!... Para vir para casa e
achal-a vazia, o lume apagado e o caldo na horta... e a mulher a papar
missas e novenas lá por essas igrejas... Ora, senhores, que é forte
desgraça a minha! É forte desgraça!... Bem morria eu de frio e de
fraqueza, se não fôsse aquelle quartilhito... o ultimo, que sempre me
deu sua aquella... sim... sempre me conchegou o estomago. Não que dizem
que o vinho que faz, que o vinho que acontece... Pois casem-se com uma
mulher que vá de madrugada para a igreja e venha de lá quando muito bem
lhe pareça, e verão depois se o vinho não serve de cobrir muita lazeira
que se soffre... verão depois... Ora, senhores, que é forte desgraça a
minha!... Diz que Deus que disse, que a mulher que era a carne da nossa
carne e o osso do nosso osso... Deus devia de vez em quando tornar a
dizer estas coisas... para não esquecerem... como se faz na escola com a
taboada. A minha Cath'rina já o não sabe, aposto... e pelos modos os
padres não lhe dizem isto na igreja... pois deviam dizer!... A carne da
minha carne e o osso do meu osso!... mas é carne e osso que me não fazem
caldo... Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... Como ha de um
homem, se isto assim continua, pegar na enxada para dar uma cavadela, ou
fazer qualquer sachada?... E tambem quero vêr como hei de no arraial e
procissão de Santo Amaro, que não tarda ahi, dar sequer um rufo assim
mais tal... assim mais scientifico? Eu se fôsse bispo...

A caudalosa corrente d'este soliloquio foi interrompida pela apparição
de nova personagem á porta do quintal.

--Deixe estar, meu padrinho, deixe estar; tenha um bocadinho de
paciencia. É um instante emquanto accendo o lume e lhe faço o caldo.
Verá.

A pessoa, que assim falava ao entrar para a cozinha, era uma rapariga de
doze annos, alva e franzina, como a mais delicada creança da cidade, com
os olhos negros e expressivos de intelligencia e de doçura, e com os
mais formosos cabellos louros que ainda enfeitaram uma cabeça infantil.
Não havia n'elles sombra, que desvanecesse aquella côr deslumbrante;
reflectia-se-lhes a luz nas ondas, naturalmente lustrosas, como em
tenuissimos fios de metal; usava-os soltos e caidos, sem vislumbre de
artificio, de um e de outro lado do collo.

Condizia com a expressão angelica do semblante o suave e affectuoso
timbre de voz com que falára.

O leitor prevê de certo que é Ermelinda, a filha do Cancella, ou
Lindita, como geralmente na aldeia lhe chamavam, a creança que tem na
sua presença.

Ermelinda sobraçava um mólho de hortaliça, que fôra colher ao quintal, e
dirigia-se com ella para o lar, que o descuido e a indifferença conjugal
deixavam ainda apagado áquella hora do dia.

Dando, porém, com os olhos em Augusto, parou, sorrindo-lhe.

--Ai, pois estava ahi, sr. Augusto?! E o meu padrinho talvez sem
reparar.

A estas palavras o desditoso marido voltou a cabeça e fitou em Augusto
um dos seus desemparelhados olhos.

--Olá, sr. Augusto! Viva! Passe muito bem! Entre; esta casa é sua... De
jantar não lhe offereço... porque... porque... Forte desgraça a minha...
Olhe! repare para este desaforo!... Venho para casa, morto de
trabalho... e vejo o lar apagado! A minha mulher está a ouvir missa, a
confessar-se, a commungar... a tomar todos os sacramentos... acho que os
está a tomar todos... Louvado seja Deus! Vem ahi tão limpa de
consciencia, como eu estou do estomago... Ora, senhores...

--Deixe estar, padrinho... Verá como isto se arranja depressa... Olhe; o
lume já está accêso--dizia Ermelinda, accendendo effectivamente o lume
no lar.

--Já o devias ter feito antes, Lindita,--disse Augusto, sentando-se
junto d'ella.

--Mas se inda agora vim das prêsas, onde fui lavar a roupa?

--Pobre pequena--disse o Zé P'reira--tambem não te ha de faltar lazeira,
tambem!

--A mim? Agora. Não que eu não saí de casa com as algibeiras vazias.

--Pois sim... mas é sempre preciso coisa que conforte... Inda se tu
bebesses... já não digo um quartilho...

--Credo, meu padrinho! Que está a dizer?

--Que espanto!... Ora, senhores, que parece que o vinho é bebida
amaldiçoada, que todos lhe teem mêdo! É vêr se o padre na missa...

--Padrinho! padrinho! que vae dizer?--interrompeu Ermelinda, quasi
aterrada.

--Eu digo o que é verdade, rapariga!... Tenho minha presumpção de nunca
dizer senão a verdade... Lá o pespeguei na cara do sr. juiz de direito e
mais do sr. doutor delegado e mais doutores, quando fui a um juramento,
por causa d'aquellas pancadas no recebedor... É que nenhum d'esses
santalhões, d'esses missionarios me teem que ensinar n'esse ponto... Os
missionarios!... Eu, um dia, tiro-me dos meus cuidados e dou-me ao
trabalho de lhes ir perguntar, quando elles estiverem no pulpito, se
Deus lhes manda que tirem as mulheres de casa, para que os maridos não
tenham que comer, quando voltarem do trabalho... Um dia inda lhes vou
perguntar... isso vou...

--Olhe; a agua não tarda a ferver; verá que dentro em
pouco...--continuou Ermelinda.

--Bem, Lindita, bem--disse Augusto--em paga da boa vontade, com que
trabalhas, vou dar-te uma alegre nova.

--A mim? Diga.

--Trago-te visitas de alguem, que em poucos dias te dará em vez de
visitas, um abraço.

--De quem? Ah!... Angelo escreveu-lhe?

--Como adivinhaste depressa!

--Pois de quem mais havia de ser? Mas diz que... em poucos dias...
Então?

--Tel-o-hemos cá pelo Natal.

--Fala verdade?

--Assim m'o diz n'esta carta. Queres ler?

--Para quê?--respondeu a rapariga, fitando porém o papel com os olhos
cheios de curiosidade.

--Ora lê, lê... Até para vêr se ainda te recordas das lições, que eu te
dei.

--Ai, lá isso... mas, o caldo do meu padrinho...

--Deixa que o lume é que o ha de aquecer e não a tua presença.

Ermelinda approximou-se; tomando a carta das mãos de Augusto, começou a
lêl-a com intensa curiosidade.

Zé P'reira proseguiu no seu monologo:

--A religião, senhores--dissertava elle--não manda tal... Isso é que não
manda... A religião é a palavra de Deus... e Deus disse... sim... Deus
disse... Deus disse muita coisa... Disse que por este deixarás pae e
mãe. Ora a santa madre igreja é mãe, é, sim, senhores; que tem lá isso?
mas não é mais mãe do que a outra mãe... e então... senhores, uma mulher
não deve deixar por ella o seu marido; porque o marido, senhores, é o
tudo de uma casa, e o ganhapão da familia. Ora, senhores, que é forte
desgraça.

O monologo do desconsolado conjuge e a leitura de Ermelinda foram
interrompidos por uma voz potente, que cantava na rua.


  O dinheiro paga tudo,
  Não se fica a dever nada;
  Toma, toma o limão verde,
  Ó da fresca limonada.


E logo em seguida estalaram as taboas do soalho no corredor sob uns
passos pesados e ruidosos, e no limiar da porta da cozinha desenhou-se a
figura agigantada e herculea do recoveiro Cancella, pae da Ermelinda.
Cancella, ou o João Herodes, que assim tambem lhe chamavam por ter
creado, nos autos em que era actor applaudido e popular, o typo do
sanguinario e infanticida rei da Judéa, fôra pela natureza dotado de uma
estatura e robustez, dignas de Adamastor.

Encontrava-se n'elle uma d'essas felicissimas realisações dos
temperamentos sanguineos que, sem ameaçarem de insultos apopleticos, dão
riqueza ao sangue, vigor aos musculos e á physionomia o aberto e
colorido da saude e os reflexos da satisfação interior.

A barba negra e espessa cercava-lhe as faces córadas, e o natural fulgor
dos olhos parecia augmentado sob o duplo arco de bastas sobrancelhas,
que, quando contrahidas, os rodeavam de sombras ameaçadoras, d'onde
fuzilavam relampagos. Era formidavel então!

O riso pairava-lhe porém, nos labios, quando na presença de amigos,
descobrindo-lhe duas fileiras de alvissimos e bem dispostos dentes,
d'esses que os excessos e absurdos culinarios ainda não deterioraram.

Parando á porta da cozinha, o Herodes (ás vezes lhe chamaremos assim,
cedendo ao geral costume na aldeia) procurou com a vista alguem, que
mais que tudo trazia na memoria--a filha.--Esta, pela sua parte, mal o
reconheceu, correu a lançar-se-lhe nos braços.

O pae pegou n'ella, como se fôsse uma penna, levantou-a á altura dos
labios e pousou-lhe nas faces dois sôfregos e ruidosos beijos, ainda
palpitantes de todo aquelle intenso amor paternal.

--Ah!--exclamou, pousando-a no chão e respirando como quem acabava de
satisfazer uma intensa necessidade do coração.--Isto consola que nem o
copo de agua que a gente, em dias de calma, pede á borda da estrada,
quando se leva a bôca secca e queimada de poeira! Mais do que isso me
sabem estes dois beijos que te dou, pequena. Que querem?... Ó sr.
Augusto! tambem por cá?

--Esperava-o, Cancella.

--A mim?--continuou o homem, pousando no chão uma mala que trazia.--Pois
aqui me tem. Mas, dizia eu, um homem quando anda lá fóra, e pensa no que
lhe irá por casa, sente ás vezes uns sustos, que parece que lhe fazem
tudo escuro... As desgraças, para succederem, não põem muito... De um
momento para outro... E depois a gente ouve por lá conversas, vê coisas
que parece que são agouros... e que nos fazem a noite no coração... Umas
vezes é um enterro... outras, um desastre... um fogo... um... E as
creanças sós, e os paes fóra de casa!... Ai! Isto é de ralar o coração
de uma pessoa... Eu bem sei que em boa companhia me fica a pequena. Aqui
o compadre, tirante lá a sua aquella pelo sumo da uva... Quantos foram
já hoje, compadre, hein?... mas, tirante isso, é homem de bem: a comadre
é uma santa, que só tem o defeito de querer ser santa devéras... mas
emfim... tudo isso não obsta; uma coisa é uma pessoa saber o que lhe vae
por casa, outra... Tremem-me as pernas sempre que entro na aldeia. A
primeira alma de Christo, que encontro, estou sempre a vêr quando me vem
dar alguma nova má. Salta-me cá por dentro o coração, que ninguem faz
uma ideia; eu bem canto a vêr se disfarço, mas... Ai, filha da minha
alma, quando me passa pelo pensamento que te posso um dia vir achar
doente!... Assim me succedeu com tua mãe... Deixei-a uma vez tão
satisfeita e alegre, e vae, quando voltei, a primeira pessoa que
encontro, diz-me á queima-roupa: «Venha, sr. João, venha, que já não vem
sem tempo. Corra a casa, se ainda quer vêr sua mulher...» Foi como se
recebesse uma descarga em cheio no peito... corri, e...

A commoção impediu-o de continuar; disfarçou como envergonhado d'aquella
fraqueza, beijando a filha outra vez.

Ermelinda percebeu a perturbação do pae e disse-lhe carinhosamente:

--Para que está agora a pensar n'essas coisas que o affligem, meu pae?

--Deixa-me cá, rapariga. Isto ás vezes tambem faz bem. Mas, por isso,
quando entro em casa e te vejo, pequena, e te vejo com boas côres e
alegre... nem eu sei o que tem mão em mim, que não me ponho a dançar.
Ah!... ah!... Ninguem tem uma filha como eu! Olhe que não, sr. Augusto;
mal fica a mim dizel-o, mas... Lá por Lisboa e por o Porto ha muita
menina galante, isso ha; muita inglezinha loura, bonitas como anjos, mas
cabellos assim dourados?--e passava com orgulho os dedos pelos bastos
cabellos de Ermelinda--mas uma pelle assim delicada,--e afagava-lhe com
as mãos a face, quasi a mêdo--mas olhos assim a metterem-se mesmo pelo
coração á gente?--e beijava-lh'os com paixão--isso é que eu ainda não
vi, nem tenho de vêr. Como o Senhor concedeu um anjo d'estes a um
selvagem como eu, é que não sei... É a imagem da mãe!... Ella tambem era
poucochinho de si... miudinha e... Mas não pensemos n'estas coisas. Sim,
senhores; eis-me aqui outra vez, e por signal com a minha vida por
arranjar e eu posto á taramela. Trago-lhe uma encommenda, sr. Augusto, e
muitos recados, muitos.

--Já sei; Angelo escreveu-me.

--Escreveu? Ah, sr. Augusto, que rapaz aquelle! Aquillo é uma perola!
Com tres milheiros de demonios do inferno! d'alli ha de sair coisa
grande. Eu não queria morrer sem vêr o que saía d'alli. Brinca como uma
creança, mas, quando quer, põe-se sério, e fala como homem. E nada de
soberbas, nem de ares enfastiados, como tomam aquelles senhores da
cidade, quando conversam com uma pessoa rustica... Qual historia! Elle
tudo quer saber, tudo pergunta... isso é um nunca acabar, quando lá me
pilha... Então como vae fulano? e sicrano? e se já se fez aquella casa,
e se já acabou aquella obra, e se já casou este, e se inda vive aquelle,
e mais para aqui, e mais para acolá, e tudo quer muito explicado... Ah!
ah! ah!... tem diabo o pequeno... Pois cá a respeito da rapariga?...
Isso é uma comedia!... Não se farta de me ouvir falar d'ella... Ah, sr.
Augusto, ás vezes chego a ter pena de que isto nascesse minha filha.

Ermelinda fitou o pae com olhos espantados.

--Sim, filha,--proseguiu elle.--Deus não te devia dar a um homem como
eu, que emfim... Com os diabos! lá alma e coração... não quero que haja
ahi quem me leve a barra adeante. Eu por um amigo... e com mil demonios,
até por um inimigo, se não fôr soberbo, vamos lá, dou a camisa do
corpo... Mas o mundo... Bem, bem, eu cá me entendo. Vamos á minha
tarefa. Mas que tem você estado para ahi a prégar, compadre, desde que
eu entrei? Humh! humh! parece-me que já se cantou a gloria, hoje, visto
que já se está ao sermão.

Effectivamente Zé P'reira tinha apenas concedido ao seu compadre um
olhar de distracção e um aceno de mão, e voltára de novo ás suas queixas
amargas contra a sorte e contra a esposa.

Interrogado pelo Herodes, Zé P'reira reproduziu uma das suas
lamentações; o compadre, emquanto desenfardelava a mala, ia cortando com
reflexões proprias essa longa jeremiada.

--Então com que a ti' Zefa deixou-o sem caldo, hein? É mal feito, a
falar a verdade. Lume apagado em casa de familia é coisa triste... Aqui
está um livro para si, sr. Augusto... Mas deixe lá, compadre, que a
minha pequena arranja-lhe n'um ai algumas berças... Tambem eu estou em
jejum desde as cinco horas da manhã... mas estes missionarios! Ah! com
seiscentas mil duzias de demonios, eu ainda queria um dia...

--Deus nosso Senhor seja n'esta casa--disse uma voz gemida á porta da
cozinha.

--E o demo na do abbade--resmungou Herodes.

Era a sr.^a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, typo de beata,
que dispensa descripção, que regressava a casa depois de completar o
cyclo das suas devoções.

--Viva a comadre!--disse o João Cancella, continuando a mexer na mala.

Ermelinda foi beijar a mão á madrinha.

Augusto saudou-a affavelmente.

O marido obrigou o corpo a uma meia rotação sobre o alqueire, e,
voltando-se para a mulher, disse-lhe, agitando os braços e as mãos,
espalmadamente abertas:

--Mulher dos meus peccados, mulher de não sei que diga, olha que a
paciencia um dia acaba-se, mulher! Isto não pode continuar assim,
mulher! Eu não me casei para que tu me andes a ganhar indulgencias na
igreja, mulher!... Isto são preparos, mulher?... Um homem chega a casa e
acha o caldo por fazer, porque a senhora sua esposa deu em ouvir nove
missas por dia e uma duzia de novenas!

--Cala-te, cala-te,--retorquiu azedamente a devota metade do Zé
P'reira--cala-te para ahi, desalmado. Excommungado seja o mafarrico, que
assim me quer attentar logo que entro em casa! Olha lá que não morresses
de fome! Estás mal acostumado. Louvado seja Deus! Já não ha quem queira
soffrer n'este mundo mortificações! cuidas que não tens de soffrer as do
purgatorio? E Deus nos queira dar só o purgatorio e livrar-nos das penas
do inferno. Que muito mal fazemos por lhe merecer misericordia! Ora que
não ha de uma pessoa poder ter as suas devoções, que não venha encontrar
lamurias em casa! Ó minha rica Mãe do céo, seja para desconto dos meus
peccados! Sume-te, inimigo mau! E eu que deixei de rezar oito estações,
que prometti á Senhora da Rocha, e vae... Ora digam como ha de esta
gente cumprir os jejuns que manda a santa madre igreja, se, por duas
horas de espera, já se choram todos! Bemdito e louvado seja o
sacratissimo coração de Maria! Ó homem de Deus, e então aquelles santos
eremitas, que viviam no deserto de raizes e de agua das fontes...

--Que lhes prestasse. Haviam de andar muito gordos. Eu queria-os vêr com
uma enxada a trabalhar todo o dia no campo, e que lhes dessem depois
raizes para roer, a vêr se gostavam. Ora, senhores, que é forte desgraça
a minha! Mulher, a religião manda que olhemos pelo nosso cadaver. É má
christã a mulher que deixa o seu marido na penuria. Isto é que os padres
deviam ensinar. Vae-lhes lá perguntar se, quando chegam a casa, não teem
a sôpa e o toucinho á espera d'elles?

--Cala-te, tentador, que me andas a tentar, cala-te, tem vergonha n'essa
cara. Olha agora! Eu queria vêr-te com o trabalho do sr. padre Domingos.
Coitadinho! desde as cinco horas da manhã até agora a confessar!

--Confessar é parolar; ora adeus!

--Tu estás doido, alma perdida?!

--E cuidas que elle não leva marmelada nos bolsos?

--Ó chagas do seraphico S. Francisco, ainda mais terei de ouvir?!

--Mulher, deixemo-nos de historias; com jejuns ninguem engorda. Só os
santos... de pau.

--Vamos, vamos--disse o Herodes, intervindo.--Não vale zangarem-se por
causa d'isso. A minha pequena deve ter o caldo quasi feito. Comam-o em
santa paz e deixem-se de testilhas, que não é bonito; e muito menos
entre marido e mulher. Você, compadre, tambem tem culpas em cartorio;
vamos lá. Ha por ahi umas certas capellas, onde passa tambem bastante
tempo em devoção; emquanto á comadre, acredite o que lhe digo: a palavra
de Deus não é tão difficil, que uma pessoa precise de estar tanto tempo
a ouvil-a explicar. Eu cá penso que, fazendo a gente aquillo que lhe diz
o coração, e que não sente nenhuma aquella em fazer, vae por caminho
direito. E mais vale fazer o que Deus manda, do que levar a vida a pedir
perdão por o não ter feito. E tambem não é bonito estarem agora as
mulheres, horas e horas, pegadas ao confessionario, como lapas nos
rochedos, nem...

--Compadre!--atalhou escandalisada a sr.^a Catharina--compadre! É essa a
educação que dá á sua filha? São coisas que se digam deante de uma
creança de doze annos? Ande lá, ande lá... Ora Deus queira que lhe não
encontre ainda o pago. Era bem melhor que lhe ensinasse, ou mandasse
ensinar, a doutrina; que é mesmo uma vergonha o pouco que sabe d'ella.

--Bem tenho eu tempo para isso. A minha Ermelinda não deixa passar pobre
á porta, a quem não dê esmola; creança que não afague; velho ou velha,
que não corteje; reza todas as manhãs a oração, que a mãe lhe ensinou, o
Padre-Nosso e a Ave-Maria, onde se diz tudo o que se deve dizer a Deus;
de dia trabalha, como filha de pobre que é, e mulher de casa que ha de
ser... O Senhor me perdôe, se mais é preciso ainda, que mais não sei eu
ensinar-lhe.

--Não tenha soberbas, compadre, não tenha soberbas! E cautela com o mimo
que dá á pequena, que é o que perde muitas almas.

--Que mimo, que mimo? Logo eu com este genio de repentes é que hei de
dar mimo a esta pobre creança, que nem o da mãe conheceu!

--Ora diga, compadre, acha que é muito bem feito, da sua parte, deixar
andar a rapariga com esses cabellos soltos? Não sabe que o demonio...
cruzes! arma com elles laços ás almas das creaturas?

--Fracas prisões são as do diabo, se as forja só de cabellos!... Então,
por causa das tentações é que a comadre rapou os seus? Ah! ah! Tem
coisas! É teima velha! Eu já lhe disse, comadre: Deus, que deu á pequena
esses cabellos tão bonitos, é porque lh'os quiz dar. Se quizer, que
lh'os tire, eu é que não.

--Deus cerca-nos de tentações, para que nós as vençamos.

--Forte tentação venceu a comadre! aposto que os não cortaria assim, se
os tivesse como os da minha Ermelinda, hein! Cortar os cabellos á minha
filha, eu?! fazer d'aquella cabeça de cherubim uma d'essas cabeças
tosquiadas, que por ahi andam!

--Talvez ainda se arrependa!

--Deixe lá, comadre. O que eu vejo é que, junto de Deus e da Virgem, se
pintam anjos, como a minha pequena, e não figuras... respeitaveis, como
a da comadre; ora então...

A beata, apesar de trazer sempre na memoria o _Vanitas vanitatum_ do
_Ecclesiastes_, não foi inteiramente insensivel ao remoque do compadre.
Azedou-se-lhe o humor, e, voltando-se para Ermelinda, disse-lhe como
para descarregar sobre ella a má vontade com que estava ao pae:

--Sae-te p'ra lá. O senhor meu homem tinha muita pressa de jantar!
Deixar assim uma creança fazer uma fogueira d'estas! Nem para assar um
boi! É preciso não ter consciencia.

E tirou do lume um pequeno cavaco, para justificar o dicto.

Zé P'reira monologava ainda. Augusto continuava examinando o livro
recebido.

Ermelinda afastou-se do lar com timidez. No animo d'aquella creança, que
era de uma organisação nervosa, excepcional na aldeia, exercia a beata
uma especie de fascinação, um mixto de respeito e de terror, capaz de
dissipar todos os risos dos seus labios infantis. Era outra na presença
da madrinha, fitava-lhe nas faces descarnadas e macilentas os bellos
olhos negros; seguia-lhe, quasi assustada, o movimento dos labios
austeramente contrahidos; tremia ao escutar-lhe a voz aguda e
penetrante, falando nas penas do inferno; chorava á menor reprehensão
que d'ella recebia, e comtudo amava-a, amava-a, porque Ermelinda na sua
candura de creança, suppunha a madrinha uma santa; avultavam-lhe, como
virtudes beatificantes, os defeitos da devota velha; a innocente
julgava-se uma grande peccadora quando, depois de ter na mente aquelle
perfeito typo, voltava a olhar para si, para o fundo da sua consciencia;
e que negros e hediondos peccados lá encontrava! Uma pequena mentira que
dissera; um domingo em que faltou á missa; um juramento que, sem o
sentir, lhe saira da bôca; um jejum que não guardára, e outros crimes da
mesma fôrça. A amedrontada creança chegava a receiar pela salvação da
alma.

É sempre funesta a influencia que exercem sobre a infancia os caracteres
como os da beata.

O Herodes percebeu a impressão sob a qual estava a filha e acudiu-lhe.

--Toma lá, Ermelinda--disse elle, tirando da mala uma pequena medalha
com um retrato.--É um presente do nosso amigo Angelo para nós, ou antes,
para ti...

Ermelinda pegou no retrato com não reprimido alvoroço. Era outra vez a
creança.

A madrinha lançou para a medalha um olhar obliquo e reconheceu o
retrato.

--Em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo!--rompeu ella, com um
espanto exaggerado.--Este homem não tem a cabeça no seu logar, por mais
que me digam! Elle quer perder a filha de certo! A fazer a cabeça doida
a uma creança!

O Herodes, ouvindo estas palavras, pousou com impeto a mala no chão, e
com os olhos chammejantes e as faces injectadas, vociferou, cedendo o
campo á cólera, que se lhe accumulou no seio:

--Com seiscentos milhões de diabos! Você que está ahi a dizer, mulher?
São os sermões dos missionarios, que lhe teem assim afiado a lingua e
deitado peçonha na baba? Com effeito! Saiba que dou mais pela creança,
de quem é aquelle retrato, do que por quantos sotainas lhe ouvem os seus
peccados todas as semanas e por quantas beatas andam comsigo a dar
marradas no lagêdo da igreja. Fazer a cabeça doida á minha filha! Tenha
mão na lingua, comadre, que lhe não soffro tanto. Doida lh'a trazem a
vossemecê os missionarios e os sermões. Seu marido fôra eu, que a mania
lhe tirava.

O Zé P'reira, apesar dos seus desgostos domesticos, zelava a dignidade
do casal; e não levava á paciencia que outro, além d'elle, dissesse
d'aquellas verdades á mulher; por isso, ouvindo-as, através dos sonidos
que lhe chiavam nos ouvidos, levantou-se, e sustentando-se nas pernas
vacillantes, e bracejando sempre, bradou:

--Compadre! Eu sei quaes são os meus deveres! Compadre, prudencia!...
Compadre, eu não consinto... Ora, senhores, que é forte coisa!
Compadre!... veja que eu é que sou aqui o chefe da familia e esta é
minha mulher! Pschiu... Basta... Compadre... basta. Então? Ora,
senhores.

Mas o Herodes já nada attendia; cada vez mais lhe crescia a vermelhidão
nas faces; a irritação rompera os diques da cordura e ameaçava engrossar
cada vez mais. Ás exclamações de Zé P'reira respondia já azedamente.

--Ora adeus, temos conversado... Seja homem, que bem precisa... Não
basta dar á lingua... Na taberna não é que se governa a casa...

A sr.^a Catharina abstinha-se agora prudentemente.

Ermelinda, pallida, a tremer, abraçou o pae, quasi chorando.

Augusto, que fôra alheio ao principio da contenda, conheceu emfim que
precisava de intervir. Saiu-lhe difficil a empreza.

Ensurdeciam os ouvidos dos contendores, a um o sangue, a outro o vinho.

Depois de muito custo, conseguiu emfim apazigual-os. Deram-se mutuas
satisfações, e separaram-se apertando as mãos.

Augusto retirou-se com João Cancella e Ermelinda.

O par conjugal ficou, renovando-se cêdo entre elles a interminavel
contenda em que viviam.

 


VIII


Saindo de casa do Zé P'reira, Augusto teve de escutar, ainda por muito
tempo, as vociferações e pragas, com que o Herodes acoimava a fraqueza
do compadre, que assim deixára a mulher tomar sobre si um ascendente
offensivo da dignidade varonil. Augusto ouviu tudo com resignado
silencio e attenção um pouco distrahida, conseguindo emfim a custo
soltar-se das mãos do seu interlocutor, que, no fogo da exposição de tão
justos aggravos, lhe segurava os braços com pouco affavel vivacidade; a
final, porém pôde deixal-o e voltou a casa.

Entrando no seu quarto, um pequeno e modesto quarto, mobilado com uma
banca, poucas cadeiras e uma estante, cheia de livros, Augusto respirou.

Era alli o seu logar de descanço; a escola era em outra casa vizinha.
N'esta não havia, a amargurar-lhe as horas do repouso, vestigios que lhe
recordassem as do supplicio.

Leitor philantropo, que, abrazado em santo amor da humanidade, só
entrevês delicias na tarefa do ensino, e fazes d'este vigiar e
encaminhar o espirito infantil, que desabrocha e respira pela primeira
vez no fecundo ambiente da sciencia, um seductor quadro de phantasia,
perdôa-me a palavra, supplicio, de que me servi, e perdôa ainda mais ao
caracter de Augusto o ter saido exacta a expressão, que te feriu os
humanitarios instinctos.

Eu bem sei que é uma sublime missão a do mestre: e que é uma graciosa e
amoravel idade a da infancia, e poucos melhor do que Augusto possuiam
presente o ideal de uma e amenisavam á outra com branduras os amargores
do penoso tirocinio;--mas que importa? nem por isso é menos real o
supplicio. A cultura dos espiritos é como a cultura das terras. O
lavrador exulta, estremece de prazer, vendo pullular do solo, arado e
semeado de pouco, os rebentos do grão que o calor fez germinar, e
volverem-se as folhas, estenderem-se e enflorarem-se os ramos, penderem
os fructos e colorirem-se das tintas da madureza; mas, emquanto vergado,
coberto de suor, arquejante, se afadiga a arrotear o terreno duro e quem
sabe se ingrato aos seus cuidados, muita vez lhe fallece o alento, e se
olha de quando em quando para o céo, não é para lhe agradecer, com risos
os gôsos que elle lhe dá; mas para lhe pedir, com lagrimas, a fôrça que
lhe mingúa.

De igual modo, se é grato ao cultor das intelligencias o vêl-as
desenvolver, florir, fructificar; ardua, improba, desesperadora é muita
vez a tarefa da sua primeira educação. É mister possuir um grande
thesouro de ideal, para que o suave e risonho typo, que da infancia
concebemos, não se transtorne, na phantasia d'estas victimas d'ella, em
não sei que figura diabolica e maligna, que lhes envenena todos os
momentos de alegria.

Além d'isso, o pobre professor de instrucção primaria, sobre quem pesam
os mais fastidiosos encargos da instrucção, não pode ser comparado
absolutamente ao agricultor do nosso simile; é antes o jornaleiro
contractado por magro salario, para, á fôrça de braço, lavrar o solo,
d'onde, mais tarde, romperá a vegetação, que elle não terá de vêr e que
a outros concederá os gôsos e o beneficio. Venceu tambem o humilde
professor, e por o mesmo preço que o jornaleiro, que não vão mais longe
com elle as liberalidades dos nossos governos, venceu as maiores cruezas
do magisterio; mas não verá tambem o resultado das suas fadigas.
Fogem-lhe as intelligencias, que educou, justamente quando com mais amor
as devia contemplar, e, se o destino reserva a qualquer d'essas
intelligencias um futuro de glorias, raro é que volvam um olhar
agradecido para as humildes mãos, que as sustentaram, quando ainda não
tinham azas para voar.

Quasi todos os grandes homens commettem esta ingratidão. Falam nos seus
mestres de philosophia, de mathematica, de litteratura, e não salvam do
esquecimento, pronunciando-o, o nome do primeiro mestre, do que os
ensinou a ler.

Considerações da ordem das que acabamos de fazer, quero acreditar, não
são as que mais preoccupam o pensamento da maioria d'esses pobres
diabos, que, por noventa mil réis annuaes, se deixaram ligar á atafona
do ensino primario da aldeia; porém devem ser, além das miserias de tão
mesquinha sorte, causas de grandes torturas moraes para alguma alma de
instinctos e aspirações mais elevadas, que o destino amarrasse, como por
escarneo, a este poste de expiação. N'esse caso estava por certo a alma
de Augusto. No vasto mundo, que os livros abrem ás imaginações, que na
vida real não encontram deleite, refugiava-se elle nas horas em que as
suas obrigações lhe permittiam respirar.

D'esta vez, porém, por pouco tempo lhe foi dado saborear esse prazer.

Soaram nos vidros da janella pancadas repetidas e chamou-o de fóra uma
voz bem conhecida d'elle.

Era a do mestre de latim, o sr. Bento Pertunhas.

--Sr. Augusto, ó meu querido sr. Augusto. _Amice!_ Pode falar a um amigo
e colega?--dizia elle.

Augusto foi abrir-lhe a porta, não reprimindo um gesto de enfado.

O latinista entrou esfregando as mãos.

--A ler, hein! sempre a ler! sempre amarrado aos livros!--dizia elle,
batendo no hombro a Augusto.--Invejo-lhe mais a pachorra do que o
proveito. Olhe que não medra com isso; nem ninguem lhe agradece as
canceiras que toma. Meu rico, por dois dias que um homem passa cá n'este
mundo, tolo é o que se mata. E então n'este paiz!... Faça como eu.

E, imitando com a bôca os sons da trompa, seu instrumento predilecto,
poz-se a examinar os livros que via sobre a mesa.

--Então que estava lendo? que estava lendo?... Poh! poh! poh!...
Versos... Ora que nunca pude gostar de versos!... Poh! poh!... E não é
agora porque se diga que não tinha quéda; não, senhores; em tempos fiz
até algumas quadras... Poh! poh!... já se sabe, até certa idade, mas
nunca fui muito para ahi... Poh!... A minha vocação é para a musica...
Poh! poh!... Lá para a musica, sim... Poh! poh! poh!... Herman e
Dorothéa--continuava elle, examinando os livros.--Novellas... Poh!... E
isto que é? _Confessions_ de Rousseau--n'este nome deixou aos diphtongos
o valor portuguez--Poh! poh! As Metamorphoses... Latim! Oh que massada!
Poh! poh! poh! poh!...--E o Ovidio, que lhe chegára ás mãos, foi
arremessado como se estivesse em braza.

Augusto não pôde conservar-se sério, ante o instinctivo movimento de
repulsão do mestre.

--Então que boa fortuna o traz por aqui, sr. Pertunhas?--perguntou elle.

--Ai, é verdade; eu lhe digo ao que venho. É para lhe pedir um favor,
meu caro sr. Augusto. Eu bem sei que é abusar da sua bondade...
_Quousque tandem, Catilina_... Mas, é por esta vez...

--Já sei; quer que lhe vá dar lição aos rapazes.

--Ah! grande maganão, que adivinhou--exclamou o mestre, abraçando
Augusto com effusão.--É isso mesmo, se lhe não custasse...

--Irei.

--É que... eu lhe digo, eu tinha hoje de ir ao ensaio da philarmonica...
Percebe o senhor? Os Reis estão ahi á porta e as outras festas do Natal,
e não ha tempo a perder... Percebe? E eu tenho ainda umas peças do
_Trovador_ para ensinar á minha gente. São muito bonitas... Poh! poh!
poh! E então este anno, que pelos modos temos cá o conselheiro e mais o
pequeno... Não contando com esse sujeito que ahi chegou a Alvapenha.
Chama-se Henrique de Souzellas, é sobrinho da velha, da D. Dorothéa, e
julgo que ainda aparentado no Mosteiro. Lá chamam-lhe primo. Esteve lá
esta manhã um par de horas, logo que saiu da minha repartição. Dizem-me
que é filhote de Lisboa, solteiro, rico e sem modo de vida. Rico e sem
modo de vida! Que lhe parece, hein? Olhe que sempre ha gente muito
feliz! Aqui para nós, sabe ao que me cheira a visita d'este senhor?
Aquillo é mosca que vem ao cheiro do mel. Que diz, hein? Ninguem me tira
d'isto. Pois não lhe parece, hein?

--Não sei bem o que quer dizer com a imagem--respondeu Augusto,
levemente enfadado.--Além de que não posso adivinhar as intenções de um
homem que pela primeira vez encontrei esta manhã.

--Pois está claro que não; nem eu; mas emfim uma pessoa logo tira pelo
que vê... Ora pois diga, um rapaz de Lisboa, afeito a divertimentos, a
boa musica, _et coetera_, andar leguas e leguas para se metter n'este
desterro... Porque isto é um desterro. Sim, deve concordar que não é
natural. Mas se a gente se lembrar de que a morgadinha, _et coetera_...
O senhor bem me percebe... Todos, hoje em dia, sabem o preço ao
dinheiro, meu amigo.

A verbosidade do mestre Pertunhas estava evidentemente incommodando
Augusto, que não redarguia.

--Nada, nada; alli anda plano, com certeza. Pelos modos, já depois de
ámanhã vae o rapaz acompanhar as pequenas á ermida da Saude. Ah!... mas
agora me lembro! o senhor é tambem da sucia.

--Eu?!

--Com certeza. Disse-m'o o Damião, que tem ordem das pequenas para o
convidar. Se ainda não recebeu o recado, ha de recebel-o. Em todo o
caso, observe-o e verá se eu tenho razão.

--Vou jantar, sr. Pertunhas, que já ha muito para isso me chamou a
criada--disse Augusto, erguendo-se como para fugir áquella conversa.--Em
seguida irei aos seus rapazes.

--Então vá, vá. Deus lhe pague o favor que me faz e permitta que eu lhe
não peça muitos d'estes. E eu tenho esperanças... Sabe que ando com
ideias de arranjar o lugar de recebedor, que está, como diz o outro, a
encher dias? Já falei ao conselheiro; mas o conselheiro promette muito e
falta melhor, sobretudo a um homem que não tenha influencia em eleições.
O sr. Joãozinho das Perdizes interessa-se por mim, é verdade; mas, por
outro lado, o Seabra brazileiro faz-me guerra. Eu ando a vêr se consigo
pôr o Seabra a meu favor, porque emfim... Mas vá, vá jantar, que eu
espero.

--Se quizer fazer-me companhia...

--Muito obrigado. Eu já jantei. O meio dia é a minha hora. Jante á sua
vontade.

Augusto saiu da sala. Mestre Bento Pertunhas, ficando só, deu algumas
voltas cantarolando, sentou-se depois, e pegando na pasta de Augusto,
poz-se a examinar os papeis que ella continha.

Ao mesmo tempo simulava umas variações de trompa, á fôrça de contracções
e esgares dos labios.

A pasta, victima da indiscreção do mestre, era a mesma que Augusto
trazia, quando o vimos no Mosteiro.

Entre os documentos contidos n'ella algum achou o mestre Pertunhas mais
curioso do que as escriptas e themas dos discipulos, pois, ao lêl-o,
desenhou-se-lhe no semblante a mais intensa curiosidade e cessou de todo
a exhibição acustica, que com tanto ardor encetára.

Leu-o até o fim com crescente avidez; e depois, olhando em volta de si,
para verificar que não era observado, dobrou-o e sorrateiramente o
escondeu no bolso. Fechou outra vez a pasta, pousou-a no sitio d'onde a
tirára, continuou a ler ou a fingir que lia com toda a attenção um livro
e encetou novas variações de trompa.

--Então já! Apre! Isso é jantar a vapor--disse o latinista, pondo-se a
pé, logo que Augusto voltou.

E momentos depois sairam juntos.

Querendo poupar os leitores á semsaboria de assistir a uma lição de
latim e a um ensaio da philarmonica, deixal-os-hemos ambos, para
voltarmos ao Mosteiro.

Ao fim da tarde, depois do jantar, estavam as duas primas sentadas ao
parapeito do muro da quinta, d'onde, por sobre almargens e pomares
vizinhos, a vista se espraiava em amplissimo horizonte até umas nuvens,
que pareciam limital-o.

D. Victoria saboreava, no seu quarto, as delicias da sesta habitual. As
creanças brincavam a alguma distancia, e os risos e os clamores d'ellas
vinham como um chilrear de passaros aos ouvidos das duas raparigas, que,
a cada momento, se surprehendiam em meditativo silencio.

A natureza estava serenissima. No occidente desenhavam-se estreitos e
longos traços nebulosos, a que o sol dava um colorido tão ardente, que
se o pintor paizagista o produzisse na palheta, hesitaria, ao passal-o á
tela, com receio de que o acoimassem de exaggerado. O verde dos campos
apresentava a gradação vigorosa, que a luz de um formoso dia de inverno
costuma dar-lhe.

Christina interrompeu o silencio por fim.

--O que eu não sei--principiou ella--é como o primo Henrique de
Souzellas...

--Onze!--atalhou a morgadinha, sem desviar os olhos do ponto da
perspectiva, que fitava.

--Onze quê?--perguntou Christina, erguendo os d'ella.

--Com esta são onze as vezes que, esta tarde, depois de um longo
silencio, abres a bôca para me falares no primo Henrique de Souzellas,
uma vez que está decidido que seja primo.

Christina fez um gesto de despeito e córou levemente.

--E então que queres dizer com isso?

--Eu? Nada. Digo só que são onze vezes com esta.

--Não sabia que era prohibido falar-te no primo Henrique. Bem, n'esse
caso falaremos em outra coisa. Está um tempo muito bonito: nem parece
dezembro.

--Não; vae magnifico para os nabaes--replicou Magdalena zombeteiramente.

--Se não mudar com a nova lua--continuou Christina, ainda formalisada.

--É excellente para seccar os milhos, que bem precisavam ainda d'isso,
principalmente os das terras baixas.

E, acabando de dizer estas palavras, a morgadinha desatou a rir.

--Não sei de que te ris!--acudiu Christina, cada vez mais séria.--Pois
não é esta a conversa de que tu gostas?

--Ai, muito. Eu sou doida por estas coisas de lavoura; bem sabes.--E,
mudando repentinamente de tom, accrescentou:--Ora vamos, Christe; não te
zangues commigo.

--Não, mas é que ás vezes não te entendo, a falar verdade. Vens com umas
coisas que mettem raiva--respondeu-lhe Christina, sempre agastada.

--Já estou arrependida; peço perdão. Fala lá á tua vontade no primo
Henrique, fala; que eu não contarei as vezes que o fizeres.

Christina reproduziu o gesto de impaciencia.

--Agradeço a tua generosidade, mas já não tenho mais que dizer d'elle
agora; por isso...

--Pelo menos completa a duzia.

--Lena! Então! Olha que se continuas com isso, fazes-me sair d'aqui.

--Sempre queria que te vissem agora, Christe, esses que andam por ahi a
gabar a docilidade do teu genio, as branduras da tua indole; queria que
te vissem essa cara arrenegada, para saberem que tambem ha um acidozinho
na tal doçura... Mas fazes-me a graça de só para mim teres d'essas
franquezas.

Christina sorriu, ainda que não de todo aplacada, ao ouvir esta reflexão
da prima.

--E não sabes a razão d'isso?--respondeu-lhe ella--a razão é o genio que
tens, Lena. O teu gôsto é mortificares uma pessoa. Não ha santo que não
perdesse a paciencia comtigo.

--Que injustiça! que ingratidão! Eu, que sou a victima das tempestades
que o teu genio pouco expansivo te junta no coração a todo o instante!
Se alguma coisa te faz chorar, guardas as lagrimas para o meu quarto; se
te irritam, vens desafogar as tuas cólerazinhas sobre a minha cabeça. E
pagas-me assim!

--És muito infeliz commigo. Pobre Lena!

--Vamos, vamos, Christe! esquece o que eu disse ha pouco. Não te posso
vêr assim.--E tomando um tom natural, mas sob o qual transparecia ainda
certa malicia, Magdalena continuou:--Pois é verdade, dizias tu que não
sabias por que o primo Henrique de Souzellas...

Christina fez um movimento impaciente, como para levantar-se.

--Então que é isso? Não me acceitas a expiação?--perguntou Magdalena,
sorrindo.

--Não; não quero que se fale mais no sr. Henrique de Souzellas. Vejo que
te não é agradavel que as outras se occupem d'elle. Sejam quaes forem as
razões que tens para isso...

--Bravo! Foi admiravel de maldade o entono com que disseste esse: «Sejam
quaes forem as razões.» E venham-me falar na candura d'esta creança!

--Eu não quero dizer...

--O que queres dizer, não sei; mas vejo que não és senhora tua quando se
fala n'este assumpto.

--Que lembrança!--tornou Christina, cada vez mais embaraçada--pois
imaginas devéras que eu?...

--E por que não?

--Lena!

--Não ha nada mais natural.

--Se queres, juro-te...

--Ah! atalhou a morgadinha, pondo-lhe a mão nos labios.--Isso não, que é
mais sério. Jurar não te deixo eu. Conheço os escrupulos da tua
consciencia, e não quero obrigar-te a remorsos. «Juro!» E com que
ousadia ias pronunciar um juramento falso!

--Falso!

--Falso, sim; falso como os que o são. Olha, minha pobre Christe, queres
então que te fale com toda a franqueza? Esta conversa trouxe-a eu de
proposito para confirmar umas suspeitas, que se me formaram e que vejo
agora que eram fundadas.

--Suspeitas! que suspeitas?...

--O primo Henrique de Souzellas deixou em ti uma tal ou qual impressão.

--Lena!

--Conheci isso ainda quando elle cá estava; verifiquei-o depois e agora.
Então! tem juizo. Commigo sê sempre o que tens sido. Eu góso ha muito do
privilegio de conversar á vontade comtigo e de te vêr sem aquella
timidez que tens deante dos outros. Com o teu genio, precisas de uma
pessoa, como eu, com quem não tenhas acanhamento e em quem possas até
descarregar algumas maldadezitas; e acredita que me lisonjeio com me
dares a preferencia.

--Mas como imaginaste?...

--Continuas? Não tens de que te envergonhar pelo interesse que por
ventura te inspirou esse rapaz. Henrique de Souzellas é elegante, é
espirituoso, affavel, possue uma intelligencia cultivada e muito trato
do mundo...

--Mas...

--Faça favor de me ouvir--atalhou Magdalena, pondo um dedo nos labios.
Reconhecendo todas essas qualidades n'aquelle nosso primo, não quero por
isso concluir que seja natural e prudente denunciares-te já. E nem
receio que isso aconteça, para te falar sinceramente, porque te conheço
o genio timido e porque... porque te conheço o genio timido e mais nada.

Havia mais alguma coisa, havia, mas não era coisa que se dissesse.
Magdalena sabia demais que Henrique não saíra d'aquella primeira visita
demasiado impressionado por a imagem de Christina; sabia talvez,
suspeitava de certo, não me atrevo a dizer que lisonjeada algum tanto,
que no coração do hospede de Alvapenha reinava outra imagem mais
persistente. Mas vejam as leitoras se, sendo este o seu pensamento, ella
o poderia formular? O remedio pois era completar a phrase como a
completou.

Christina já não tinha ousadia para negar, nem ainda coragem para
confessar. Encostando a face á mão, calou-se e deixou falar Magdalena.

A morgadinha proseguiu:

--É preciso que saibas, Christe, que é mais facil conhecer os defeitos
de uma pessoa, do que as suas boas qualidades. Os defeitos são
imprudentes e linguareiros, denunciam-se, dão signal de si, basta meia
hora para se descobrirem em qualquer logar que habitem. As boas
qualidades, não; essas são modestas, humildes, discretas; sabem
esconder-se. São precisos annos para as descobrir todas. Mas com que
olhos de espanto me estás fitando! Parece que te causa estranheza o meu
sermão? Eu te digo a que elle vem. Logo que falei com este nosso
primo... e quem sabe se o futuro virá confirmar, em relação a mim, esse
titulo, que por phantasia lhe dou? escusas de corar por eu dizer isto,
Christe...; mas, dizia eu, logo que falei com elle, saltaram-me aos
olhos muitos dos seus defeitos.

--Quaes são?--perguntou Christina com viveza.

--Socega; são ligeiros felizmente, e parece-me que os poderá ainda
perder; sobretudo se continuar a viver aqui. Quiz-me tambem logo parecer
que no fundo havia uma mina de bons sentimentos por explorar. Nasceu
logo em mim a vontade de o sondar, a vêr se conseguia purifical-o do que
n'elle houvesse de menos heroico. Então que queres? para a aldeia era um
passatempo como outro qualquer. Mas redobrou-se em mim este desejo e
revestiu em mim mais sério caracter, desde que vi a impressão que este
sobrinho da tia Dorothéa te causára.

--Lena! Como te deu para suppôr que eu me apaixonei assim em poucas
horas? Julgo que me imaginas apaixonada?

--Não, ainda não; inclinada, agradada, attrahida... ou outro qualquer
termo d'esta fôrça, que deixarei á tua escolha, isso sim. Para isso não
é preciso muito tempo. As razões, pelas quaes julguei isto, dispensa-me
de t'as dizer, que pouco valem. Suppõe que foi por um tacto especial,
por uma qualidade occulta, como a do tino que dizem que teem certos
medicos para reconhecerem o mal sem estudarem muito o doente.

--Pois o tino enganou-te.

--Enganaria; mas deixa-me continuar. Se este senhor primo intruso fôr
realmente o que eu imagino que é, resta-me preparal-o para o tornar mais
digno do amor d'esta boa Christe, que em tal caso favorecerei; se não
fôr, declaro-lhe já guerra e guerra de morte. A ti competia fazer isso
tudo, como a mais interessada, mas desconfiei da tua credulidade e boa
fé e da tua experiencia. Olha, estou certa que o que mais te attrahiu em
Henrique foi exactamente o que n'elle ha de peor. Certo verniz
mentiroso, certo colorido, que é preciso ter visto muita vez, e em
muitos individuos differentes, para se ter na conta devida. Illude,
agrada a quem não está costumado, e pode causar graves enganos e
desenganos mais graves ainda. Por emquanto o que elle nos mostra é mais
da sociedade em que vive, do que d'elle proprio. É necessario deixar
cair a primeira capa, para que o natural appareça.

--Não sabia que era assim facil enganar-se uma pessoa a respeito de
outra--notou Christina, sorrindo.

--Se é! Lembras-te do que tantas vezes conta tua mãe? Que, quando ha
annos foi a Lisboa, comprou lá por bom preço um cofrezinho que ella
suppunha preciosissimo, e que chora hoje a sua tentação, desde que o
verniz brilhante, que elle tinha, caiu e ficou á vista a realidade? pois
o mesmo acontece muitas vezes em contractos de outra ordem e bem mais
sérios do que este. Ha vernizes maravilhosos, que illudem os
inexperientes.

Houve um instante de silencio, no fim do qual Christina perguntou,
olhando pela primeira vez fita para Magdalena:

--Ora dize-me, Lena, qual será a razão pela qual eu não devo acreditar
que esses pensamentos te occorreram, porque era o teu destino, e não o
meu, que vias dependente do estudo que fazias?

A morgadinha fixou na prima um olhar triste e cheio de amargas
recriminações.

--Por uma razão muito poderosa, Christe, porque ias abrir o coração a um
sentimento mau, que macularia o teu caracter generoso e candido--a
desconfiança. Porque me offenderias, duvidando da lealdade, com que te
falo, quando te falo séria; e porque me farias mal sem necessidade e
immerecidamente, pois que a consciencia me diz que t'o não merecia.
Satisfaz-te esta razão?

A voz de Magdalena perdera o tom de ironia, que ás vezes tinha, e tomára
quasi o da commoção.

Christina arrependeu-se logo do que dissera, e, tambem commovida,
apertou as mãos da amiga.

--Não faças caso do que eu disse, Lena; perdôa-me. Quando eu duvidar de
ti, pedirei a Deus que me tire a vida, porque terei já, para tudo e para
sempre, envenenado o coração.

A morgadinha readquiriu outra vez o seu bom humor.

--Estamos quasi a cair no sentimentalismo. Cautela! Saldemos antes as
nossas contas, como mulheres de juizo. Em compensação da pequena offensa
que me fizeste, vaes-me fazer uma confissão formal, a qual até agora
tens evitado. Ora confessa, adivinhei o estado do teu coração? Dize.

Christina hesitou.

--Vamos,--insistiu a morgadinha--acredita que preciso de uma declaração
para me guiar... E crê que é para bem teu.

--Que queres que te diga? Eu não me sinto apaixonada.

--Mas já te disse que me bastava um termo menos violento... um
«agradada», por exemplo.

--Confesso que...

--Olha, se queres, podes até parar ahi. Esse «confesso que...» já diz
muito. Agora deixa-te guiar por mim. Eu vigiarei. Afianço-te que não
corro o perigo de me apaixonar por elle; creio que ha alli um excellente
coração, mas que queres? Não é o typo que me agrada... o meu ideal como
se costuma dizer.

--E então qual é o teu ideal?

--Ai, eu sou muito exigente. Desespero de o encontrar. Quero-o assim uma
especie de archanjo S. Miguel, animo de guerreiro em figura de cherubim;
e não sei onde o procure.

N'este sentido se prolongou o dialogo entre as duas primas, até que D.
Victoria, findando a sua sesta, veio ter com ellas á quinta. Segundo o
costume, ralhava contra os criados, a quem, não sei por que processo,
attribuia umas dôres de cabeça com que acordára.

No dia seguinte, Henrique voltou de manhã ao Mosteiro; redobrou de
galanteio com Magdalena, a qual redobrou de ironia. Christina já mal
podia disfarçar a pena que lhe causava o pouco que era attendida, mas a
sua timidez não a deixava luctar.

De tarde, Henrique teve de condescender com o padre, procurador de
Alvapenha, que se promptificou a mostrar-lhe as raridades e monumentos
da terra. Assim, com grande pesar seu, foi obrigado a renunciar á nova
visita ás senhoras do Mosteiro, para gastar as expressões da sua
admiração deante das alfaias da sacristia parochial; da tosca esculptura
de não sei que imagem de santo, a qual passava por um primor; de uma
sala nua, com uma mesa ao centro, forrada de baeta verde e cadeiras á
volta, que era a sala das sessões do corpo municipal; e de umas
pyramides de ripa, que tinham servido, havia oito annos, em festejos
officiaes.

Como é de suppôr, Henrique passou uma tarde deliciosa.

 


IX


Dois dias depois da chegada de Henrique, e n'aquelle que se destinára
para o passeio á ermida, Christina foi mais madrugadora do que as aves.
Á hora, a que estas ainda se não ouvem chilrear, já a prima de Magdalena
abandonava o leito, receiosa de se fazer esperar pelos companheiros da
projectada excursão matinal. Quasi não dormira toda a noite aquella
rapariga, com tal preoccupação.

As estrellas viram-a erguer, e tiveram muito tempo de se despedirem
d'ella, antes de se esconderem discretas ante o apparecimento do dia.

Christina vestiu-se á pressa e dirigiu-se ao quarto de Magdalena. Esta
dormia ainda. O projecto de passeio á ermida não a alvoroçára tanto.
Christina foi acordal-a ao leito.

A morgadinha abriu os olhos e fitou-os admirada na prima.

--Que queres tu, Christina? Que lembrança foi essa hoje de andares
estremunhando a casa esta noite?

--Levanta-te, preguiçosa, levanta-te. Não o dizia eu hontem? Então são
estas as madrugadas em que falavas?

--De certo que não são madrugadas; isto é noite é o que é.

--Dentro em pouco é dia. Queres vêr?

E, dizendo isto, Christina abriu para traz as portas das janellas e
correu as cortinas.

A estrella da manhã, Venus, aquella brilhante e ao mesmo tempo suave
estrella, que umas vezes assiste no crepusculo ás melancolias da
natureza, outras vezes na aurora ao renascimento dos seus jubilos,
scintillava mesmo defronte do leito de Magdalena.

--Vês?--disse Christina.

--Muito pouco. É esse o teu sol? Como vae alto! É pena que não alumie
melhor do que esta lamparina.

Christina sentia redobrar com estas delongas a sua impaciencia, quasi de
creança.

--Anda, Lena, anda. Assim não chegamos a vêr do alto da ermida o romper
do sol.

--Pois queres vêr isso de lá?! Que crueldade! Em uma manhã de dezembro!

--Está tão bonita, que parece de primavera.

--Triste lembrança a nossa hontem de combinarmos este passeio. Isto é lá
coisa que se faça? Vale por uma viagem aos pólos.

Christina não fazia senão ir do leito de Magdalena para a janella e
voltar da janella para o leito, em virtude d'aquella irresistivel
necessidade de movimento, embora sem ordem nem fim, que experimentamos
quando nos deixamos apossar da impaciencia.

--Não fazes ideia como está bonito cá fóra; n'alguns pontos ainda se vê
neve.

--Oh, que agradavel e tentadora belleza! Ainda se vê neve!... Parece-me
que já estou gelada... Com essa palavra tiraste-me o alento que ia
ganhando. Vês?

--Mas não está frio; até parece que aqueceu o tempo. Então, Lena!...
Elles... não tardam por ahi. Cuidas que te vae custar muito, e é um
engano; aqui estou eu, que não sinto frio nenhum.

--Ora, mas tu estás em condições muito particulares. Quem tem uma
fogueira no coração, não precisa...

--Ahi principias com as tuas coisas!

--Eu não sei; o que é certo é que esse teu enthusiasmo pelos passeios
matutinos não é natural. Quantas vezes recusaste acompanhar-me quando eu
t'os propunha? Ora, se me dás licença, eu explico isso.

--Não quero saber de explicações; veste-te, anda.

--Seja! Infeliz lembrança a d'este passeio. E foi d'aquella tia
Victoria, que nem por isso nos quiz acompanhar. Não, que já tem juizo;
dorme a estas horas o somno da madrugada, que é uma consolação. Que
sorte de invejar!

E a morgadinha, continuando assim a exaggerar o sacrificio d'aquella
madrugada e a alludir aos motivos secretos a que attribuia o ardor e
heroicidade da prima ante os rigores de dezembro, tudo isto de proposito
para a vêr impaciente, principiou a vestir-se.

Christina ficára á janella, espiando os progressos do amanhecer e
transmittindo á prima as observações que fazia.

--Olha, eu que digo?... já o Manoel vae abrir o portão... Não ouves os
pardaes?... É dia claro já... Havemos de chegar com sol á ermida, o que
não tem graça nenhuma... Avia-te, Lena... Has de ser a ultima a estar
prompta... Ahi vae já o Luiz com o almoço. É que não chegamos lá senão
ao meio dia. Elle ahi vem! Eu bem digo.

--Elle! Quem é esse elle que vem ahi?

--Pois quem ha de ser? Então não é o primo Henrique que nos acompanha?

--É o primo Henrique, é o sr. Augusto e é o Luiz, que tua mãe teimou em
mandar com o almoço. Não sabia qual dos tres te merecia as honras de um
«elle».

--Eu dizia o primo Henrique, que já ahi está no pateo--disse Christina,
que n'esta occasião correspondia ao cumprimento, que o recem-chegado lhe
fazia de baixo.

--Então, com effeito já chegou?--perguntou a morgadinha,
admirada.--Bravo! Nunca o esperei. Ai, Christe, que me parece que elle
tambem tem alguma coisa no coração!

--Tambem o julgo--respondeu Christina, despeitada;--é vêr como hontem te
falou.

--Socega. Quando o coração tem alguma coisa, não se fala assim com a
pessoa que causou esse mal.

--Não sei o que elle me está a dizer--disse Christina, olhando para o
pateo.--Posso abrir a janella, Lena?

--Eu já estou preparada para soffrer todas as crueldades esta manhã.
Abre lá a janella, abre. Fala-lhe.

Christina correu a vidraça.

A voz de Henrique chegou distinctamente aos ouvidos de Magdalena.

--Então aquella grande madrugadora da nossa prima, onde está?--perguntou
elle a Christina.

Christina respondeu, sorrindo:

--Está a fazer a diligencia que pode para ficar prompta antes do meio
dia.

--Oh, que vingança a minha! Ella que tanto falou da minha
indolencia!--disse Henrique jovialmente, e continuou falando sempre de
Magdalena, e elevando a voz ás vezes para se dirigir directamente a
ella, mas sempre sem receber resposta.

Esta insistencia impacientou Christina, para quem elle nem um galanteio
tivera ainda.

--De maneira que nós, priminha--continuou Henrique--damos uma lição de
mestre áquella arrogante de hontem. Estou ancioso por que ella nos
appareça; quero vêr a coragem, com que ousa apresentar-se.

--Eu vou chamal-a--disse sêccamente Christina, e veio dizer a Magdalena,
com certo modo, que não podia escapar a esta:--Olha se appareces alli ao
sr. Henrique de Souzellas, que não descança emquanto te não vê.

A morgadinha, que acabava de ajustar ao espelho as tranças, dando ao
penteado a mais singela e graciosa disposição, voltou-se para a priminha
e disse-lhe sorrindo:

--Isso são já ciumes? Mal sabes quanto gósto de te vêr assim! Ao menos
ha já vida n'esse teu coração, minha pobre pequena. O que te peço é que
não me odeies, só porque esse rapaz se lembrou de perguntar por quem não
via.

--Estás a imaginar ciumes, como hontem imanavas...

--Amores? justo; e com a mesma felicidade em acertar; podes ir
accrescentando. Mas, parece-me que ahi está mais alguem no pateo. Ouço
falar. Vae vêr. Será Augusto? N'esse caso, espera-se só por mim para
completar a caravana. E eu estou prompta. Marchemos.

Augusto havia effectivamente chegado ao pateo.

Henrique trocára com elle alguns cumprimentos, e principiaram depois
ambos a passeiar, um ao lado do outro, á espera das que deviam ser-lhes
companheiras na romagem.

A conversa manteve-se pouco animada. Augusto não era expansivo com as
pessoas, a quem o não prendiam habitos de longa intimidade; Henrique,
talvez por não conhecer a extensão e natureza dos conhecimentos de
Augusto, abstinha-se de falar dos assumptos, em que entraria de mais
vontade. Falaram pois de coisas indifferentes a ambos, e quasi frivolas;
no frio, na chuva, no inverno e no verão, nos prós e contras da vida do
campo e de varios outros assumptos sêccos de si e já além d'isso muito
esgotados, e tudo cortado por aquellas pausas e silencios constrangidos
e insupportaveis, que o leitor ha de conhecer por experiencia.

Digamos nós a verdade; estes dois homens não sentiam um pelo outro
aquella subita e inexplicavel sympathia, que abre os corações e dá
margens a confidencias.

Nos dois curtos encontros que tinham tido, manifestára-se entre elles
certa frieza mais que ceremoniatica, uma quasi desconfiança instinctiva.

Chegaram as senhoras. Foram acolhidas com prazer por ambos. Ainda quando
não fôssem senhoras o seriam; a chegada de um terceiro, quando dois
indifferentes estão na presença um do outro, em entrevista forçada e
fatigadora, é sempre saudada interiormente como uma redempção.

Magdalena e Christina vinham ambas formosas, com a especie de mantilhas
ou capuzes de que usavam, adequados aos rigores de uma manhã de
dezembro.

Appareceram ambas a rir. Foi o caso que, passando proximo do quarto de
D. Victoria, pé ante pé, para não a acordarem, esta presentiu-as, e
mesmo do leito perguntou-lhes:

--Então já vão, meninas?

--Vamos, tia; vamos, mamã--responderam as duas a um tempo.

--O Luiz já partiu com o almoço?

--Já partiu, já, minha senhora.

--E ides agasalhadas?

--Como se fôssemos para a Siberia--respondeu Magdalena.

--Olhae, sempre levem os guarda-chuvas por cautela. E ide com Nossa
Senhora.

--Cá os levamos. Adeus, tia; adeus, mamã.

--Adeus, filhas; até logo, se Deus quizer. Olhae lá, não vos estafeis.

Ora os taes guarda-chuvas é que não iam. Para quê? Com uma manhã
d'aquellas, que nem de inverno parecia, pois que até o frio abrandára
com o vento! Por isso é que vinham ainda a rir.

Chegando ao pateo, cumprimentaram os seus dois companheiros. Henrique,
depois de formular um galanteio a Magdalena, offereceu-lhe
attenciosamente o braço, que Magdalena recusou com alguma impaciencia,
porque se lembrou de Christina.

--Muito obrigada, primo,--disse ella com vivacidade.--Mas é preciso que
o advirta de que não vamos passeiar pelas avenidas de um parque. Vamos
trepar montes, atravessar ribeiras, costear precipicios, e para tudo
isso é necessaria a completa liberdade de movimentos. Ha occasiões, em
que melhor nos servem os nossos dois braços, do que o braço de outro,
embora seja o de um heroe.

--Mas de certo que não é á borda dos precipicios que esse auxilio se
escusa--replicou Henrique.

--É, muitas vezes é. Ha bordas tão estreitas, que mal cabe n'ellas uma
pessoa só; felizmente que a natureza nos dá um braço então... um braço
de giestas, por exemplo.

--Vê lá, Lena,--disse Christina ao ouvido da prima.--Talvez seja melhor
que acceites. Resta-me, a mim, o braço de Augusto.

--Se continuas com essas loucuras, Christina, obrigas-me a odiar-te. Sr.
Augusto--continuou voltando-se para este--espero que tome a direcção do
nosso passeio; ninguem melhor conhece os mais bellos pontos de vista;
leve-nos por lá, embora tenhamos de comprar as bellezas á custa de
perigos e de fadigas. Partamos!

O monte onde se erigira a capella da Senhora da Saude, afamada por seus
milagres e pela sua romaria n'um circulo de muitas leguas de raio, era
uma elevada rocha vulcanica, que dominava as freguezias ruraes de mais
de dois concelhos. Estendiam-se-lhe aos pés as alcatifas da mais rica
vegetação; banhava-lh'os a agua dos ribeiros, das levadas e torrentes,
arterias fertilisadoras de extensas veigas e pomares; mas elle, o
gigante orgulhoso e selvagem, recebia aquelles preitos, olhava
sobranceiro aquella opulencia, e, como se fizesse gala da sua rudeza, em
vez de cobrir os hombros com o manto real, que lhe estendiam aos pés,
permanecia aspero, severo e nú, como nas épocas primitivas, em que uma
convulsão tremenda o evocára do seio da terra, para o consolidar em
colosso.

Apenas, como symbolo de realeza, coroava-lhe a fronte alta a alameda,
que, havia perto de um seculo, a piedade christã plantára em volta da
ermida, para refrigerio e conforto dos devotos christãos que alli iam.
Era custosa a ascenção por o lado, por onde os nossos romeiros, contra
os conselhos de D. Victoria, a emprehendiam. Quando, ao sair de uma
longa rua, apertada entre muros de quintas, Henrique achou de subito
deante de si a mole immensa e talhada quasi a pique, que lhe disseram
tinha de subir; elle, que raro em Lisboa estendia além do Rocio os seus
passeios, com medo das ingremes calçadas da cidade alta, julgou ouvir um
absurdo.

Parou a contemplar o monte, como hesitando em atravessar o riacho, que
d'elle o separava.

O riacho, engrossado pelas aguas da chuva dos dias anteriores, levantava
um bramido atordoador ao cair em toalha dos açudes e ao escoar rapido
pela cal da azenha, que lhe obstruia o leito e cuja enorme roda movia.

Áquella hora, ainda pouco clara da madrugada, este sitio da raiz do
monte tinha não sei que aspecto selvagem e melancolico, que quasi
infundia pavor. Os altos choupos, em que se enroscavam, como serpentes
negras, os troncos flexuosos e despidos das vides; mais longe, o
cannavial, ondulando ligeiramente ao perpassar através d'elle a briza da
madrugada, e, aqui e além, um d'esses degenerados aloes dos nossos
climas, debeis e enfezados, como se os devorasse a nostalgia da sua
verdadeira patria, eram accessorios que concorriam para o effeito geral
do quadro.

A morgadinha, percebendo a hesitação de Henrique, deu-lhe alento com
lançar-lhe em rosto a sua pusillanimidade. Henrique encheu-se de brios e
atravessou, com não menor denodo do que os outros, o riacho, por o
passadiço de altas pedras, collocadas a pequena distancia umas das
outras, e que as aguas a cada momento ameaçavam cobrir.

Atravessada a corrente, seguia-se escalar o monte; para isso tornava-se
indispensavel caminhar em continuados zigue-zagues, aproveitando os
córtes que a fouce do tempo conseguira abrir n'aquella massa granitica e
os toscos degraus, com que uma arte rudimentar procurára facilitar, por
aquelle lado, o accesso da ermida á piedade dos devotos.

As difficuldades para Henrique eram continuas.

A cada momento os embaraços d'este forneciam motivo para risos da parte
de Magdalena. Christina não lhe podia levar a bem que se risse
d'aquillo.

Para compensar as fadigas de tão trabalhosa ascensão, havia porém, a
paizagem, que, a cada passo andado, a cada angulo que se dobrava,
apparecia mais surprehendente e maravilhosa.

Poucos peitos teriam fôrça para reprimir um brado de admiração.

As nevoas d'aquella manhã de dezembro não eram bastantes para velarem a
belleza do quadro.

Á medida que os nossos quatro peregrinos iam subindo, ampliava-se-lhes
mais e mais o horizonte; avelludava-se a relva da planicie, parecia
aplanarem-se os outeiros vizinhos, e os campos tomavam a apparencia dos
canteiros de um jardim.

Henrique não retinha o enthusiasmo, que aquelle espectaculo lhe causava.

--É magnifico! é admiravel! é soberbo!--dizia elle, a cada momento e
quando não era inquietadoramente preoccupado com os perigos do caminho.

O enthusiasmo de Augusto não era menos vivo! Dir-se-ia que eram os
montes a sua patria, e que a melancolia nostalgica, que o opprimia na
planicie, se ia dissipando á medida que subia a encosta.

Magdalena e Christina tambem não estavam menos impressionadas por o que
viam. Esta, porém, tinha uma causa secreta a aguarentar-lhe o prazer,
que as bellezas naturaes lhe pudessem occasionar.

Era esta causa a mesma dos seus leves despeitos de pela manhã.

Henrique continuava a ser todo attenções e galanteios com Magdalena;
parava a cada momento n'aquelles pontos do caminho, que lhe pareciam
mais difficeis de vencer, para lhe offerecer a mão a ella, sempre a
ella, a quem dirigia tambem todas as reflexões que o aspecto da paizagem
lhe suscitava e nunca á esquecida Christina que, n'esses momentos, quasi
achava a manhã desagradavel e o sitio feio e sombrio.

A morgadinha respondia sempre em curtas phrases a Henrique e recusava
insistentemente o auxilio, que elle lhe offerecia.

--Estou a suspeitar que esses offerecimentos do primo são mais devidos á
necessidade, que sente, de quem o auxilie, do que ao empenho de nos
auxiliar--disse ella sorrindo.--A falar verdade, para quem tem passado a
vida a trilhar os passeios do Chiado, que admira? Eu fui creada n'isto.
Tenho um pouco de alpestre. Adeante.

E de uma occasião, em que estava perto d'elle, disse-lhe a meia voz:

--Pode ser que Christina careça mais do seu braço, primo. Ainda não teve
a lembrança de lh'o offerecer.

Henrique só então deu por esse esquecimento; apressou-se a remedial-o,
offerecendo a Christina tambem o braço, que esta recusou, córando.

--Então por que recusas?--perguntou-lhe a morgadinha, em voz baixa.

--Porque não quero abusar da delicadeza d'elle, nem da tua.

A morgadinha abanou a cabeça em ar de reprehensão, fitando-a, mas não
lhe disse nada.

Pouco a pouco ia sendo mais completo o silencio em torno d'elles. Já
tinham passado acima dos rumores do valle, que não subiam a mais de meia
encosta. Chegaram emfim ao cimo do monte; tudo annunciava o proximo
apparecimento do sol.

--Chegamos a tempo!--exclamou Magdalena que, deitando a correr, fôra a
primeira que attingira a planura. Sua Magestade ainda se não levantou.

Os outros estavam, dentro em pouco tempo, ao pé d'ella.

Houve um longo espaço de silencio, concedido espontaneamente á
contemplação d'aquella perspectiva solemne.

As primeiras palavras, que se disseram, foram ditas em voz baixa,
n'aquelle tom, que insensivelmente lhes damos, quando na presença de um
espectaculo grandioso e bello. Fala-se baixo e pouco: não se formulam
longos periodos de aprimorado estylo, nivela-se a eloquencia de todos em
simples phrases, como estas:

--É bello!

--É magnifico!

--É sublime!

E nada mais. Pouco mais disseram os quatro na occasião de que falamos. E
eu, por analogas razões, os imitarei, desistindo de descrever o que só
bem se aprecia, quando pela vista se abrange o conjuncto de todo o
panorama. O leitor, que nunca visse alguma scena similhante, não a
imaginaria pela descripção, forçosamente pallida, que ahi lhe deixasse
d'ella; e para o que a viu, a memoria lhe preencherá bem a lacuna.

Desvanecida a primeira impressão, que não deixa ao espirito a serenidade
precisa para os processos da analyse, principiaram, como é costume, a
fazerem notar uns aos outros os sitios mais conhecidos.

Isto manteve por momentos uma perfeita e desenleada familiaridade entre
os quatro.

Christina descuidou-se da sua timidez e despeitos; Magdalena dos seus
projectos e desconfianças; Henrique e Augusto deixaram tambem a sua
mutua frieza.

--Lá está o Mosteiro--disse Magdalena, apontando para o logar
indicado.--Como parece pequeno, visto d'aqui!

--É verdade--respondia Christina--e olha, Lena, como se vêem bem as
janellas do teu quarto.

--Lá está aquella que tu abriste esta manhã para cumprimentares...

Sentindo a mão de Christina comprimir-lhe o braço, concluiu:

--Para cumprimentares a estrella d'alva.

--As janellas do quarto da mamã julgo que ainda estão fechadas.

--Tanto não posso eu distinguir; comtudo afianço-te que sim. A tia
Victoria não é muito matinal.

--Aquella casa acolá não é a de Alvapenha?--perguntou Henrique,
apontando n'outra direcção.

--É--respondeu Augusto--e, mais adeante, alli tem a deveza, em que
passou ante-hontem. Não é verdade?

--É justamente. Com effeito! Foi um soberbo passeio, o que eu dei!
D'aqui é que se vê. Lá vejo umas prêsas, por onde me lembro de ter
passado tambem.

--Vê, acolá, aquella casa que tem uma capella ao lado?--perguntou
Magdalena, apontando para um ponto distante.

--Perfeitamente.

--É a minha quinta dos Cannaviaes.

--Ah! É verdade, lá estão uns cannaviaes, se me não engana a vista.

--Justamente. Não sei se sabe que ha n'aquella capella uma imagem de
Nossa Senhora, muito milagrosa.

--Sim? hei de visital-a.

--Coisa que se lhe peça, fazendo-se o voto da meia noite, é
concedido--disse Christina, fitando d'esta vez Henrique, com a expressão
da mais insinuante sinceridade.

--Que quer dizer o voto da meia noite?

--Tem uma pessoa de rezar á meia noite, e sósinha, sete estações no
altar da Senhora--continuou Christina.

--Só isso? Boa é de cumprir a promessa. Já vejo que não ha aqui na terra
desejo que se não satisfaça.

--Mais devagar,--acudiu Magdalena, sorrindo--pouca gente se atreve até a
ir lá á meia noite, porque a alma de minha madrinha passeia a horas
mortas por a sua antiga casa, dizem.

--Cada vez sinto mais desejos de lá ir--accrescentou Henrique, depois de
ouvil-a.

--Além, entre aquellas arvores, sr.^a D. Magdalena, vive um
philosopho--disse Augusto, indicando outro ponto de perspectiva.

--É verdade; o bom do tio Vicente.

--Tio Vicente? Quem é o tio Vicente? Temos mais algum tio, com que eu
possa augmentar o meu parentesco na aldeia?

--O tio Vicente é um santo velho, que se occupa a colher hervas pelos
montes e valles para fazer remedios, que dizem milagrosos. Ainda é nosso
parente, mas em grau muito arredado; comtudo chamamos-lhe tio, assim
como quasi toda a gente por aqui.

--Que sombras negras são aquellas que se vêem no adro da
igreja?--perguntou Christina.

--Na igreja? Ah! acolá? É verdade, parece um cordão de formigas--disse
Henrique de Souzellas.

--São as mulheres que vão ouvir o missionario--respondeu a
morgadinha.--Escutem, lá está a tocar o sino.

Effectivamente chegavam ao alto do monte as debeis mas sonoras badaladas
do campanario da aldeia.

--A estas horas principiam as lamentações d'aquelle pobre Zé P'reira,
que tão mal olhado anda por a mulher, desde que ella deu n'essas
devoções--notou Augusto, sorrindo, ao lembrar-se da scena domestica a
que na vespera assistira.

--Degenerou aquella mulher!--disse Magdalena--e, se quer que lhe fale a
verdade, sr. Augusto, custa-me vêr o Cancella deixar a Lindita entregue
assim a essa gente quando sáe da terra. A pequena é tão apprehensiva!

--Visto isso, já chegou aqui á aldeia a influencia dos
missionarios?--perguntou Henrique.

--E não tem lavrado pouco!--tornou Magdalena.

Christina, que era um poucochinho devota, censurou timidamente as
palavras da morgadinha.

--Primo Henrique--disse ella--julgo que ainda será preciso o seu auxilio
para livrar do contagio esta innocente Christina.

--Prompto, prima Magdalena; para as boas causas tenho sempre armada a
minha vontade.

--Olha, Lena, não vês?--exclamou Christina--são os pequenos que nos
estão a dizer adeus das janellas do mirante.

De facto nas mais altas janellas do Mosteiro agitavam-se uns lenços
brancos.

Marianna e Eduardo haviam-se erguido para saudarem, de longe, a irmã e a
prima. Estas tiraram tambem os lenços e corresponderam-lhes aos signaes.

Interrompeu-as a voz de Henrique, dizendo:

--Annuncio a v. ex.^{as}, que chega o rei da creação.

Effectivamente o cume do telhado da ermida e as franças despidas da
alameda já se tingiam de luz.

Todas as vistas se voltavam para o oriente. Assignalava-o uma esplendida
faixa de purpura, que, em insensivel graduação, desmaiava para as
extremidades até se perder de todo no azul-celeste.

Rompia já, do meio d'ella, um pequeno segmento do sol, depois, o astro
inteiro apparecia afogueado e vermelho, como um escudo de metal
candente, e logo se desprendeu da terra, d'onde parecia surgir, e subiu
nos ares, como um brilhante aerostato, ao qual se rompessem as prisões
que o retinham.

O monte inundou-se de luz. O valle, em baixo, estava ainda envolto nas
meias sombras da madrugada.

Nisto appareceu do outro lado da capella um dos criados de Alvapenha,
que veio annunciar que o almoço estava prompto.

--Pois devéras temos um almoço?--exclamou Henrique, sinceramente
surprehendido.

--Graças á previdencia de minha tia, previdencia de que eu zombava em
casa, mas que sou obrigada a admirar agora. De facto, parece-me que
estes ares do monte e frescuras da madrugada lhe devem ter aberto o
appetite--respondeu Magdalena. E logo após continuou para
Henrique:--Agora é occasião mais accommodada de pôr em prática os
recursos do seu galanteio, primo. Quer dar o braço a Christina?

Henrique, em quem a morgadinha suspeitára a intenção de lhe render a
ella a fineza, que assim declinou na prima, teve de condescender,
limitando-se a exprimir n'um olhar as suas queixas, olhar que Magdalena
fingiu não perceber.

E conversando e rindo, dirigiram-se para o logar onde, sobre uma mesa de
pedra e lousa e ao ar livre, estava disposto o almoço.

D. Victoria não era senhora, que se saisse mal de emprezas d'estas. A
alvura da toalha, a excellencia da louça e o bem disposto e apurado das
iguarias convidavam.

Não se concebe appetite refractario a um tal conjuncto de
circumstancias. O fastio, n'este caso, seria um fastio mórbido,
correspondente a lesão organica e como tal sem poesia.

Henrique e Augusto principalmente fizeram, como era natural, justiça á
cozinha do Mosteiro.

Henrique, que parecia haver esquecido as suas mil e uma doenças,
conversou animada e espirituosamente.

Contaram-se anecdotas; Augusto applaudiu as de Henrique; este riu com
vontade das que ouviu a Augusto.

A morgadinha, por sua propria mão, preparou o chá.

N'estas alturas do almoço encetou novamente Henrique o tiroteio de
amabilidades, de que por muito tempo não sabia prescindir.

Dir-se-ia ser este o signal para se perturbar a santa harmonia do
congresso. Parecia que todos os outros, mais ou menos, se sentiam
contrariados.

Henrique ficára sentado junto da parede da capella. Inclinando-se sobre
o espaldar da cadeira a saborear um charuto havano, descobriu umas
letras escriptas na parede, exactamente por cima da cabeça.

--Bravo!--exclamou, depois de as ler para si--não imaginava que havia
poetas na aldeia! Querem ouvir?

E leu:


  Se estás mais perto do céo
  N'estas alturas da serra,
  Ai, porque tens, peito meu
  Inda saudades de terra?

  Em vez-de erguer os olhares
  Á luz d'este firmamento,
  Desço-os á sombra dos lares,
  Onde tenho o pensamento.


--É pena que a chuva apagasse o resto. Quem é o bardo, prima?

--Não sei; da aldeia de certo que não é--respondeu Magdalena, com
indifferença.

Augusto ergueu-se da mesa e foi passeiar para a alameda.

--Da aldeia, não, diz a prima; e por que não? Com esta natureza é facil
crearem-se os poetas. Eu estou vendo n'esta quadra a folha solta de um
romance. Aqui a serra de algum Bernardim inedito, tão capaz de escrever
saudades, como de as sentir. Os lares, pela sombra dos quaes o olhar do
poeta trocava os esplendores do céo... algumas d'essas casas, que ahi se
vêem em baixo. Quem sabe se não será até o Mosteiro? Eu, por mim,
confesso que se estivesse hoje aqui só, ou em outra
companhia--accrescentou, olhando significativamente para a
morgadinha-não teria dúvida em subscrever esta quadra, como a exacta
expressão do meu sentir, porque...


  Em vez de erguer os olhares.
  Á luz d'este firmamento


Eu tambem...


  Os _abaixaria_ aos lares
  Onde tenho o pensamento.


Christina levantou-se tambem da mesa e foi ter com Augusto á alameda.

Magdalena, que a seguiu com a vista, não disfarçou um gesto de despeito
ao ficar só com Henrique.

--Prima Magdalena,--disse em tom mais affectuoso Henrique, passado
tempo, e depois de mais algumas palavras--deixe-me falar-lhe com
franqueza, agora que estamos sós. Conhecemo-nos ha dois dias; eu, porém,
sinto-me tão seguro já do que lhe vou dizer, que não hesito. Não pode
imaginar a indelevel recordação que me ficará d'esta manhã.

--Perdão,--atalhou Magdalena--diga-me primeiro o que é isso que me vae
dizer. Prepara-se para me agradecer o almoço? Eu sou como os reis; gosto
de estar prevenida do sentido das felicitações que me dirigem, para ir
preparando uma resposta adequada.

-Que prazer tem em ser cruel!

-Deixemo-nos de loucuras--continuou Magdalena, séria já.--Quem ouvisse o
sr. Henrique de Souzellas havia de suppôr que se preparava para me fazer
uma declaração.

-Uma declaração do mais puro affecto, do mais sincero sentimento, por
que não?

-Ah! Pois, se eram essas de facto as suas intenções, peço-lhe desista
d'ellas.

--Por quê?

--Porque não posso escutal-o.

--Ou não quer.

--Ou não quero; seja.

--Teria eu a desventura de chegar tarde, prima? Acaso o seu coração
já...

--Que impertinente pergunta? Se _já_, não tenho ainda no sr. Henrique a
necessaria confiança para o tomar por confidente. Conhecemo-nos apenas
de hontem, que é o mesmo que não nos conhecermos.--E accrescentou logo
depois:--Christina, anda ser arbitra n'uma disputa entre mim e o primo
Henrique.

--Que vae fazer?--perguntou-lhe Henrique, admirado.

Christina approximou-se; Augusto seguiu-a. Henrique não desviava os
olhos da morgadinha que, sem lhe dar attenção, proseguiu para Christina:

--O primo Henrique falava com certa exaltação da doçura do teu caracter;
o meu amor proprio disse-me que--era pouco delicado estar assim a
lisonjear uma mulher na presença de outra--e redargui por isso, pondo em
dúvida a asserção e affirmando que havia um fermentozinho de maldade na
tua doçura. Elle nega por impossivel, eu insisto e estamos n'isto. Agora
dize tu.

Christina córou intensamente e não teve que responder.

Henrique, que nas palavras de Magdalena julgou ouvir algumas que, pelo
sentido e inflexão, com que foram dictas, lhe eram dirigidas, acceitou
desaffrontadamente a posição, em que Magdalena o collocára, e respondeu:

--Venci eu! O facto de querer a priminha poupar uma réplica amarga á
accusação que lhe fazem, é a mais eloquente prova, já não digo só da
doçura, mas da natureza angelica do seu caracter. Já vê, prima
Magdalena, que «quando uma das mulheres que diz, fôr como a nossa boa
Christina, não se podem admittir essas revoltas de amor proprio, a que
alludiu.»

A morgadinha percebeu tambem o duplo sentido d'estas ultimas palavras;
mas fingiu não comprehender.

Henrique, ao desviar por acaso os olhos, encontrou os de Augusto fixos
n'elle, emquanto um sorriso lhe dissipava um pouco dos labios a grave
expressão que lhe era habitual, temperando-a com não sei que de ironico,
que não escapou tambem a Henrique.

Os olhares d'estes dois homens trocaram-se por momentos, sem que nenhum
parecesse disposto a baixar-se deante do outro.

Desviou-os porém uma dupla exclamação de Magdalena e de Christina,
dizendo:

--Olhem o tio Vicente por aqui!

Dobrava effectivamente n'aquelle momento a esquina da ermida, e
approximava-se da mesa do almoço, o velho herbanario, em que já temos
falado no decurso dos passados capitulos.

 


X


Era uma expressiva figura de ancião o herbanario.

A fronte larga e desaffrontada de cãs, os olhos ainda vivos e
penetrantes e, em toda a physionomia, permanentes indicios de habituaes
meditações e por ventura de passados infortunios, elevavam aquelle
semblante muito acima da vulgaridade. Os annos ou, mais ainda do que os
annos, os pezares haviam subjugado n'elle a robustez de outros tempos;
os habitos de solidão, que adquirira, a pouco e pouco lhe amoldaram o
caracter até fazerem do velho um d'esses typos excepcionaes, que
atravessam o mundo entre a estranheza de quantos os rodeiam, a ninguem
permittindo sondar os mysterios que guardam comsigo e para si, e creando
para uso proprio regras de viver, sem attenção ás convenções sociaes.

Era um enigma vivo.

Nas aldeias acompanhava-o uma fama quasi de nigromante; attribuiam-lhe
curas milagrosas, obtidas com os simplices, a cuja cultura e colheita
consagrava as maiores attenções e canceiras.

Ninguem lhe queria mal, que a ninguem o fizera nunca. Poucos porém
ousariam, depois do esconder do sol, ir procural-o á isolada casa em que
vivia, escondida n'um quintal, que era cultivado com todo o amor pelo
velho.

Em todos os casos intrincados vinham consultar o herbanario, e elle,
como seguro da sua proficiencia, em caso algum recusava o alvitre.

Em resultado de leituras aturadas, mas sem escolha nem methodo, de uns
alfarrabios herdados de um tio frade que tivera, adquirira imperfeitas e
mal digeridas noções de sciencia, de que se mostrava orgulhoso. Livros
de medicina antigos, alguns de jurisprudencia, outros de logica e de
astronomia, constituiam a sua mesclada bibliotheca. Entre os livros mais
predilectos e consultados contava um exemplar da _Polyantheia_ de Curvo
Semedo.

O herbanario principiára em creança uma educação tal ou qual, que
revézes de familia haviam interrompido.

Os meios conhecimentos, que das suas habituaes leituras extrahira, e os
erros, que de taes livros assimilára, eram os elementos, com que chegou
a architectar uma sciencia informe, que na aldeia passava por
maravilhosa.

E o caso era que a fama do homem voára de freguezia em freguezia, de
concelho em concelho, e de muito longe o vinham ouvir como a oraculo.

Os costumes do velho, que errava por valles e montes á procura dos
simplices, cujas occultas virtudes conhecia, as suas maneiras rudes, a
austeridade da physionomia, a franqueza, sem contemplações, com que
dizia quanto pensava, tinham gravado fundo na imaginação popular aquelle
typo, para ella quasi lendario.

Depois de se sentar á mesa, o herbanario estendeu familiarmente a mão a
Augusto, que lh'a apertou com affecto.

--Bons dias, rapaz,--disse o velho; e, dirigindo-se a Magdalena e
Christina, accrescentou com maneiras paternaes:--Adeus, pequenas;
grandes madrugadas hoje!

Voltou-se depois para Henrique, e fitou-o com olhos inquisidores e quasi
desconfiados, terminando por lhe dizer simplesmente:

--Guarde-o Deus!

Henrique correspondeu-lhe no mesmo tom.

Sem mais o attender, Vicente voltou-se para Magdalena e perguntou-lhe
com voz audivel para Henrique, e referindo-se a elle:

--Quem é?

Henrique respondeu com ligeiro tom de mofa:

--O homem que, melhor que ninguem, está habilitado a responder a essa
pergunta.

O velho nem sequer o olhou.

--Este senhor--respondeu Magdalena--é sobrinho de D. Dorothéa; está
hospede em Alvapenha. Veio para aqui restabelecer-se da saude.

Vicente tornou a examinar Henrique.

--Então é doente?... Não parece... Olhar vivo... Côres boas... voz sã...
Umh!...

Magdalena julgou perceber que as maneiras rudes do velho estavam
desagradando a Henrique; por isso apressou-se a intervir, respondendo
jovialmente:

--A doença d'este senhor é um pouco de imaginação.

--E grandes effeitos nascem d'ahi--acudiu sentenciosamente o velho.--Lá
veem na _Polyantheia_ muitos casos curiosos. Um homem, por ter comido
umas amoras, foi atacado de dôres de cabeça, de que morreu. Pois tanto
scismou que das amoras lhe viera o mal, que até se lhe formou no craneo
uma pedra do feitio de uma amora.

--Com effeito!--disse Henrique, com ironica expressão de pasmo--ahi
estava um cerebro de concepções rijas!

--É divertido!--disse Vicente, com ligeiro sarcasmo e olhando para
Magdalena.

--Pelo contrario--acudiu a morgadinha--o seu mal é a melancolia. Não é
verdade?

--Eu já não sei qual é o meu mal. Estou quasi a dar razão á tia
Dorothéa, que lhe chamou mania.

--Mania e melancolia não são a mesma coisa--emendou o velho.--Tambem lá
na _Polyantheia_ se diz isso bem claro. A melancolia é sem ira nem
furia, porque procede de humor frio, e a mania de sangue quente ou
cólera requeimada.

--De cólera requeimada? Deve ser uma coisa terrivel!--continuou
Henrique, no mesmo tom.

Magdalena, receiando que a ironia dos commentarios de Henrique acabasse
por irritar o velho, perguntou a este:

--Parece-lhe que terá cura a doença?

--Pode ter; mais rebeldes melancolias se curam. Este é divertido a
final. Umh!... Mas contra tristezas e manias não ha como as folhas de
ouro em caldo de frangão com flores de borragem e de herva cidreira.

--Este é como os calvos, que vendem aos outros pomadas para fazer nascer
o cabello; é um argumento vivo contra a efficacia da beberagem que
receita para as manias--disse Henrique a meia voz para Augusto, que lhe
ficava proximo.

O velho, que não tinha ainda dado mostras de offensa pelas maneiras
impertinentes de Henrique, córou d'esta vez e faiscou-lhe nos olhos um
relampago de irritação.

Havia-se sentido ferido no ponto mais melindroso da sua dignidade.

--Está bom, menino,--replicou elle amargamente.--Não diga mais, para se
não envergonhar depois. Eu calo-me; e desculpe-me se falei. Estou
costumado a vêr pobres e ricos virem a minha casa pedir-me o favor de os
attender. Ainda assim ahi vae mais um conselho, apesar de m'os não
pedir. Seja attencioso com a velhice que não é baixeza nenhuma. Mas que
é isto?--exclamou, mudando de tom e olhando para um redemoinho de folhas
sêccas que o vento trouxera até perto d'elle.--As folhas veem d'este
lado! Então virou o vento? É verdade. Ah! sim?... Percebo.

E, depois de olhar para o ar, continuou:

--Mudanças tão repentinas!... Umh!... Já me não agrada aquelle azul e
aquellas nuvens.

E levantou-se.

--Dou-lhes meia hora, e verão tudo isto coberto e quem sabe o mais que
virá! Aconselho-os a que vão descendo o monte, que não é seguro descel-o
quando as enxurradas engrossam. Eu, por mim, já me não demoro, que não
tenho confiança na firmeza das minhas pernas. Oh! n'outros tempos!...
Emfim tudo tem de acabar. Adeus!

E, sem mais palavras, sobraçou a caixa de lata, em que archivava as
hervas medicinaes e outras substancias, que andava colhendo, e partiu,
depois de dizer adeus a Augusto, a Magdalena e a Christina.

Logo que o herbanario desappareceu, Henrique soltou uma risada, em que
parecia haver o que quer que era de forçado.

--É realmente curiosa esta antigualha--disse elle, que interiormente
sentia já remorsos pela maneira por que tratára o velho.

--Ai, primo Henrique; que ainda está muito pouco preparado para viver na
aldeia!--disse a morgadinha.--Tem uns melindres e uma maneira de vêr as
coisas! Tudo lhe parecem faltas de attenções, propositos de offender!
depois ha um sarcasmo cruel nas suas palavras, a que os espiritos não
estão aqui habituados e de que se sentem por isso feridos. Isso não é
bom! Se vae assim, ou terá de nos deixar cêdo, ou grandes desavenças
suscitará por ahi. Não repara que estes modos são proprios do campo?

--Perdôe-me, prima Magdalena; mas confesso que nunca tive demasiado
geito para lidar com doidos. Deve confessar que este homem...

--É um homem de bem--atalhou Augusto com voz firme e com uma severidade
de expressão, que até alli não mostrára ainda.

Henrique voltou-se admirado e fitou-o em silencio. Augusto arrostou
firmemente aquelle olhar.

--Não o nego--respondeu Henrique, pouco depois--mas infelizmente os
homens de bem envelhecem, como os outros, e a extrema velhice traz a
imbecilidade.

--Engana-se; esse homem, apesar de algumas phantasias, tem ainda um
juizo são e uma razão clara.

--Acha?--tornou Henrique, já algum tanto azedado.--Ha de dar-me licença
de não fazer obra por as suas apreciações... se me é permittido.

--Procede mal--redarguiu Augusto.--Porque eu conheço aquelle homem ha
muito e o senhor acaba apenas de o vêr pela primeira vez. Foi o senhor
quem primeiro deu ás suas palavras um tom irritante, que desafiou uma
digna correcção. Não lhe ficaria mal se tivesse sido mais generoso. A
consciencia lh'o está dizendo n'este momento melhor do que eu.

--Lê fundo nas consciencias dos outros!

--Não é difficil. Em todos os homens a consciencia tem uma só maneira de
ser. Reprova sempre o mal, aponta sempre a culpa.

--Estou admirando a subita loquacidade que se lhe manifestou! Até aqui
suppunha-o taciturno. Vejo que lhe mereço a fineza de abrir uma excepção
aos seus habitos de laconismo em meu favor. Muito agradecido. Isso que
dizia eram maximas ou pensamentos moraes? Não reparei.

Augusto córou, mas respondeu com firmeza:

--Nem uma nem outra coisa; é um genero muito mais modesto do que
qualquer dos dois. Simplesmente um preceito de civilidade.

Henrique ia responder irritado, mas conteve-se e tornou com dobrada
ironia:

--É verdade, é verdade... esquecia-me que a civilidade entra no seu
programma... de mestre-escola.

--Justamente; tenho alguns discipulos que lisonjeiam o mestre;
rapazinhos da aldeia, pobres, rotos e descalços, mas n'esse ponto podem
dar lições a elegantes filhos das cidades.

--Pois estimarei, nas minhas longas horas de ocio, aqui na aldeia,
dever-lhe algumas lições tambem. Comtudo, como, felizmente, as
circumstancias em que estou me permittem prescindir do beneficio do
estado, que o subsidia, ha de conceder-me que pague as lições que
receber.

--Nunca me envergonhei de acceitar a recompensa do meu trabalho, se o
discipulo pode dar-m'a... sem sacrificio.

--E acceita-a em toda a especie de moeda, não é verdade?--perguntou
Henrique, cada vez mais petulantemente.

Augusto respondeu com a mesma serenidade:

--Não faço tambem escrupulo n'isso, comtanto que me fique o direito
salvo de pagar na mesma especie de trócos, quando julgar que os devo.

O dialogo ia, como vamos vendo, de momento para momento adquirindo mais
acerbo caracter.

Christina, que já tremia de assustada, cingiu o braço de Magdalena, como
para convidal-a a intervir.

Esta não o tinha ainda feito por uma simples razão. Desconhecia Augusto.
A audacia com que o via repellir as ironias do seu adversario, a firmeza
inalteravel, com que lhe sustentava o olhar, o sorriso, que, em desdens,
rivalisava com o d'elle, eram tão novos para a morgadinha, que a
surpreza, que d'ahi lhe vinha, nem a deixava ainda perceber a utilidade
de uma intervenção. O aviso de Christina chamou-a, porém, á realidade.

--Tem-me querido parecer, ainda que me custa a acreditar, que isso entre
os senhores é uma altercação--disse ella por fim.--Vejam que só teem por
testemunhas duas mulheres, que mal lhes podem servir de padrinhos, se a
contenda tomar outra feição. Por isso não é muito para louvar a escolha
que fizeram da occasião, para uma justa tão pouco... amavel.

--Perdão, prima Magdalena; reconheço a minha culpa, e a grosseria do meu
proceder. Mas aqui o sr. Augusto, costumado a impôr aos discipulos o seu
pensamento, quiz estender até mim este despotismo de... _magister_...
Ora o meu pensamento pugnou pela sua independencia...

--Desculpe; suppondo-o um homem de brio e de pundonor, julguei que me
agradeceria, se conseguisse modificar-lhe uma opinião desfavoravel, que
levianamente formou de quem lh'a não merecia. Vejo que prefere ser
injusto. Seja-o. Pense o que quizer. Mas o que eu não soffro é que se
diga deante de mim uma palavra contra um homem que respeito e de quem
sou amigo, sem que erga a voz a defendel-o. Se não costuma fazer o mesmo
por os seus, nem sente viva e irresistivel a necessidade de o fazer,
lastimo-o; é porque não os tem.

--Com mais paz de espirito se discutirá tudo isso depois--disse
Magdalena.--É de crêr que, como sempre, haja de parte a parte razão e
aggravos. Agora convido-os, antes de descermos, a visitar a ermida, cuja
porta está sempre, dia e noite, aberta aos devotos que a piedade aqui
traz. E tal é o prestigio que a defende, que não consta de um só roubo
sacrilego, que se fizesse n'ella.

Entraram na ermida. Era um pequeno santuario, todo forrado de azulejo
antigo, com ennegrecidas pinturas a fresco nos apainelados do tecto,
representando episodios da Paixão; os altares, adornados de columnas e
florões de talha dourada, attestavam nos muitos ex-votos que d'elles
pendiam e nos quadros, cuja perspectiva deixava a perder de vista a dos
desenhos chinezes e que representavam milagres de todo o genero, a fé
ardente com que era adorada a imperfeita esculptura da Virgem.

E apesar de tudo tinha este templo um ar de solemnidade manifesto.
D'onde lhe vinha elle? Da sua mesma pobreza e nudez, do silencio que
reinava em torno, da altura a que se erguia, do isolamento em que
estava.

Alli dentro demoraram-se os quatro visitantes, Magdalena e Henrique
examinando alguns dos quadros dos milagres; Christina, que prolongára
mais do que a prima a oração que fizera, contemplando a imagem da
Senhora; Augusto com os olhos fitos nas columnas do altar, porém, não
sei se pensando n'ellas.

Esperava-os uma surpreza á saida.

Realisára-se o prognostico do herbanario.

O vento sul que, segundo elle notára, soprava já havia algum tempo,
viera condensar os vapores, que arrasta de ordinario na sua corrente, e
empanar com elles a limpidez do firmamento. O azul do céo semeiára-se,
pouco a pouco, de pequenos flocos brancos, de manchas irregulares e de
longos e encurvados veios que lhe davam uma apparencia quasi marmorea.
Cêdo estas massas de nuvens cresceram, tocaram-se, confundiram-se,
acabando por tingir uniformemente toda a extensão do firmamento. Ao
mesmo tempo, outras nuvens, mais pesadas e mais escuras, começaram a
erguer-se do sul e caminharam impetuosas no espaço, como montanhas
moveis, que viessem em pavorosa carreira, de encontro ás serras, que as
aguardavam firmes.

Um denso véo de nevoeiro escondia já a paizagem, quando sairam da
ermida.

--Depressa!--exclamou Augusto--já não ha tempo a perder! Desçamos antes
que a tormenta nos colha.

--Tem medo?--disse Henrique em tom de mofa.--Um montanhez!

--Talvez tenha; em todo o caso ha de vêr que não é de inimigo pouco
digno de o inspirar. Por agora peço-lhe tréguas ás zombarias e, por amor
d'estas senhoras, aconselho-o a que trabalhe por apressar a descida.
Felizmente que o criado já partiu. É um embaraço de menos.
Vamos.--Detendo-se, porém, disse para Magdalena:--Se descessemos por o
outro lado, minha senhora?

--Para quê?--respondeu esta.--É um momento, emquanto chegamos abaixo.

A tempestade caracterisava-se cada vez mais; crescia a cerração do ar;
os álamos gemiam, vergados pela impetuosidade das lufadas do sul; a
chuva principiou por grossas gottas, e cêdo augmentou assustadoramente;
havia na atmosphera surdos rumores de tempestades longinquas; algumas
nuvens tomavam uma côr terrea, outras um carregado de chumbo, ambas
igualmente sinistras.

Christina, pallida de susto, murmurava em voz baixa orações fervorosas;
Magdalena sorria para a animar, mas ella propria estava inquieta.

Não era de facto uma empreza de todo facil o descer o monte por um tempo
d'aquelles. O caminho, já de si ingreme e precipitoso, era quasi
impraticavel quando as correntes se despenhavam por elle, como em
catadupas, e os ventos vinham despedaçar-se furiosos de encontro ás
arestas salientes da rocha.--Era necessario estar muito amestrado para o
descer sem perigo.

Augusto era de todos o que melhor o conseguiria; assim não tivesse de
repartir os seus cuidados por tantos. De pequeno se costumára áquellas
aventuras; e já então seguia, sem vertigem, a mais estreita borda dos
despenhadeiros do monte.

A tudo porém attendia agora, desenvolvendo uma actividade e pericia, que
inspirava alento e confiança aos mais. Agil, como um animal montez,
girava em volta da pequena caravana, de que tacitamente fôra reconhecido
chefe. Ora adeante a dirigir os passos pelos logares de mais facil
transito, ora á retaguarda a dar a mão a Magdalena, que vira em
embaraço, ou a amparar Christina, a quem muita vez chegou a levantar nos
braços, para a fazer franquear um ponto do caminho, em que ella parára,
sentindo que lhe resvalavam os pés no declive e na humidade do chão. O
proprio Henrique, que não era o menos embaraçado do rancho, e nem isso
admira, só a custo podia prescindir, em certos lances, do auxilio de
Augusto.

O amor proprio e orgulho do hospede de Alvapenha iam um tanto
mortificados n'esta retirada ingloria. Nenhum dos seus muitos talentos e
aptidões, de tanto valor no terreno, tambem escorregadio, das salas de
baile, lhe valiam para alli. Era evidente a sua inferioridade n'este
momento; ora Henrique não era homem que, tendo consciencia disto,
ficasse indifferente; mas que remedio? Procuraria mais tarde uma
compensação.

Não descrevemos todos os episodios d'esta laboriosa descida, alguns dos
quaes sómente a preoccupação, em que iam os animos, impedia achar
risiveis; porém que mais tarde deviam, como é costume, vir a ser
alimento de animadas e joviaes recordações.

Assim foi que, a meio da encosta e em sitio em que se lhes cortava ao
lado do caminho, que cautelosamente desciam, uma ribanceira quasi a
pique e erriçada de fragas salientes e angulos de rocha, em cujas fendas
e sinuosidades apenas os tojos e as giestas e algum pinheiro enfezado
tinham conseguido vegetar, uma violenta rajada de vento, desprendendo a
mantilha de Magdalena, depois de a revolutear no espaço arremeçou-a ao
abysmo.

Ficou suspensa nos espinhos das tojeiras, porém em logar, onde seria
difficil o accesso, de qualquer lado que se tentasse.

Magdalena, no momento, não pôde reter um grito, que fez parar com terror
Henrique e Augusto que caminhavam adeante. Voltaram-se assustados.

A morgadinha, com a cabeça descoberta, tranças ligeiramente
desordenadas, as faces um pouco pallidas, sorria já do seu exaggerado
susto.

A rir, explicou o succedido, pedindo perdão pelo sobresalto que
involuntariamente causára.

--Descança em paz!--disse ella, olhando para a mantilha; e
accrescentou:--Sigamos.

--Mas não será possivel tiral-a d'alli?--perguntou Augusto, examinando o
sitio.

--Para quê? Não podemos demorar-nos agora com isso--respondeu Magdalena.

--Eu desço a cortar uma canna lá abaixo aos Moinhos e volto n'um
momento--insistiu Augusto, dispondo-se a executar o que dizia.

Henrique notou, sorrindo:

--O alvitre é de homem prudente. Cuidei que os montanhezes não eram de
tão bom aviso.

E, animado pelo desejo de humilhar Augusto, por quem se sentia
humilhado, e ao mesmo tempo cedendo á influencia que sobre elle exercia
a fascinadora figura de Magdalena, Henrique arrojou-se a uma
desnecessaria imprudencia.

Sem dar tempo a que o impedissem ou lhe fizessem qualquer reflexão,
deixou-se escorregar no despenhadeiro, segurando-se com as mãos á borda
do caminho; tenteou com os pés as fendas e as anfractuosidades da rocha,
até conseguir firmal-os; segurou-se ora a uma raiz saliente, ora a um
ramo mais tenaz; á fôrça de vontade dominou a sua impericia em
exercicios d'esta ordem, e finalmente conseguiu, estendendo o braço,
segurar a mantilha, que o vento arrojára ao precipicio.

Depois, com dobradas difficuldades e por ventura redobrados perigos,
pôde, roçando-se como reptil, e ferindo as mãos nas asperezas da rocha e
nos espinhos das tojeiras, em que se firmava, pousar outra vez os pés em
terra, sem acceitar a mão que Augusto lhe offerecia, e com gesto
radiante entregou a mantilha a Magdalena, fixando em Augusto um olhar de
triumpho.

Os espectadores d'esta scena haviam-a presenciado sem soltar uma
palavra, sem fazer um movimento, quasi gelados de susto e de espanto.

Quando Henrique voltou com a mantilha, Augusto meneou a cabeça
murmurando:

--Que imprudencia!

--Na verdade!--disse Magdalena, ainda nervosa com a impressão que este
incidente lhe causára--foi uma loucura; uma loucura imperdoavel.

E a perturbação era tal, que nem acertou com uma phrase de
agradecimento, com que pagasse a imprudente galanteria, que mais
desejava reprehender, do que recompensar.

Esta reserva offendeu Henrique; serviços a seu vêr de menor importancia,
tinham merecido a Augusto mais calorosas palavras.

Revoltou-o esta ingratidão.

Mal sabia elle que estava sendo ainda mais ingrato, não concedendo
sequer um olhar ás faces desmaiadas pelo terror, aos labios trémulos e
aos olhos arrasados de lagrimas, com que o fitava Christina. Ella, que o
tinha seguido muda de susto e de anciedade em toda aquella louca
aventura, ella que, ao terror do perigo, ajuntava a affligil-o o
desespêro de vêr que fôra outra a que inspirava aquellas loucuras!

Aguardavam-os em baixo novos trabalhos a vencer. Com a fôrça das
enxurradas, que se precipitavam clamorosas pelas vertentes e algares,
era provavel que a levada que corria na raiz do monte tivesse engrossado
mais e acabasse de cobrir a ponte rustica, que á vinda já tinham
encontrado quasi submersa.

Augusto, prevendo isso, voltou-se para as senhoras, dizendo:

--Eu vou adeante assegurar-me do estado da ponte, para no caso de estar
já coberta, como é provavel, vêr se o moleiro nos abre a porta do
moinho, a fim de passarmos por lá. Vão descendo devagar, que eu volto.

--Então deixa-nos sós?--exclamou Christina, assustada.

--É um instante.

--Não sei se nos atreveremos a dar um passo sem a sua indicação--disse
Magdalena.

--O peor está passado. Além d'aquella pedra já vêem o ribeiro e a ponte;
o caminho indica-se por si.

E dizendo isto, desceu agilmente por uma especie de escadaria aberta na
rocha, a qual mais depressa o devia conduzir ao logar que demandava.

Henrique ia agora na frente; após, seguia-se Magdalena. Christina
fechava o cortejo.

O mau humor de Henrique augmentára de ponto, em consequencia dos receios
com que as duas raparigas tinham visto Augusto abandonar, por momentos,
a direcção do rancho.

Ficava assim bem evidente a pouca ou nenhuma confiança que lhes estava
merecendo o auxilio de Henrique, representando assim elle n'aquella
contingencia, em vez do papel de protector, o de protegido, que o
humilhava.

Obrigado a digerir, como pudésse, o seu fundo descontentamento, Henrique
perdera com isso aquella volubilidade de conversação que mantivera todo
o dia.

Nunca, na presença de Magdalena, deixára passar tanto tempo sem formular
um d'esses galanteios que a impacientavam e obrigavam a uma resposta,
nem sempre demasiado affavel.

Magdalena, por seu lado, não se sentia com disposição para falar.
Christina menos.

Este silencio acabou por exasperar Henrique.

Haviam já percorrido grande parte do caminho, que os distanciava do
riacho. Avistavam-se as aguas turvas e impetuosas, que, com mais fragor
do que nunca, se contorciam n'aquelle apertado leito.

Foi então que Henrique desafogou o seu resentimento.

--Estou devéras arrependido, prima Magdalena,--disse elle com leve
ironia--do meu espontaneo movimento de ha pouco. Devia lembrar-me de que
ao nosso cavalheiroso guia devem pertencer todos os triumphos e toda a
gloria d'esta jornada: mas como d'aquella vez se me figurou que era
demasiado cauteloso para heroe...

Uma simultanea exclamação de Magdalena e de Christina não o deixou
proseguir.

Voltando-se para saber a causa, que a motivára, viu-as paradas,
pallidas, olhando com anciedade para a base do monte.

Seguindo a direcção do olhar d'ellas, Henrique reconheceu a causa
d'aquelle duplo grito.

Refiramol-o em poucas palavras.

Quando Augusto chegou ao ribeiro, para averiguar se a ponte estava ou
não transitavel, surprehendeu-o um espectaculo inesperado.

O herbanario que, prevendo tempestade e receioso dos perigos de que em
taes condições a descida era acompanhada, se apressára a partir, não
conseguira chegar ao ribeiro, antes do desencadeamento da borrasca. O
andar vagaroso e precavido do velho e as frequentes pausas que fazia, ou
para descançar ou para colher a rara planta montezinha, o insecto, o
verme, o mollusco ou o mineral de occultas virtudes, elementos da sua
pharmacopeia, foram retardando de maneira que a chuva apanhou-o a meio
caminho, e mais difficil de descer lhe tornou a metade, que lhe faltava.
Assim, não obstante haver partido antes dos outros, não lhes levava
muitos passos de avanço.

Ao chegar á levada, encontrou já as pedras do tosco passadiço, a que se
dava o nome de ponte, cobertas pela agua. O velho deu-se pressa em
descer para a passar ainda a pé enxuto; mas a levada, agora torrente
caudalosa, ganhava corpo de momento para momento; cêdo já não se viam
signaes de ponte. O herbanario parou, embaraçado. Acima ficavam-lhe os
açudes, transformados em impetuosas cataractas; abaixo, o moinho, em
cujas enormes rodas espumava a corrente com espantoso fragor.

O velho Vicente hesitou. Era para causar vertigens o que via. As aguas,
sem transparencia, occultavam de todo a vista das pedras.

Tenteou com o bordão o sitio, em que as suppôz. Encontrou a primeira,
pousou um pé n'esse ponto; firmou-se como pôde, para resistir á fôrça da
corrente; tenteou outra vez, reconhecendo outra pedra, deu mais um
passo, e outro, e mais outro, até que de repente, ou por esvaímento de
sentidos ou por se firmar em falso, vacillou e, perdendo o equilibrio,
caiu na levada para o lado dos moinhos.

Foi n'este momento que Augusto chegou; viu-o pois cair, viu-o
estrebuchar, luctando com a impetuosidade das aguas; reconheceu a
urgente necessidade, para evitar uma horrivel desgraça, de acudir, sem
perda de tempo, ao pobre velho, que a torrente arrastava para os lados
do moinho.

Cedendo a este pensamento, Augusto franqueou, quasi de um salto, o
espaço, que o separava ainda do ribeiro, e lançou-se á agua.

Era a vez de Augusto revelar coragem. Henrique tambem a possuia, mas
abusava d'ella ou, por vaidade malbarateava-a em ninharias. Ainda n'isto
se revelava o seu amor de ostentação. Imaginava-se sempre n'um palco,
deante de espectadores que o viam e applaudiriam, se desempenhasse bem o
papel de homem perfeito. Fraco perante doenças imaginarias, arriscaria,
para evitar o ridiculo, a propria vida, assim como suffocaria, por
ventura, um impulso generoso, que não pudésse harmonisar-se com a
convenção, que se chama elegancia.

Eram estes os defeitos que Magdalena adivinhára n'elle.

Augusto era differente.

As suas grandes qualidades guardava-as com modestia dos olhos estranhos,
para sómente as revelar, quando pudéssem ser uteis.

Ao vêr cahir a mantilha de Magdalena, não arriscou temerariamente a vida
para a buscar. Procurava com placidez os meios de o fazer, com mais
segurança, embora com menos romanticismo; mas, para salvar uma vida,
para obedecer a um instincto, verdadeiramente nobre e generoso, nada o
fazia recuar.

Logo que Augusto voltou a terra e auxiliou o herbanario a subir para a
margem, Magdalena, respirando emfim com desafogo, respondeu ás
anteriores palavras de Henrique, dizendo em suave tom de censura:

--Bem vê que nem sempre é cauteloso o nosso guia, primo Henrique. Sabe
tambem arriscar a vida, quando uma razão de humanidade lh'o pede. A sua
imprudencia de ha pouco... agradeço-lh'a, mas... não posso approval-a.
Confesse que não foi tão justificada como esta.

Henrique tinha a razão clara bastante e a consciencia justa para vêr
que, apesar da sua façanha cavalheiresca, ficára, d'esta vez ainda,
inferior ao seu companheiro.

Qualquer que fôsse o desgosto, que a descoberta lhe produzisse, é certo
que teve sobre a rebellião dos maus instinctos poder sufficiente para se
obrigar a ir apertar a mão a Augusto.

O velho Vicente estava pallido e extenuado pelo esforço da lucta com a
corrente; ainda assim abraçou tambem Augusto, dizendo:

--Agradeço a Deus o haver-me dado esta occasião de te dever a vida,
rapaz. Era um prazer que desejava levar da terra, quando a deixasse.

Magdalena e Christina rodeavam o velho de cuidados.

Appareceram, emfim, do outro lado do ribeiro, os criados enviados por D.
Victoria com guarda-chuvas e roupas de agasalho. Com elles vinha tambem
o moleiro, a quem mandaram chamar para dar passagem pelo moinho, visto
estar obstruida a ponte, e ao mesmo tempo para que as senhoras pudéssem
ahi dentro mudar de fato.

Augusto seguiu o herbanario a casa.

Passada meia hora saíam tambem do moinho os outros todos, depois de
haverem renovado a roupa, que a chuva repassára.

No Mosteiro, D. Victoria recebeu a filha e a sobrinha com muitas
exclamações e ralhos por não terem ido prevenidas com guarda-chuvas,
como ella lhes recommendára; estas iras cêdo se derivaram sobre os
criados, a quem, entre outros delictos, attribuia o de a não haverem
avisado de que na vespera passára por alli o caldeireiro ambulante,
repenicando nos seus arames, o que, sendo prognostico infallivel de
chuva, faria com que ella, sabendo-o, se oppuzesse a tal passeio.

Em Alvapenha, D. Dorothéa e Maria de Jesus não levantaram menor celeuma,
ao vêrem chegar Henrique. Fizeram-o metter na cama, cobriram-o de
cobertores, emborcaram-o de _punch_ e taes mêdos lhe insinuaram, que as
apprehensões pathologicas de Henrique agitaram-se e tentaram
reapossar-se da sua antiga victima.

 


XI


Censuravel descuido tem sido o nosso em não conduzir o leitor a um dos
logares mais importantes da aldeia, onde se passam os singelos episodios
d'esta narração.

Que se diria de um _cicerone_ que, por esquecimento ou proposito,
deixasse de apresentar um viajante, recem-chegado a uma cidade, na
assembleia, club, gremio, ou o que quer que seja, onde se reunem as
principaes personagens d'ella, onde se compendiam as grandes questões e
interesses locaes, as pequenas vaidades e intrigas, as modas ephemeras,
os voluveis caprichos que agitam os espiritos, onde se commenta o boato
de hontem, se dão ao de hoje mil versões diversas e se adivinha já o de
ámanhã?

Pois no mesmo delicto incorremos nós, chegando a este undecimo capitulo,
sem ter guiado os leitores á venda de Damião Canada, a qual podia
dizer-se o verdadeiro coração d'aquelle organismo social.

Tudo quanto na terra havia de certa representação alli ia falar da coisa
publica e tambem da particular;--da particular dos outros mais do que da
propria, entenda-se.

Aproveitemos um resto da tarde, em que a natureza após horas continuadas
de chuva e de temporal, como que procurou respirar e permittiu que o
sol, já no occaso, levantasse uma ponta do manto de nuvens que o
envolvia, e mandasse os raios amortecidos ás cristas das serras
fronteiras; aproveitemos este intervallo de socego para entrarmos na
taberna.

Tinham passado dois dias depois do passeio ao monte, que descrevemos.

Henrique de Souzellas teve de condescender com uma leve angina, que lhe
legaram os rigores d'aquella excursão, e ficou em Alvapenha,
entretendo-se a escrever cartas aos amigos e a scismar n'uma imminente
desorganisação da larynge, a que imaginava conduzirem-o os seus
incómmodos actuaes.

No Mosteiro nada tambem occorreu, que mereça narrar-se ao leitor.

Deixemos, pois, por momentos, os nossos conhecidos, e vejamos o que
dizem os frequentadores do estabelecimento de Damião Canada.

Brilhante é a assembleia alli reunida. Além do proprietario, barriguda e
rubicunda figura, que, assim posta ao pé das pipas, podia servir de typo
para a representação de um Sileno, havia varias individualidades de peso
nos destinos de toda a comarca.

Dê-se primeiro menção ao nosso já conhecido Bento Pertunhas, a quem as
humanidades não faziam soberbo a ponto de recusar-se a entrar em
communicação social com os seus conterraneos.

Observada esta deferencia, mencionemos os mais.

Um era nem mais nem menos do que o sr. Joãozinho das Perdizes, em quem
já temos ouvido falar por mais do que uma vez.

Era o dicto sr. Joãozinho morgado e proprietario em uma das freguezias
proximas, chamada de Pinchões; mas propriedades e morgadia andavam-lhe
tão embaraçadas em redes de demandas e de hypothecas, que Deus nos
acuda.

Os autos, que diziam respeito á casa das Perdizes, enchiam um cartorio.
Graças, porém, ao seu genio despreoccupado e folgazão, o sr. Joãozinho
deixava aos procuradores os cuidados judiciaes; os cuidados agricolas
aos rendeiros e feitores; os do futuro, a Deus ou ao diabo; e para si
não reservava nenhuns.

Proseguia n'aquella vida airada, que já lhe era necessidade. Frequentava
as feiras, onde ia para jogar e fazer trocas de cavallos com os ciganos,
e ás vezes para dar e levar sovas monumentaes.--Nos mezes de caça, a
vida do morgado era perfeitamente nómada: estendia por leguas e leguas
as suas excursões venatorias, contentando-se com qualquer cama e comida,
de que, de ordinario, participavam os cães, que o acompanhavam;
distrahia-se tambem a conquistar os corações femininos da freguezia,
calando com dinheiro algumas queixas mais acerbas e insoffridas de um ou
outro pae, marido ou irmão. Em todas as tabernas das freguezias vizinhas
tinha contas em aberto, o que não obstava a que entrasse em todas com
ares de conquistador e expendesse alli as suas opiniões absolutas, com
grande exhibição de berros e de punhadas.

Com todas estas qualidades, era o sr. Joãozinho das Perdizes um homem
verdadeiramente popular entre os da sua freguezia; movia-os no sentido
que quizesse.

Tudo por lá era o sr. Joãozinho; não havia funcção, rixa, solemnidade
official, para que elle não fôsse consultado. É que a superioridade do
morgado das Perdizes não era d'aquellas que intimidam e acanham o povo;
ninguem hesitava em falar-lhe e em procural-o em casa, porque, falando e
vivendo com elles, o sr. Joãozinho não constrangia ninguem. Os seus
defeitos, a sua vida de feiras e de tabernas eram outras tantas causas a
popularisal-o; justo é porém que se diga que algumas boas qualidades
tambem para isso concorriam. O sr. Joãozinho não era avarento, nem
soberbo. Sentado a beber, e com dinheiro no bolso, não consentia que
pessoa alguma, desde o mais rico proprietario até o jornaleiro mais
miseravel, recusasse tomar assento a seu lado. Não eram poucos os
filhos-familias que resgatára de soldado, sem a menor caução ou
interesse, chegando a ficar empenhado para os livrar; e se algum
desgraçado se via perseguido pela justiça, encontrava, fôsse qual fôsse
a enormidade do crime, asylo seguro na herdade das Perdizes, que em
certas épocas era um perfeito valhacouto de malfeitores.

Graças, pois, a estas e analogas qualidades, era o sr. Joãozinho uma
verdadeira potencia eleitoral.

Eis ahi o homem moralmente.

Pelo lado physico, supponham um sujeito de trinta e cinco annos, gordo,
vermelho, de longas e encaracoladas melenas em desordem, bigode aparado
e a barba quasi sempre mal feita ou por fazer. Na maneira de vestir
inculcava os habitos da vida e um certo desleixo com sua pessoa, que lhe
era peculiar. Trazia o collete quasi sempre desapertado e com alguns
botões de menos de modo que os peitos da camisa formavam hernia pela
abertura; entre as calças descaídas e o collete avistava-se o cóz das
ceroulas, no qual era geito muito seu o enfiar a mão; ao pescoço trazia
um lenço de seda escarlate, negligentemente atado e com longas pontas
fluctuantes; uma jaqueta de pelles com alamares, calças de fazenda
chamada pelle do diabo, botas de montar e esporas constituiam o resto do
vestuario. O cigarro, que quasi sempre fumava até ás ultimas,
crestára-lhe profundamente as pontas dos dedos e o canto dos labios. O
palito andava-lhe sempre atraz da orelha; a navalha de ponta na
algibeira, e, para qualquer parte que ia, acompanhava-o uma tumultuosa
matilha de galgos, podengos e perdigueiros.

Segunda e não menos importante personalidade era a do sr. Eusebio
Seabra, chamado por antonomasia--o Brazileiro.

Era um homem de cincoenta annos; bem figurado e sisudo, de falar
compassado e com seus quês de oraculo, phrases sentenciosas e ares de
protecção a todo o mundo.

Saira creança da aldeia e fôra tentar fortuna ao Brazil. Por lá esteve
quarenta annos, e voltou o homem grave que vemos e rico. Como enriqueceu
não sei, e ninguem na terra o sabia. Veio edificar uma casa no sitio em
que nascera, uma casa grande de cantaria e azulejo, com tres andares e
varandas, jardim com estatuas de louça e alegretes pintados de verde e
amarello, o qual jardim tinha mais fama n'aquellas aldeias vizinhas do
que os jardins suspensos da Babylonia. Trouxera um papagaio e uma arara,
igualmente famosos, e uma botica homoepatica, que elle proprio
manipulava.

As ambições de Eusebio Seabra limitavam-se a vir a ser a primeira
personagem de influencia na aldeia. Para isso principiou por fazer
alguns reparos na igreja parochial, presenteou com vestidos novos todos
os santos dos altares, e mandou renovar um sino, que havia doze annos
tocava a rachado. Fez á sua custa a festa do orago, chegando a mandar
vir fogo preso da cidade e um aerostato, que ardeu a pouca altura do
chão. Apesar, porém, de todos estes beneficios á localidade, o
conselheiro Manoel Bernardo, pae da morgadinha, comquanto vivesse quasi
sempre em Lisboa, continuava a fazer-lhe sombra e a contestar-lhe as
ambiciosas vistas. Por isso, apesar da apparente amizade com que Seabra
o acolhia e lisonjeava até, conservava por elle no fundo uma má vontade,
um ciume, de que eram de receiar, tarde ou cêdo, explosões.

Seabra era tão asseiado, quanto o sr. Joãozinho das Perdizes descurado
no seu vestir. Usava sempre de suissa irreprehensivelmente talhada em
volta do queixo; camisa muito lavada; peito aberto e tres grandes botões
de brilhantes; no trajo combinavam-se as variegadas côres de uma ave da
America; e o ouro, distribuido com profusão por todos os accessorios da
sua pessoa, attestava os bons resultados dos seus quarenta annos do
Brazil. Passeiava pela aldeia de chinelos de marroquim verde ou sapato
de tapete, e era tal n'elle a delicadeza do andar, que voltava a casa
sem que uma mancha ennodoasse a alvura das suas meias de algodão fino.
Aos domingos e dias de festa indignava a relva dos caminhos, calcando-a
com bota de polimento.

Além d'estes dois e do nosso conhecido Zé P'reira, que bebia, em
silencio, ao pé do taberneiro, havia um padre, coadjuctor da freguezia,
dois lavradores abastados e já de avançada idade, e outros que
deixaremos confundidos na massa indistincta dos comparsas.

No momento, em que entramos, usava da palavra o brazileiro, que estava
sentado á porta da taberna, na mais limpa cadeira do estabelecimento.

--Pois é verdade--disse elle--fômos todos da mesma creação. O
conselheiro Manoel Bernardo saiu d'aqui para Lisboa um anno depois de eu
ir para o Brazil. Andámos ambos na mesma escola, que era a do padre
Joaquim, alli pelo sitio da Corredoura. Vossemecê ha de estar lembrado,
sr. Luiz--accrescentou, dirigindo-se com a affabilidade protectora, que
o caracterisava, a um dos lavradores.

--Ora se estou! muito bem. Era na casa em que hoje mora o Chico da
Luciana.

--É verdade que sim. Pois alli andei eu e o conselheiro e aquelle ratão
do Vicente, herbanario, que era já rapaz taludo. Lembra-me, como se
fôsse hoje, de quando jogavamos todos tres a pedra no terreiro da
Corredoura.

--Olha lá, hein!--diziam dois lavradores com um sorriso cortezão nos
labios--então com que o sr. Seabra tambem jogava a pedra! Eh! eh! eh!...

--Ora, como um homem. Eu fui levadinho da bréca. Boa sóva levei de minha
mãe, por causa de umas calças novas que rompi.

--Ora vêdes?--diziam os outros.

--Ai tempos, tempos!--disse, suspirando, o brazileiro.

--Quem havia de dizer então ao que v. s.^a e o conselheiro tinham de
chegar!--notou lisonjeiramente o sr. Bento Pertunhas.

--Eu sim--respondeu com toda a sua modestia o brazileiro.--A que cheguei
eu? Comi candeias accêsas pelo Brazil, para arranjar um boccado de pão
para o resto da vida; com isso me contento. O mais, sou um pobre diabo
que ninguem conhece, um homem ignorante, sem principios. Elle é outra
coisa.

--Não é tanto assim--insistiu Pertunhas--todos sabem que v. s.^a se
quizesse...

--Olhe, meu caro amigo, eu conheço-me; se tivesse o juizo de muitos, que
por ahi vejo figurando, então havia de me vêr na brecha; porque, não é
por me gabar, mas não me tenho por menos do que muitos d'elles.

--Ora pois, não, não--disseram os lavradores, Pertunhas e o padre.

--Alguns que até ministros teem sido...

--Por essa estou eu...

--O conselheiro mesmo...--resmungou o padre, fungando uma pitada
jesuitica--sim, aqui para nós...

--Tanto não digo--continuou o brazileiro, mais jesuiticamente ainda.--O
conselheiro... vamos... Faça-se-lhe justiça. Eu não quero dizer que elle
seja uma coisa por ahi além... sim... Que diabo tem elle feito a
final?... Mas... Não é dos peores, não é dos peores. Faça-se-lhe
justiça. Não é homem de grandes talentos... isso não; nem mesmo de
grande fundo. Sim... Devemos confessar que esta é a verdade... Mas...
emfim, vamos andando... Cada um faz o que pode--concluiu o brazileiro,
depois de ter feito justiça ao conselheiro.

--No que elle tem andado mal é em prometter mais do que pode fazer. Ha
quantos annos nos anda a falar na estrada, e até hoje ainda nem palmo
d'ella?--opinou Pertunhas.

--Meu amigo, engana meninos e chupa-lhe o pão: diz o dictado--ponderou o
brazileiro.

--A falar verdade!...--disse um dos lavradores--com a influencia que
elle tem, podia...

--Ora adeus! palanfrorio--atalhou o padre--bem me fio eu na influencia
do conselheiro.

--Eh! eh! eh!--respondeu o brazileiro, agradado do scepticismo do padre,
e accrescentou com um sorriso velhaco:--Não, elle diz que fala com os
ministros, que tal, que sim senhores, que domina o partido. Emfim...
Elle lá o sabe.

--Para mim é que elle vem de carrinho...

--Eu não sei--concluiu com requinte de velhaquez o brazileiro.

--Pois eu cá--disse o sr. Joãozinho, que estivera bebendo em silencio, e
descarregou um murro na banca, que fez tilintar os copos.--Eu cá já
disse; se os taes homens das bandeirolas me tornam a passar por as
terras, sempre lhes meço as costas com um marmeleiro, que lá tenho, e
que já me serviu para varrer a feira de Santo Estevão. Uns mariolas!...

E como para desafogar o pêso da sua amabilidade, despediu um pontapé a
um podengo, que lhe viera roçar por as pernas, e fel-o sair ganindo.

--Dizem que vão principiar outra vez com os trabalhos das
estradas--informou o taberneiro, enchendo de novo o copo ao sr.
Joãozinho.

--Pois que vejam no que se mettem. Cautelinha commigo!--resmungou
este.--Faço como d'aquella vez em que eu e a minha gente queimámos toda
a papelada da camara e do escrivão da fazenda.

--Agora no inverno é que elles hão de principiar com os trabalhos.
Sempre se fia em boa!--disse, encolhendo os hombros, mestre Pertunhas.

--Vossemecê é que está a ler--veio-lhe á mão o brazileiro.--Então não
sabe que as eleições são em fevereiro?

--Ai, é verdade! não me tinha lembrado d'isso!--exclamou o padre.

--Tambem não sei como será d'esta vez essa historia das eleições--acudiu
o sr. Joãozinho.--Cá eu e a minha gente ainda estamos a vêr no que param
as coisas. Eu já não estou para ser logrado. Até agora tenho dado ao
conselheiro a freguezia em pêso, sem pedir nada, ou se pedi foi o mesmo
que não pedisse. Vou curar-me de tolo; agora sempre havemos de entrar
n'uns ajustes. Se o homem não estiver cá por umas contas, não anda o
filho de meu pae.

--Ora adeus!--disse o padre cura.--O conselheiro tem artes para o levar.

--A mim? Está enganado. Não querendo eu? Então você não me conhece. Em
eu embirrando, sou como um borrego teimoso.

--Quando se fala em estradas, já estou a tremer--disse um dos
lavradores.--O que elles veem cá fazer é cortar-nos os campos, e a final
não sei para que servem.

--Isso não é assim--atalhou o brazileiro, tomando uns ares
cathedraticos, cheios de gravidade.--Vossemecê é ignorante e por isso é
que fala d'esse modo.

--Eu digo...--tartamudeou, intimidado, o lavrador.

--Pois sim: mas não deve metter-se a falar em coisas que não entende. As
estradas não servem para nada! As estradas são meios de communicação
e... facilitam o... o... o trafego commercial e augmentam por
conseguinte a riqueza das nações... Porque o trabalho representa um
capital..., sim, senhores, mas... mas um capital... sim... um capital
morto... quero dizer um capital que não vive... Quero dizer... sim...
supponhamos: o credito por exemplo... O credito..., sim... ahi está o
credito... Pois que é o credito?... O credito é... é o credito...
depende de muitas coisas... Por outra, supponhamos... se nós não
tivessemos estradas... Uma supposição... Partamos de um principio. A
producção excede o consumo... Quero mesmo que o consumo exceda a
producção... Sim, quero mesmo isso... Muito bem... D'ahi que resulta?
Está claro que um desequilibrio. E depois?... Depois, boas noites... Não
havendo estradas... Ahi está que se diz por ahi que a livre exportação,
que tal, que sim senhores... mais isto, mais aquillo... Pois não é
assim. É preciso que se attenda tambem ás condições economicas dos
povos. Sim... eu digo: O commercio deve ser livre... Muito bem... Em
termos já se sabe... Mas... o commercio livre... a livre troca...
entendamo-nos... É preciso clareza de ideias... Quando eu digo que...
Ora supponhamos... supponhamos que não havia estradas... Os transportes
eram mais difficeis e portanto mais caros... E se além d'isso os generos
fôssem escassos e... Diz vossemecê, para que servem as estradas? Ora
diga-me uma coisa, sr. Manoel, supponhamos que... os impostos
indirectos... não precisamos de ir mais longe... os impostos
indirectos... Sempre queria que me dissesse o que havia de fazer.

--Impostos, Deus me livre d'elles!--murmurou o lavrador, cujos
instinctos trepidaram á palavra «impostos».

--Isso tambem não é assim... Deus me livre! Não se diz Deus me livre,
porque a riqueza... a riqueza... sim, a riqueza não está na terra...
isto é, a riqueza está na terra... mas é preciso o capital para a
exploração... Percebe?... Ou... supponhamos... por exemplo... Não...
vamos cá por outro lado... Ha um _deficit_ n'um orçamento... desce o
preço das inscripções... Ora bem... Mas... supponhamos que ha boas
estradas, _et coetera_... A riqueza tende a augmentar... e... e... Emfim
lá que as estradas são uteis, isso é que não tem questão.

Toda esta lenga-lenga economica foi escutada pelo auditorio com profunda
attenção.

O brazileiro, assignante e leitor infallivel de varios periodicos
politicos, conseguira, á fôrça de leitura, fixar na memoria certas
phrases de artigo de fundo, e acabára por convencer-se de que possuia
grandes noções de sciencia politica. Em occasiões como esta dava uma
sacudidela ao intellecto, e aquellas phrases como os variados objectos
do interior de um kaleidoscopo, tomavam uma disposição tal ou qual, mais
ou menos regular, e assim lhe saia uma dissertação, como essa que viram.
Em permanente indigestão economica vivia este portento. A doença não é
das mais raras entre politicos.

O sr. Joãozinho das Perdizes abriu desmesurada e ruidosamente a bôca,
depois do discurso do brazileiro, e disse:

--Eu cá por mim não sei d'essas coisas. Não se me dava das estradas para
poder ir á feira de Penafiel com menos trabalho, mas, já disse, que me
não venham mexer na quinta; porque então teem que vêr.

--Pois está arriscado a isso--disse o brazileiro.

--Veremos, depois não se queixem. Temos a historia da papelada outra
vez.

--Houve a ideia de levar a estrada pela Corredoura fóra, depois de tomar
á esquerda pelo Castro e vir direito á Palhoça. Não tinha cruzes nem
cunhos. Ia-me parte da propriedade.

--Ah! ah! ah! Tambem não gosta? Diga-me d'isso!--berrou o sr. Joãozinho.

--Não é não gostar, é que o traçado era pessimo.

--Não sei por quê.

--Só a expropriação da minha quinta por que preço não lhes ficava?

--Elles, para esses casos, lá teem umas leis a seu modo--notou o padre
cura.

--E por onde ha de ir então a estrada?

--O outro traçado, que eu aconselhei ao engenheiro, parte da herdade do
capitão-mór, faz um viaducto nos lameiros, atravessa o pinhal do Conego,
passa o rio n'uma ponte e...

--Oh com os diabos; o que ahi vae!

--Não é tanto como parece; sendo as obras bem dirigidas... Até aos
lameiros só tem a deitar abaixo a casa e o quintal do herbanario.

--Deitar abaixo a casa do herbanario! O pobre diabo rebenta de paixão,
se tal fazem--disse, com certa commiseração, o sr. Joãozinho das
Perdizes, que tinha por o herbanario uma sincera affeição e respeito,
n'elle excepcional, desde que lhe attribuia a cura de um typho que o
tivera ás portas da morte, e de que o velho, dizia elle, o salvára, com
uns cozimentos sómente d'elle sabidos.

--Ora adeus! Antes d'isso morre o homem de doidice. Está maluco de
todo--redarguiu o brazileiro.

--Tambem está um bom magico, está--notou o padre.

--Quer não, que sabe mais do que todos os medicos--acudiu o sr.
Joãozinho das Perdizes; a mim me livrou de uma maligna. Oh que
excommungada!

E principiou a fazer a historia da sua doença.

Os lavradores concordaram em que o homem era sabedor; mas attribuiam-lhe
mais mysteriosa sciencia, do que a da medicina.

--Pois a final por onde devia ir a estrada--continuou o
brazileiro;--tinham ainda o campo dos Brejos do conselheiro, mas n'isso
não se fala, já se sabe.

--Ora! pois está de vêr--concordou o padre.

--E o conselheiro não se ha de oppôr á expropriação da casa do
herbanario, porque pelos modos elles não andam muito correntes--lembrou
um lavrador.

--É verdade; por que seria aquillo?--perguntou outro.

--Elles em tempo eram muito um do outro; e são até
aparentados;--explicou o brazileiro--e o velho ainda hoje é tratado com
familiaridade pela gente do Mosteiro; mas julgo que o homem com aquelle
genio exquisito que tem, disse algumas verdades ao conselheiro, por
occasião de umas eleições, quando elle pôz as auctoridades a trabalhar
por si, e o velho entendia que as coisas não iam bem assim.

--Pois, com os diabos, o Vicente herbanario vale mais do que vinte
conselheiros e toda a familia,--exclamou o sr. Joãozinho, batendo outra
punhada--e queira elle, que o tal senhor não põe mais o pé nas camaras,
mandado cá pela terra.

--Eu gósto de os ouvir,--disse o padre--falam assim, mas em chegando a
occasião, vão todos votar n'elle como carneiros.

O brazileiro encolheu os hombros e sorriu, como confirmando o dicto.

--Pois havemos de vêr o que será!--berrou o sr. Joãozinho.--Isso é
consoante cá umas coisas.

--A falar a verdade--disse o Pertunhas--não tem pago muito bem ao
circulo o nomeal-o ha tantos annos seu deputado; só essa teima agora em
querer obrigar o povo a enterrar-se no cemiterio!

--Essa a falar a verdade!--disse um lavrador.

--Quero vêr se me hão de enterrar a mim!--disse ameaçadoramente o sr.
Joãosinho, como se esperasse ainda depois da morte, impôr as suas
vontades á fôrça de murros e de pragas.

--Deram-lhe para lhe dizer que fazia mal enterrar nas igrejas. É moda e
acabou-se. D'antes enterrava-se lá toda a gente e não havia mais doenças
do que agora--isto dizia o padre.

--Os romanos tinham as suas catacumbas--ponderou o mestre de latinidade,
forçando as suas reminiscencias romanas.

--Vamos--ponderou o brazileiro, como quem vira pretexto de fazer novo
discurso e como homem que punha acima dos despeitos a verdade
scientifica.--O enterrar nas igrejas é anti-hygienico; porque os
chimicos sabem que... o ar que não é puro... é mau para a saude publica.
Ora os cadaveres... em putrefacção produzem uns vapores que corrompem o
ar... Ha uns insectozinhos invisiveis que a gente respira... e vão para
a massa do sangue e corrompem-a... e o resultado é a febre... porque a
febre são os humores a ferver... como o vinho no lagar... e se sáem,
muito que bem; e se não sáem, ficam retidos e azedam o corpo todo.

A theoria physiologica pathologica foi recebida com attenção igual á que
merecera a economica.

--Tudo isso será assim,--disse o padre--mas o conselheiro faz aquillo
por instigações das lojas maçonicas e dos pedreiros livres.

--Pois elle será tambem?...--disse um dos lavradores, arregalando os
olhos assustados.

--Ora que dúvida! Pois aquella gentinha é toda da sucia.

--Corja!--resmungou o sr. Joãozinho.

O brazileiro, que se filiára no Brazil na maçonaria, fez um discurso
sobre os fins da sociedade, que ninguem entendeu; vendo, porém, que não
calavam nos animos aquellas doutrinas, mudou repentinamente de rumo.

--Elle não será mação--disse d'ahi a momentos o padre--mas é vêr o que
elle tem defendido nas camaras; queria roubar ás irmandades e ás freiras
os bens que ellas possuem; appeteceu-lhe o exemplo do cunhado, que se
encheu com a compra do Mosteiro; queria acabar com o santo sacramento do
matrimonio; queria que cada qual seguisse a religião que muito bem lhe
parecesse. Vejam que christão aquelle!

Estas novidades abalaram os lavradores, que formularam algumas palavras
de censura.

--E tambem falou para acabar com os morgados e com os vinculos.

--A falar a verdade, os vinculos...--murmurou o sr. Joãozinho, que por
vezes tropeçára nas disposições da antiga lei vincular, ao caminhar na
estrada da dissipação; porém, recordando-se de um irmão que tinha,
casado e pae de muitos filhos, que mal conseguia sustentar á custa de
muito trabalho, a ideia da abolição dos morgados não lhe sorriu e
exclamou com nova punhada:--Acabem lá com os morgados quando quizerem,
que o que eu lhes digo é, que tem de se haver commigo quem quizer
tirar-me um palmo de terra!

O padre cura continuou a tratar pouco christãmente o conselheiro.

O pae de Magdalena militára sempre, como já dissémos, nas fileiras do
partido mais liberal, e por isso era-lhe em geral pouco affeiçoada a
maioria do clero, que, entre nós, não espósa ardentemente aquellas
ideias.

No principio da sua carreira parlamentar, cedendo ao impulso do
enthusiasmo juvenil, o conselheiro desenrolára desassombradamente a
bandeira do partido progressista e pronunciára os mais absolutos artigos
d'aquelle credo politico; liberdade era então o seu mote favorito; a
liberdade do commercio, do ensino, da imprensa e dos cultos; as reformas
consequentes nos codigos, a desamortisação e desvinculação da
propriedade, tudo advogára com enthusiasmo, no tempo em que estas
palavras soavam ainda como heresias aos ouvidos habituados á lettra de
outro catecismo.

Com o tempo arrefeceu, porém, esse enthusiasmo; dissipou-se-lhe com o
fogo da mocidade. Com quanto liberal ainda de convicção, ensinou-lhe a
politica pratica a rebuçar em formulas mais ordeiras os seus principios
doutrinarios, a contemporisar, e até quando as conveniencias,
infelizmente, nem sempre as publicas, o pediam, a dar alguns passos de
retrocesso e a transigir com o partido opposto.

Se o fizessem ministro não se arrojaria a transformar em projecto de lei
nenhuma d'aquellas medidas por que pugnára nos seus primeiros discursos,
e que tantas malquerenças lhe acarretaram então.

Já atraz dissémos, que o conselheiro era actualmente um espirito pouco
apaixonado do ideal, respirava a atmosphera de desillusão e de
scepticismo, em que nas grandes cidades se vive. Era um perfeito homem
de côrte; tratava cordialmente os seus adversarios politicos, pedindo
d'elles mercês e empregos para afilhados; fulminava-os ás vezes da
tribuna e depois apertava-lhes a mão nos corredores das camaras e nas
praças. Se o julgava vantajoso, pronunciava ainda uma d'aquellas phrases
sonoras, uma d'aquellas sympathicas divisas de politica avançada, que no
principio da sua carreira adoptára com sinceridade; mas não tinha já aos
principios o amor preciso para cair, abraçado n'elles, dos degraus do
poder, se algum dia os chegasse a subir.

Por isso os soldados rasos do seu partido, os politicos em abstracto,
unicos para quem a politica é sempre ideal e logica, o taxavam de frouxo
e tibio; e de gazeta na mão havia muito que lhe dictavam, do obscuro
canto do paiz em que viviam, a estrada direita, de que elle, porém, a
cada passo se desviava.

Apesar d'isso, o partido conservador e o reaccionario, julgando-o por os
seus primeiros discursos, continuavam, de boa ou de má fé, a acoimal-o
de impio, de republicano e de pedreiro livre.

O brazileiro entrou em dissertação a respeito de todas as medidas
politicas a que alludira.

Segundo o costume, ninguem o entendeu.

Ia elle no mais enredado da sua meada oratoria, quando o som de um
tropear de cavallos o interrompeu. Mestre Bento, que fôra espreitar á
porta, voltou-se, exclamando:

--Elle ahi vem! ahi vem o conselheiro!

Todos se levantaram pressurosos para correrem á porta. O que mais de má
vontade o fez foi ainda assim o brazileiro.

Dentro em pouco todos se descobriam. Parava á porta o conselheiro, que
montava um soberbo cavallo branco, e ao lado d'elle Angelo, n'um pequeno
baio de fórmas elegantes e olhar vivo.

O conselheiro cortejou com affabilidade palaciana os seus amigos e
patricios, dizendo a cada um uma phrase lisonjeira, que dissipou quasi
todo o effeito da conversa que descrevemos.

Depois, fazendo signal ao filho de que podia seguir para casa, dispoz-se
para entrar na venda.

 


XII


O conselheiro levou a sua attrahente amabilidade até se sentar nos
bancos de pinho do estabelecimento de Damião Canada, envernizados já
pelo uso de muitos annos.

Entre os circumstantes era qual mais o cumprimentava e opprimia com
attenções e o flagellava com obsequios.

O conselheiro revestira-se, com muito estudo, de uma physionomia
satisfeita e sem sombras de reserva; tratando a todos por amigos, e
conversando com aquella familiaridade, tão sabida de candidatos a
procuradores do povo, nos circulos que pretendem representar. Até chegou
a levar aos labios o copo de vinho, que um lavrador lhe offereceu.

Não se lhe percebia porém no rosto, ao fazer isto, o menor vestigio de
artificio, e, ao mesmo tempo, mantinha-se ainda n'elle tão apparente a
superioridade intellectual, que os seus interlocutores nunca excediam os
limites da deferencia. O pae de Magdalena era um perfeito homem de
côrte: presença agradavel, modos insinuantes, palavras tão
astuciosamente lisonjeiras, que desvaneciam os proprios que como taes as
tinham.

Alvejavam-lhe já algumas cãs nos cabellos e suissas, que usava talhadas
á moda ingleza; principiava a predominar-lhe nas fórmas certa
rotundidade caracteristica; mas no esmero e até elegancia distincta de
casquilhice pretenciosa, com que vestia, no porte airoso, nos movimentos
ageis, no olhar penetrante como o de poucos, e na viveza das conversas,
havia ainda tantos signaes de vigor e de virilidade, que ninguem se
sentia obrigado a estranhar-lhe certos habitos de rapaz, que não perdera
ainda.

Em Lisboa passava o conselheiro por ser um homem bemquisto das damas, e
não obstante os seus cincoenta e cinco annos, acreditava-se que assim
fôsse, ou quasi se adivinhava, ao primeiro olhar lançado sobre elle.

Possuia o dom especial de se encontrar á vontade em toda a parte, desde
o mais perfumado gabinete da moda, até o menos asseiado local de um
comicio popular. Nas camaras com graves diplomatas, nos cafés com
rapazes estouvados, na sua aldeia com eleitores absurdos, com actores e
actrizes nos bastidores, com padres nas sacristias, com militares nos
quarteis, em toda a parte e com todos se achava este homem á vontade,
acabando, quasi sempre, por captar sympathias.

Podia dizer-se d'elle, que com igual pericia e rara consciencia da
opportunidade, jogava todas as armas: o galanteio cortezão, a phrase
conceituosa, o equivoco subtil, a anecdota picante, o estribilho
popular, a figura oratoria, a maxima moral, e até a praga energicamente
expressiva; mas, como os espadachins de profissão, jogava-as todas com
frieza de animo, cada qual na occasião opportuna e com perfeita
observancia do que o mundo chama conveniencias sociaes.

Muito tinham que fazer com elle os La Bruyères, que, a cada passo, ahi
encontramos no mundo; illudia os mais atilados. Ás vezes parecia
abrir-se tão do intimo, tão completamente e sem condições nem reservas,
havia tal uncção de sinceridade nas palavras, com que falava de si, dos
seus projectos, dos seus sentimentos, que o mais desconfiado jesuita
sentir-se-ia tentado a acredital-o e nem sempre se enganaria; outras,
falava verdade, mas com taes hesitações na voz, com tal mobilidade no
olhar, que, ao consideral-o, a mais ingenua creança experimentaria o
despontar da primeira dúvida.

Já se vê que um homem d'estes era um contendor de muita fôrça, para
poder ser combatido por qualquer dos influentes locaes; o proprio
brazileiro, apesar de toda a sua economia politica, ainda nada pudéra
contra elle; nem ousára romper hostilidades com receio de ficar vencido.

Durante os poucos momentos, que o conselheiro se demorou na loja do
Damião Canada, soube desvanecer muitas das sombras, que a conversa que
precedera a sua chegada havia gerado em alguns espiritos. Tres ou quatro
lisonjas, outras tantas promessas, alguns conselhos modestamente pedidos
com fingida ingenuidade, serviram-o perfeitamente.

Deixemol-o nós na laboriosa e pouco invejada tarefa de manter a
popularidade, e vamos seguir Angelo, que se separou do pae á porta da
venda, para chegar mais depressa ao Mosteiro.

Mettendo a galope o pequeno baio que montava, dirigiu-se para casa com
aquelle alvoroço do coração, que conhece quem já foi estudante e se
recorda ainda do que experimentava ao vêr de longe despontar o telhado
da casa paterna, onde vinha gosar as delicias de umas almejadas férias.

Angelo tinha por este tempo treze para quatorze annos. Era uma agradavel
figura de creança, expressiva de intelligencia e de vida. Tinha nas
feições um mixto da delicadeza de Magdalena e da energia varonil, e ao
mesmo tempo attrahente do conselheiro.

O cabello louro e curto levantava-se-lhe graciosamente em anneis
naturaes, com grande vantagem para a espaçosa e bem modelada fronte.

Quando Angelo chegou ao pateo, era quasi noite fechada. As janellas do
Mosteiro estavam todas obscuras, á excepção das aguas-furtadas,
correspondentes aos quartos das creanças. Angelo desmontou e
cautelosamente se dirigiu a pé para casa.

Torquato dormia á porta, como frequentemente lhe acontecia.--Angelo pôde
assim penetrar sem ser percebido até o mais intimo da casa, até os
aposentos onde dormiam as creanças, e em cujas janellas avistára luz.

A scena que viu, ao entrar alli, insinuou-lhe no coração uma suave e
encantadora alegria.

O mais novo dos seus primos, creança de tres annos, estava meio nú e de
joelhos sobre o leito com as mãos erguidas e os olhos fitos em um
crucifixo que tinha á cabeceira. Magdalena, ao lado d'elle, dictava-lhe
as palavras da oração, que a creança repetia, cheia de fervor.

Nos quartos proximos palravam, ainda acordados, os mais velhos, apesar
das continuadas advertencias da prima.

Angelo approximou-se sem ruido, e quando a morgadinha se abaixava para
beijar a creança, elle estendeu a cabeça e pousou tambem um beijo nas
faces da irmã.

Magdalena soltou uma exclamação de surpreza e cingiu-o nos braços com
effusão.

A creança levantou um brado, que foi o signal de revolta dado a Marianna
e Eduardo, que cêdo abandonaram os quartos e correram a abraçar Angelo.

--Vens só?--perguntou Magdalena ao irmão, quando uma pergunta lhe foi
possivel.

--O pae ficou na loja do Canada--respondeu Angelo.--Estava em sessão a
assembleia dos notaveis. E como estás tu, minha Lena, tu e Christe e a
tia? Como vae toda essa gente?

--Anda tu mesmo sabêl-o.

--Eu vou dizer á mamã--disse Marianna, saindo aos saltos.

--Eu vou chamar Christe--disse Eduardo, imitando-a.

E sairam ambos, pregoando a chegada do primo.

O pequeno que Magdalena deitára, pedia, chorando, para se tornar a
levantar, requerimento que, a rogos de Angelo, foi deferido.

--Dize-me--continuava no entretanto este para a irmã--tens-te enfastiado
muito, aqui só?

--Não, tenho-me divertido até.

--Devéras? E que fazes? Em que passas o tempo?

--Eu sei? O tempo é que passa, sem eu dar por isso. Leio pouco, passeio
muito; trabalho mais.

--Que tens lido?

--Quasi sempre relido.

--O quê?

--Nem eu sei já. O primeiro livro em que pouso a mão, quando os vejo
sobre a mesa.

--O Augusto tem vindo ensinar os pequenos?

--Todos os dias.

--E o tio Vicente? Que me dizes d'elle?

--Vae bom. Caiu no outro dia á levada da raiz do monte; valeu-lhe o
Augusto para o salvar.

--Sim? Pobre homem! Olha n'aquella idade! E a tia Dorothéa?

--Tem de hospede um sobrinho de Lisboa, um Henrique de Souzellas;
conheces?

--Eu não.

--É provavel que por ahi venha. A tia Victoria insiste em que lhe
chamemos primo. Aviso-te d'isso.

--Sim? E a tia? Ralha ainda muito com os criados?

--Coitada! Achei graça, ha dias, á Joanna, que com muita ingenuidade se
me veio queixar de que ella até o anjo da guarda lhe occupava em serviço
proprio. Tu sabes que a tia, quando está com muito somno, tem aquelle
costume de dizer ás criadas que a encommendem ao anjo da guarda d'ellas.
Mas vamos.

--Espera... e... e o Cancella trouxe-vos aquellas encommendas?

--Trouxe.

--É verdade; e a filha d'elle? A Lindita?

--Já cá me ia tardando a pergunta--notou a morgadinha, rindo.--Essa anda
contente, como quem nada tem a penalisal-a; nem saudades.

--Ora vamos, Lena; não te perdôo a malicia.

--Então devéras esse coração está assim tomado?

--Não te informo do meu coração, que o não levo commigo, quando d'aqui
vou. Cá me fica; e uma grande parte d'elle no teu poder. Eu sou que
pergunto; em que estado m'o entregas?

--Muito doente.

--Sim? E o teu?

--O meu? Ah! nem eu sei d'elle. Olha; isto de corações são como as
creanças. As travêssas tantos cuidados dão ás mães, que a todos os
instantes querem saber o que ellas fazem e onde estão; as socegadas
inspiram tal confiança, que nem sequer n'ellas se pensa. O meu coração é
um modelo de serenidade.

--Então ainda nenhum cavalleiro errante ou trovador...

--O sitio é pouco abundante em heroes. O unico d'estas immediações,
capaz de ferir a imaginação e commover os affectos de uma mulher, é o
sr. Joãozinho das Perdizes; mas esse é um Actéon insensivel, que...

--É verdade--disse Angelo, rindo--lá vi tambem esse javali na venda do
Damião Canada. Mas... Não sei que pense, Lena. Eu ainda um dia te hei de
dizer umas coisas.

--A mim? A respeito de quê?

--Do teu coração.

--Que sabes d'elle?

--A seu tempo direi.

--Como te vieram essas presumpções de conhecedor dos corações alheios?
Não tinhas isso, quando d'aqui foste.

--Ás vezes vê-se melhor de longe.

--Os de vista cançada... de muito vêr.

--Bem; depois falaremos. Vamos lá ter com a nossa gente, que o pae não
tarda ahi.

De facto, meia hora depois estava a familia toda reunida n'uma das salas
principaes da casa. O conselheiro, sentado n'uma cadeira de braços,
tinha ao collo Marianna; Christina, a pé, encostava-se-lhe familiarmente
ao hombro; a morgadinha, sentada em tamborete baixo, apoiava o braço, em
que recostava a cabeça, em um dos joelhos do pae. Do outro lado da sala,
D. Victoria, sentada no sofá, servia de travesseiro a um dos pequenos
que, apesar de prometter estar acordado, para que o deixassem ficar a
pé, adormecera. Junto d'este, Angelo fazia frequentemente rir sua tia e
Eduardo, com as historias que lhes contava.

A conversa cêdo se generalisou. Era uma d'essas conversas intimas,
familiares, em que se referem as mais insignificantes circumstancias da
vida domestica; conversas cujo suave perfume só em familia se aprecia.

Pobre do estranho que por acaso se encontra n'um d'esses circulos
apertados pelos estreitos laços da amizade e do parentesco, e se vê
obrigado a ouvir a minuciosa chronica das occorrencias da casa, que não
é a sua! É uma pathetica illusão a de certas familias, que imaginam que
para todos é de igual interesse a narração dos successos domesticos, que
tanto as deleitam, e com ella entreteem o primeiro indifferente que se
lhes depara; tudo trazem á luz, o dicto agudo da creança de tres annos,
os incómmodos que soffreu na primeira dentição, as espertezas do gato
favorito, as razões ponderosas que aconselharam a mudança de um movel, a
combinação economica que favoravelmente modificou o orçamento domestico,
a reforma nos processos culinarios consagrados pelo habito de muitos
annos, o exame comparativo da conserva de um anno e da do anno
antecedente, os defeitos e qualidades de um criado e mil outras pequenas
coisas, que é forçoso escutar com ares de quem as acha curiosissimas, o
que obriga a esforços sobrehumanos.

É natural aquella illusão; e pathetica a dissemos nós tambem, porque os
que mais de coração se entregam á vida domestica, são os mais sujeitos a
ella. Todos estes episodios futeis e pueris os preoccupam e deliciam
mais do que as mais estranhas peripecias, que ainda concebeu a
imaginação de romancista fecundo. E quem se lembra de que é
individualissimo esse interesse, inherente á pessoa e não aos factos, ás
causas que tão curiosos lh'os fazem ser?

Eu e o leitor, estranhos á familia do Mosteiro, vêr-nos-iamos, se
fôssemos escutar todo o dialogo que se travou na sala, na posição da
pessoa indifferente que imaginamos a aturar um d'esses relatorios
domesticos, a que sobre tudo são tão inclinadas as mães de familia.

É verdade que o conselheiro podia achar curiosa a conversa; e o
conselheiro tinha visto e ouvido tanto no mundo, que o que elle achasse
curioso é porque realmente o era. D'esta vez, porém, damol-o por
suspeito, porque o conselheiro tinha coração e, quando esta viscera se
alvoroça com affectos, as intelligencias mais elevadas teem d'estas
sympathicas fraquezas.

O politico, o diplomata reservado, fica fóra do portão da quinta do
Mosteiro; alli dentro, n'aquelle circulo de affectos, era o pae
extremoso, o homem de familia, ingenuo, sincero, aberto a todos, porque
em todos confiava, contente por não ter de estudar na expressão dos
rostos os pensamentos que se guardam; nas palavras o sentido, que
n'ellas não vem explicito.

Era um salutar descanço dos continuados esforços da sua vida de Lisboa;
lá a lucta; aqui o repouso.

Por isso ouvia com attenção e applaudia com vontade as narrações da
cunhada, de Magdalena, de Christina e até da pequena Marianna.

E apesar de todo este encanto, em que parecia cair, o conselheiro não
poderia resignar-se a trocar por elle para sempre o vertiginoso
movimento da sua vida politica.

Eram-lhe já necessidade aquella contenção, aquelle esforço de espirito,
aquellas desconfianças continuas, aquelle jogo de astucias, que lhe
tomavam em Lisboa todo o tempo.

Quinze dias no campo bastavam para o fazerem suspirar por as lides e o
afan da capital; nem os affectos da familia o retinham.

A politica é uma embriaguez; nos intervallos em que o espirito se sente
desanuviado dos vapores em que ella o envolve, pesam-nos os desacertos a
que fomos arrastados; o desgosto do mal feito insinua-se-nos no coração;
cêdo, porém, a violencia dos habitos subjuga os remorsos da consciencia,
e de novo nos arrasta.

O caracter intimo da conversação foi levemente modificado por a entrada
de D. Dorothéa e de Henrique de Souzellas, que de Alvapenha vieram
visitar o conselheiro, mal tiveram noticia da sua chegada.

O conselheiro acolheu com jovial cordialidade a senhora de Alvapenha e
com delicada franqueza Henrique, que elle conhecia de Lisboa.
Frequentavam ambos os principaes círculos da capital e, por mais de uma
vez, tinham trocado algumas palavras ou tomado parte em conversas e
discussões communs.

Passado algum tempo depois dos cumprimentos, o serão animou-se de novo,
fragmentando-se porém a conversação.

D. Victoria tomou á sua parte D. Dorothéa e passou a fazer-lhe amargas
queixas a respeito dos criados do Mosteiro, ao que D. Dorothéa acudiu
com conselhos de resignação christã.

Angelo conversava com Magdalena e Christina, a quem frequentemente fazia
rir.

Henrique e o conselheiro, proximos do fogão, estavam empenhados n'um
dialogo muito animado.

O conselheiro parecia estar falando com muita sinceridade e candura que
surprehendiam Henrique, que ainda o não tinha observado por esta face.

--É uma triste verdade--dizia por exemplo o conselheiro n'um ponto
adeantado da conversa, referindo-se a algumas considerações de Henrique
sobre a felicidade d'aquella vida do Mosteiro.--Tenho esta familia que
vê; todos me querem sinceramente aqui, e não sei resistir á fatal
necessidade que me arranca de todos estes braços para me lançar ao
turbilhão da politica e d'isso que se chama o mundo! Pois amo devéras a
minha Lena, creia.

--É um dever que cumpre. N'estes tempos de má fé politica, quem se sente
com a coragem de se votar, corpo e alma, á defeza despreoccupada dos
bons principios...

Nos labios do pae de Magdalena passou um ligeiro sorriso, meio de
descrença, meio de melancolia.

--Defeza despreoccupada? Isso é quando Deus quer--respondeu elle.--Olhe,
Henrique, visto que me veio encontrar em minha casa, a cuja porta eu
deixo, ao entrar, todas as mascaras e artificios, de que uso no mundo,
vae vêr em mim o homem que talvez não esperasse e que, já lhe digo,
debalde procurará reconhecer um dia, se me observar outra vez em Lisboa.
O que lhe vou dizer não lh'o diria, nem lh'o repetirei lá. É verdade que
estes ares do campo tambem actuarão em si para me apreciar e tomar á boa
parte a franqueza. Lá não acreditaria n'ella; se por acaso não a
aproveitasse como arma politica contra mim...

--Pois julga?...

--Peço perdão, se o offendi com isto. Não era esse o meu intento, mas é
pratica tão geral!... Se um dia fôr politico, o que lhe não desejo,
dir-me-ha.

Dizendo isto, fez uma curta pausa na conversação.

Rompendo de novo o silencio, o conselheiro proseguiu:

--Mas falava ahi de principios, que se defendem com desassombro e
através de tudo. Não sei se quiz ser lisonjeiro e disse o que não
sentia, ou mais do que o que sentia. Em todo o caso, eu, aqui no
Mosteiro, acho-me muito ás ordens da minha consciencia, a qual não me
deixa calar hypocritamente. Estou muito longe de ser esse ideal do homem
politico, a que alludiu. Humildemente o confesso; até porque, se
quizesse sel-o, arriscar-me-hia a achar-me só, não teria partido.
Porque, qual é o que vê nas condições de constancia de opiniões que
disse? Tenho crenças politicas, é verdade; espóso no coração certos
principios que quizera vêr realisados, mas não combato por elles a todo
o transe, nem por elles affrontaria o supplicio; antes, por vezes, entro
em transacções, que são a completa negação da divisa da minha bandeira.
E este peccado não sou eu só que o commetto; é um peccado venial da
nossa época. As grandes ideias, que definem e estremam os campos na
politica, havemol-as eu e os mais calcado muitas vezes aos pés, para
sustentar umas insignificantes fórmulas, um interesse mesquinho, um
capricho pessoal. A politica desce muitas vezes a isto. E ninguem é
isento de culpa n'este mal. Para elle concorrem os mesmos que de fóra
nos julgam severamente. Ha muitos d'estes peccados na minha carreira
publica. E, quer que lhe diga, sabe quando vejo claro n'elles? quando me
persuado de que não são de todo desculpaveis? quando... porque o não
direi? quando sinto remorsos de os ter commettido? É aqui, é perante a
boa fé, a sinceridade, a candura d'esta familia, que me tem amor, e que
me considera um homem perfeito, superior, impeccavel. É perante os
generosos sentimentos da minha Lena, e o caracter nascente d'aquella
creança--e indicava Angelo com o gesto.--Parece-me que tenho n'elles
juizes inflexiveis, e escondo por isso a minha face politica dos seus
olhos penetrantes. Ha muita coisa n'ella, para que o mundo é já
indulgente, mas que receio elles me não perdoassem.

Reparando para o olhar de estranheza, com que Henrique lhe seguia esta
effusão de sinceridade, o conselheiro accrescentou, sorrindo:

--Estou a vêr que não esperava estas palavras da minha bôca; esta
confissão de peccador contricto.

--Confesso que não.

--Então que quer? Surprehendeu-me aqui com o coração aberto. Já agora
deixe-me continuar. Uma das ideias que mais me atormentam sabe qual é?
Vê aquella creança que alli está? Angelo? É uma intelligencia que, de
dia para dia, vejo formar-se com um vigor de vida, que me espanta. Não é
a vaidade paterna que me cega, pode acreditar. Conhecendo-o de perto ha
de dar-me razão. Mas o que ha além d'isso n'elle é um senso
profundamente moral, raro até em idades menos tenras. Pois bem, quando
penso n'elle por algum tempo, e conjectura que não serão poucas as vezes
em que o faço?... quando penso n'elle e no futuro, sobresalto-me. De um
lado, seduz-me abrir-lhe a carreira politica, onde ha grandes triumphos
a embriagar as intelligencias e onde presinto que a d'elle terá o
direito, se não o dever, de procurar um logar; mas, se me lembro de que
na atmosphera d'aquellas regiões não duram muito estas primitivas
canduras da alma, tão adoraveis e consoladoras, quando me lembro de que
Angelo será um dia... o que eu já hoje sou, um pouco desilludido, um
pouco sceptico... com franqueza o digo, hesito em impellil-o ao
redemoinho e pergunto a mim mesmo se mais não valeria dizer-lhe: Angelo,
vive obscuro e tranquillo n'este retiro do Mosteiro, conserva aqui a
ideal pureza da tua alma e procura a felicidade nas satisfações do
coração. A lucta da vida pode embriagar-te, filho, mas não te fará
feliz.

--Mas não admitte possivel que um homem possa atravessar a vida
politica, sem sacrificar um só artigo do seu primitivo credo?

O conselheiro esteve algum tempo silencioso, depois respondeu:

--É difficil. Se um dia a fôrça das circumstancias realisasse, como um
phenomeno natural, uma revolução completa nas camadas politicas do paiz
a ponto de trazer á superficie de uma só vez uma geração nova,
impolluta, inspirada de sentimentos generosos e de sinceras crenças,
então sim, não bastaria o tempo de uma vida para produzir n'esses homens
reunidos, que uns aos outros seriam ao mesmo tempo exemplo e vigilancia,
a inquinação que eu receio. Mas lance esses mesmos homens, um a um, a
sós com os seus principios e com os seus esforços, insulados no meio de
uma camada quasi toda composta de elementos velhos, e cada um, após uma
lucta impotente de momentos, ou se retirará, fiel aos principios, mas
desanimado pela inefficacia da sua intervenção, ou ficará, cedendo á
corrente e deixando-se penetrar do espirito pouco ideal, que rege as
massas. Só um d'esses caracteres de excepção, que são raros na historia
do mundo, é que poderia luctar e vencer na lucta. E a esperar tanto de
Angelo não chega o meu affecto paterno.

--Não o fazia tão pessimista, sr. conselheiro;--disse
Henrique--conceda-me que julgue em demasia carregadas as côres do quadro
que me faz. Eu não creio que a corrupção...

--Se acha forte o termo, substitua-o por... o que quizer, relaxação,
tibieza de fé politica, indifferentismo... em todo o caso será uma
doença social. Assim abrandada a fôrça da expressão, não ponha
difficuldades em adoptal-a. Não se me pode levar a mal o propôl-a, desde
que principiei por me declarar affectado da lepra contagiosa.

--Nunca esperei encontral-o tão desilludido. Eu, que me não tenho ainda
assim por demasiado crente, creio que quem entrar na politica sob a
égide de uma convicção profunda, pode...

O conselheiro interrompeu-o.

--Sabe a coragem mais admiravel? a de que menos exemplos existem? É
aquella de que nos dá uma eloquente mostra a historia do aldeão do
Danubio. Sair um homem de um canto retirado da provincia, um pouco
montanhez, e escudado só da sua boa fé, achar-se de repente no meio de
um circulo luzido, illustrado, elegante, novo para elle, e ousar repetir
ahi aquellas falas rudes, que tanto deliciavam o auditorio da sua terra;
vêr o sorriso nos homens, que a seu pesar respeita, e poder resalvar as
suas crenças d'aquelles sorrisos; sentir o ridiculo a seu lado, e ousar
fital-o; ferirem-lhe os ouvidos, a cada passo, as vozes seductoras da
moral elegante e facil, que hoje domina, e conservar-se fiel á austera e
rude moral que lhe falava entre o rumorejar das folhas da sua aldeia nas
longas horas de vigilia e de estudo, que lá teve; cair embora, mas cair
fiel á consciencia, como um leal cavalleiro da idade média caía pela
dama de quem trazia a divisa: é uma especie de lucta, para que não
abundam lidadores, e nem sempre se deve lançar o labéo de traidores aos
que mentem á sua antiga profissão de fé. A maioria cede com boas
intenções. O perigo está em chegar a persuadir-se de que as suas
convicções eram sonhos, em perder o amor ás utopias. Eu confesso que só
quando aqui estou é que sinto avivar, debilmente, o amor que n'outro
tempo lhes tive.

N'isto annunciou-se a visita do sr. Tapadas, fazendeiro opulento e um
dos influentes eleitoraes da localidade, creatura em corpo e alma do
conselheiro, e tão visto em demandas e subtilezas de processos, como o
mais rabula dos lettrados. Demandista por gosto e officio, levava a sua
paixão pela arte a ponto de comprar as demandas dos outros, só por gosto
de as tratar; especie vulgar no Minho, onde uma legislação
especialissima, reguladora da propriedade rural, fomenta estas
disposições no espirito dos camponios, das quaes os juizes são as
miserandas victimas.

Depois de grande exhibição de cortezias, para a direita e para a
esquerda, o Tapadas dirigiu-se ao conselheiro, que o fez sentar ao seu
lado, concedendo-lhe todas as provas de deferencia e de amizade.

O homem que tão judiciosa dissertação acabava de fazer sobre a politica
abstracta, sentiu, na presença do recem-chegado que de novo o abandonava
o espirito da utopia, e principiou a tratar com elle politica pratica,
sob a feição mais mexeriqueira que ella pode revestir.

Tratou-se dos pequeninos processos de preparar candidaturas, por fôrça
ou vontade dos representantes.

Henrique deixou-os na conferencia e foi sentar-se ao pé das senhoras, no
grupo formado por Magdalena, Christina e Angelo.

Escuso de referir o dialogo em que tomaram parte estes interlocutores;
reproduziram-se n'elle os galanteios de Henrique a Magdalena, a leve
ironia d'esta e as respostas timidas e silenciosos despeitos de
Christina.

D. Victoria e D. Dorothéa entremetteram-se, dentro em pouco na conversa,
e desviando-lhe o curso, fizeram-a cair sobre o assumpto das proximas
consoadas.

Passado tempo, ouviu-se o conselheiro dizer, elevando a voz, para o
Tapadas:

--Pois, meu caro Tapadas, que tenha paciencia este bom povo. Com isso é
que eu não transijo. Ninguem é mais condescendente do que eu, menos no
que pode arriscar a vida de muitos e entre essas as dos que me
pertencem. O abuso ha de acabar. Por estes dias deve chegar uma
portaria, mandando expressamente cumprir a lei. Consegui isso do
governo. O cemiterio fez-se. Eu fui o primeiro a dar o exemplo,
levantando alli o sepulchro para a minha familia. Depois d'isso, graças
a um preconceito tolo, á má fé de alguns padres, á frouxidão das
auctoridades e talvez a alguma incuria minha, ainda ninguem mais se
enterrou alli. No entretanto quasi todos os estios se repetem os casos
d'essas febres que a sciencia attribue em grande parte aos miasmas da
igreja onde a extrema devoção d'este povo accumula em certos dias,
durante horas e horas, uma extraordinaria quantidade de fieis. Portanto,
com isso não transijo. Hei de acabar com o abuso.

--Pois sim... mas agora na occasião das eleições... sr. conselheiro, não
sei se faz bem.

--Para compensação trataremos de apressar o principio das estradas;
tambem o pude conseguir.

--Inda assim... Receio alguns motins.

--Reprimem-se.

--O peor é que ha de haver quem lance mão d'essa arma contra nós.

--Quem?

--Ora! não falta quem. Basta o missionario, que já prégou contra isso.

--Não tenho mêdo. Quando muito, algum motimzito sem consequencia.
Leve-os por bem. E se fôr preciso fale ao ouvido d'esse tal
missionario... O homem que quer? Provavelmente alguma abbadia? algum
canonicato? É preciso vêr isso.

--Elle diz que não quer nada.

--Bem sei, todos dizem o mesmo--disse o conselheiro, com a sua descrença
de homem politico.

Tapadas retirou-se mal assombrado. De facto a opinião publica era, por
toda a aldeia, em extremo adversa aos cemiterios, e elle mesmo não
estava de todo limpo do preconceito geral, mas a sua affeição ao
conselheiro obrigava-o a digerir a disposição legal, conforme podia.

Depois d'elle se retirar, o conselheiro disse, erguendo-se:

--Vem em má occasião a medida, vem; é arrojada para épocas eleitoraes;
se houvesse um chefe habil que a aproveitasse, podia... Em todo o caso
não transijo.

Eram dez horas quando se levantou a sessão, e Henrique voltou com a tia
para Alvapenha.

 


XIII


Ao outro dia a impaciencia de Angelo não lhe permittiu longa demora no
leito. Tardava-lhe o vêr todos aquelles sitios, tão seus conhecidos;
arvores que uma por uma distinguia, sebes, atalhos de campos, e
quebradas de montes. A custo o puderam reter para o almoço; resignou-se
porém a não ultrapassar, até então, os muros da quinta. Logo porém que
sorveu á pressa o ultimo golo de chá, partiu, veloz como uma lebre, sem
nem sequer dar ouvidos á enfiada de recommendações de sua tia D.
Victoria, que teimava em o querer prevenir, com sócos, gabão e
guarda-chuva, de uma hypothetica mudança de tempo.

Angelo partiu. A tudo que via pelo caminho encontrava ligada uma
recordação e uma saudade; mas seguia sempre, como quem não errava ao
acaso pelos campos, antes era guiado n'aquelle passeio por um intento,
que tinha pressa de realisar.

Atravessou grande parte da aldeia, cortejado, cumprimentado e festejado
por quantos encontrava pelos caminhos, ou ás portas e janellas das
casas, nos campos e nos ribeiros.

Chegou emfim á casa, onde já dissemos morar o recoveiro Cancella e a sua
filha Ermelinda.

Era evidentemente aquelle o termo proposto por Angelo ao passeio
matinal, porque retardou o passo á medida que se approximava, e parou á
porta da casa.

Achou-a fechada, mas não lhe causou isso embaraço.

Como quem estava habituado a vencer estes estorvos, sondou resolutamente
o muro do quintal, construido de pedras soltas, e dispoz-se á escalada.

Com a agilidade e destreza proprias de quem passou na aldeia os
primeiros annos da vida, o irmão de Magdalena trepou sem vacillar até o
alto do muro, e n'um momento pousou os pés no chão do quintal.

Vendo-se dentro da fortaleza, olhou em redor com precaução e, com mais
precaução ainda, se dirigiu para um bosquezito de laranjeiras, que era o
logar de recreio do pequeno horto.

Foi motivo d'estas precauções o ter já avistado, por entre os troncos e
a rama baixa das laranjeiras, um vulto que se lhe figurou conhecido.

Assim se foi approximando sem que o presentissem e, occulto por detraz
de uma sebe de roseiras silvestres, poz-se á espreita.

Era Ermelinda a pessoa que estava no laranjal.

Sentada sobre o tronco partido de uma laranjeira velha, que mezes antes
havia sido derrubada, a filha do Cancella e afilhada da familia Zé
P'reira, tinha todas as faculdades applicadas á decifração dos
hieroglificos caracteres de um pequeno papel manuscripto, que segurava
nas mãos, e lia a meia voz. De quando em quando interrompia a leitura e,
erguendo a cabeça para o céo, parecia repetir o que lera, como se
pretendesse decoral-o.

Angelo applicou mais o ouvido, a vêr se alguma das palavras, que ella
declamava, lhe revelava a natureza do manuscripto.

De facto, de uma vez, a pequena leu em voz mais audivel e elle escutou a
seguinte quadra:


  --Que lamentavel tragedia,
  Que os meus olhos tristes viram!
  E publicam minhas vozes
  Aquelles que não ouviram!

  E principalmente o rei,
  Que se chama o rei tyranno,
  N'esta região remota
  Do Egypto dilatado.


Depois de ler isto, a rapariguita levantou a cabeça e repetiu:


  --Que lamentavel tragedia
  Que meus olhos tristes viram...


Angelo saiu do esconderijo, e sempre vagarosamente, e com precaução,
veio collocar-se por detraz d'ella, sem que fôsse presentido ainda.

Tão perto chegou, que, por cima do hombro de Ermelinda podia já ler as
quadras que ella estava decorando:


  --Tenho mil linguas, mil bôcas...


ia Ermelinda continuar a ler, quando uma respiração mais profunda de
Angelo a fez desviar a cabeça.

Dando com os olhos n'elle, soltou um grito de sobresalto; depois sorriu
e instinctivamente procurou esconder no bolso do avental o papel que
lia.

Angelo segurou-lhe a mão.

--Que estavas a ler, Linda?

--Não é nada...

--Deixa vêr.

--Não deixo.

--Por que não deixas?

--Para não ser curioso. Que modos são esses de andar a escutar a gente?

--Pois sim, sim; mas deixa-me vêr os versos.

--Não são versos. Quem lhe disse que eram versos?

--Pois não ouvi? Que era isso de tyranno e de Egypto, que dizias?

--Que ha de ser?--disse a final Ermelinda, dando-lhe o papel.--São os
versos do auto dos Reis. Sabe agora?

--Do auto dos Reis? Ai, sim; está a chegar o dia! Mas que tens tu com o
auto dos Reis?

--É que este anno meu pae quer que eu seja a Fama.

--Viva! E que bonita Fama que vaes ser! E já sabes os versos?

--Estava a decoral-os.


  --Tenho mil linguas, mil bôcas...


dizia Angelo, lendo no principio.--O que é pena é pôr uma chochice
d'estas na bôca de uma Fama como tu.

--Que está a dizer? Então os versos não são bonitos?

--Oh! pois não são!--exclamou Angelo, gracejando.--São uma perfeição!

E tendo-os corrido com a vista, principiou a lel-os com accentuação e
emphase comicamente exaggeradas.

--Ora ouve lá:


  Sabei que aquelle Herodes,
  Lobo cruel carniceiro,
  Tremendo de inveja pura
  Lhe venham tirar o reino...


--Então que ha que dizer a isto?

E proseguiu:


  Feria raios de fogo
  De seus olhos com mudança;
  E só pretende fazer
  Alvo da sua vingança.


--Isto é claro e sublime!

--Lendo assim, pudéra!--disse Ermelinda, rindo.

É preciso que advirta o leitor que estas quadras e auto, a que nos
estamos referindo, não são obra da nossa imaginação. Por ahi corre
manuscripto o auto, mais ou menos extravagantemente orthographado,
segundo o systema ou o capricho do copista. Em quasi todas as aldeias
dos arredores do Porto podem vêr em cada anno representado este ou outro
analogo, com applauso e gloria da arte. Ás mãos nos veio uma d'essas
cópias, á qual, menos na orthographia, escrupulosamente nos cingimos.

Angelo era talvez em demasia severo na apreciação critica sobre o
merecimento litterario da obra, ao chamar-lhe uma chochice. É raro que a
musa popular não tenha, apesar da sua rudeza, alguma inspiração. N'este
mesmo auto, se encontram vestigios d'ella. Mas não é nossa missão
apreciar as opiniões dos actores que pomos em scena; tão sómente as
registamos, sem nos responsabilisarmos por nenhuma.

Angelo redarguiu á reflexão de Ermelinda:

--Pois bem; para que não digas que é da maneira de ler, que elles
parecem chôchos, repara; vou lel-os agora com toda a seriedade. Ora
escuta.


  Que quantos até dois annos
  Em Belem fôssem nascidos,
  E toda a sua comarca
  Matassem a ferro frio

  Sem excepção a pessoa
  Que nos districtos se achasse,
  Entendendo d'esta sorte
  Que nós lhe não escapassemos.


--Olhem que semsaboria!

Esta divisão administrativa e judicial, em districtos e comarcas, que o
auctor fez na Judéa e que tanto parecia revoltar Angelo, era uma d'estas
liberdades shakspeareanas, que se devem perdoar aos genios.

--E não foi assim?--perguntou Ermelinda, que não percebia ainda o motivo
dos reparos de Angelo.--Pois Herodes mandou matar todas as creanças da
Judéa; então não mandou?

--Mandou, mandou; mas a Fama é que devia contar isso melhor.

--Melhor?! Então não é bonito esse verso?

E Ermelinda, tirando o manuscripto das mãos de Angelo, leu a seguinte
quadra:


  Para livrarem seus filhos
  Da morte dos innocentes,
  Dos braços faziam cruzes
  Aquellas mães impacientes.


Os instinctos populares da filha do Cancella perceberam a belleza,
talvez um pouco rude, do tocante quadro, que estes versos exprimem.

Esta pequena contenda litteraria entre duas creanças podia dar margem a
profundas reflexões a quem para ellas estivesse disposto.

Angelo estava no principio de uma educação esmerada. Principiára já a
desenvolver-se n'elle a intelligencia, e a acordar os instinctos
artisticos que estremeciam já sob as primeiras seducções da fórma.
N'estas épocas criticas, em que esses segredos se revelam, é tal o
encanto em que elles nos trazem que exclusivamente nos votamos ao novo
culto, com a fanatica intolerancia. Onde as louçanias do estylo, os
primores e a sonora harmonia do metro, e o brilhantismo das imagens nos
não afagam os sentidos, recusamos demorar a vista; e escapa-nos assim na
sombra muita belleza real, ás vezes occulta sob a grosseira revestidura
da poesia ou narrativa popular.

É necessario que passe o enthusiasmo, a violencia da paixão nascente,
que venha a frieza de animo necessaria á imparcialidade do juizo, para
que nos não cause repulsão a aspereza, e grosseria até, da fórma e
consigamos apreciar o bello que por ventura n'ella se envolva.

Dá-se com a belleza da ideia e da fórma de qualquer obra litteraria, o
que se dá com a belleza moral e a belleza physica de uma mulher.

Ambas são feitas para nos commoverem e dominarem. Mas, quando o assomar
de um sentir novo começa a alvoroçar o sangue do adolescente, quando
fórmas vagas e formosissimas principiam a encantar-lhe os sonhos de suas
noites febris, a paixão da fórma domina-o; por ella sacrifica tudo; uma
modelação perfeita, um delineamento gracioso poderá decidir da sua vida
inteira, e na fascinação que o cega, nunca verá a formosura da alma, que
se abriga n'uma pouco feliz encarnação. É que para apreciar a belleza
moral, para a vêr transparecer, através do involucro exterior é preciso
deixar passar a vertigem dos primeiros momentos, ou não a ter ainda
experimentado.

Por isso na infancia e nas idades viris é que melhor se apreciam essas
fealdades, que escondem um coração angelico. A adolescencia é impiamente
cruel para com ellas.

Por uma lei analoga é o povo, o simile da creança, porque não tem os
sentidos educados para as mais subtis bellezas da fórma, e é o homem a
quem ella já não fascina, embora ainda e sempre o deleite, como
poderosissimo elemento de belleza litteraria,--são estes os leitores que
mais aptos estão para avaliarem uma ou outra inspiração que, entre
muitos desvarios, tem a humilde musa que visita a cabana do lavrador ou
a officina do artista.

Apesar da defeza de Ermelinda, Angelo não perdoou ao auto.

--Sabes que mais? Não decores isso--disse-lhe elle resolutamente.

--Meu pae quer.

--O que é que quer teu pae?

--Quer que eu entre no auto.

--E has de entrar. Quem te diz que não?

--E quer que seja a Fama.

--E has de ser a Fama.

--E não hei de falar?

--Has de falar. Tinha que vêr uma Fama que não falasse. Para que lhe
serviriam as cem bôcas?

--Então?

--Então; é que não é forçoso que digas o que ahi está.

--E que hei de eu dizer?

--Outra coisa.

Ermelinda olhava Angelo admirada, sem conseguir comprehendel-o.

--Outra coisa! repetiu ella, instinctivamente.

--Olha, proseguiu Angelo.--D'aqui até chegar o dia do auto vae muito
tempo. Eu te darei outros versos para estudares, em logar d'esses.

--E onde os tem?

--Eu os procurarei. Não digas tu nada. Basta que no dia recites, em vez
d'esses, os que eu te der!...

--Mas que dirá meu pae e o sr. Pertunhas?

--O mestre de latim? Pois que tem elle com o auto?

--É quem ensina como a gente ha de dizer.

--Ah! sim? Pois para que elle nada diga, guarda para a occasião os
versos que eu te arranjar. Até ha de ter graça vêr a cara com que elles
ficarão todos, quando lhes sair uma coisa bem differente do que esperam.

--Mas... diga: onde é que vae buscar esses versos?

--Não sairei da aldeia para isso. N'uma visita que d'aqui vou fazer,
conto obtel-os. Agora falemos de outra coisa. Que é de teu pae?

--Saiu a levar umas encommendas. Minha madrinha, d'alli defronte, está
para a igreja e meu padrinho nas hortas. E eu vou tratar do jantar de
meu pae.

--Pois vae, que eu faço-te companhia.

E Angelo seguiu-a á cozinha, e ahi, ella sentada na soleira da porta a
escolher hortaliça, elle a dar de comer aos coelhos e ás gallinhas, se
entretiveram a conversar.

Angelo falou-lhe de Lisboa, dos theatros, contou-lhe enredos de dramas
que o tinham commovido; typos e situações de romances, que se lhe haviam
gravado na memoria; invenções da arte moderna, versos, anecdotas,
contos.

Ermelinda era toda ouvidos a escutal-o.

Passadas horas, Angelo levantou-se e despediu-se, para sair.

--Onde é que vae?

--Vou visitar Augusto, que deve estar agora em casa.

--E ainda o não viu?

--Ainda não. A minha primeira visita foi esta.

--Então vá, que elle deve estar morto por o vêr. Ah!... já sei a pessoa
a quem vae pedir os versos!

--Quem te disse que Augusto os fazia?

--Eu vi-o estar a escrever na parede da capella da Senhora da Saude de
uma vez que eu ia levar o jantar a meu padrinho, que estava a trabalhar
para aquelles sitios.

--E leste-os?

--Não, que não quiz que elle me visse. Mas que havia elle de escrever na
capella? Então não adivinhei?

--Não sei. Adeus.

--Diga.

--E chamavas-me curioso!

E Angelo saiu apressadamente.

Momentos depois estava com Augusto.

A conversa entre ambos teve toda a intimidade da de dois affectuosos
amigos.

Angelo fez a narração dos episodios da sua vida de collegio; das
difficuldades e das bellezas dos seus estudos n'aquelle anno. Augusto,
que da aldeia com elle os seguia, passo a passo, interrogava-o sobre
algumas dúvidas que tinha, e esclarecia ás vezes tambem, graças á sua
poderosa penetração e natural lucidez, as que o ensino do collegio havia
deixado no espirito do seu antigo discipulo.

A geographia e a historia, que eram as disciplinas estudadas n'aquelle
anno por Angelo, deram assumpto a grande parte d'este dialogo.

Augusto inclinára-se aos estudos historicos, inclinação em que o
herbanario o entretinha com frequentes presentes de livros d'aquelle
genero.

Em exame de livros novos, referencias a outros lidos, e leituras de
alguns mais apreciados, passaram os dois grande parte da manhã, até que
por fim Angelo disse a Augusto:

--Ah! é verdade! Tenho um favor a pedir-lhe.

--Qual é?

--Sabe que está para breve o dia dos Reis?

--Sim.

--E portanto o auto com que o povo d'aqui o festeja; aquelle auto em que
o Herodes faz tremer meio mundo?

--Bem sei--respondeu Augusto, sorrindo.

--Este anno teremos a Linda a fazer de Fama. Fama bonita, por certo; mas
se soubesse os versos que lhe deram para recitar!

E Angelo reproduziu, como pôde, as quadras do monologo da Fama no auto
dos Reis.

De quando em quando passava um sorriso pelos labios de Augusto.

--Eu já conhecia isso. É o costume--disse elle no fim.

--Mas não lhe parece que de uma Fama como aquella, se devia esperar
melhor do que isto?

--E então que quer que eu lhe faça?

--Outros versos para o logar d'estes.

--Outros!... Eu?...--perguntou Augusto.

--Por que não?

--Que lembrança!

--Não me venha negar que os faz.

--Versos?

--Sim.

--Quer dizer que os leio.

--E que os escreve. Vamos. Mas se insiste em recusar, diga-me então quem
é que os escreveu na parede da capella da Senhora da Saude, para eu me
dirigir a elle.

--Então houve quem escrevesse versos na parede da capella?--perguntou
Augusto, sorrindo.

--Não que eu visse; mas já duas pessoas m'o affirmaram, e as suspeitas
de ambas recaíram no mesmo homem.

--Quem foram essas pessoas?

--De uma o ouvi agora mesmo. Foi Ermelinda.

--Ah!

--A outra foi Lena.

--Le... A sr.^a D. Magdalena?

--É verdade, minha irmã. E estranhou, com razão, que eu o não soubesse.

--E como o soube ella?

--Leu-os, e pela leitura conjecturou o auctor.

Augusto calou-se como absorvido por um pensamento, que todo o
preoccupava.

Angelo continuou falando, sem que fôsse escutado; a final concluiu,
dizendo:

--Então quer falar ao poeta da Ermida para que me dê o que lhe peço?

--Poesia não lhe pode elle dar, agora se... alguns versos o
satisfazem...

--Sim, sim, venham os versos; que a poesia eu a procurarei n'elles, até
a achar. Desde já lh'os agradeço.

--A elle?

--A ambos--respondeu Angelo, rindo.--E agora diga-me, Augusto: Ainda
está resolvido a viver aqui sempre enterrado? Não pensa em mudar de
vida?

--Nenhuma outra me namora mais; o destino que a bondade da morgada me
offerecia... não tenho coragem para acceital-o. Assusta-me o peso do
crepe.

--Nem eu lhe digo que deva acceitar esse. Mas o Augusto não terá amigos
que ajudem a seguir outros destinos menos obscuros do que este e menos
pesados do que o que o legado lhe impunha? Meu pae já ...

--Que quer? Não me posso vencer até pedir ou acceitar de outrem
auxilios, quando Deus m'os não tem recusado ainda; nem sei até se esses
destinos, que diz menos obscuros, me fariam mais venturoso. Ha indoles
que nasceram affeiçoadas para a obscuridade. Incommoda-as a demasiada
luz. Umas plantas querem ar, e sol e luz; outras vivem ahi em qualquer
canto escuso e obscuro, e lá mesmo dão flôr. Porque é isto não sei,
mas...

--Sei eu--disse uma voz da parte de fóra da janella, junto da qual se
passára o dialogo...

Voltaram-se os dois ao ouvil-a. A figura do herbanario desenhava-se no
vão da janella, como um retrato de velho n'um caixilho de galeria.

--Ah! o tio Vicente!--exclamou Angelo, correndo-lhe ao encontro.

O herbanario encostou-se, ainda de fóra, ao peitoril da janella, ficando
assim com meio corpo para dentro da sala.

--Viva o nosso doutor--disse elle, sorrindo, a Angelo.--Por emquanto
ainda esse coraçãozito está como era. Não esqueceu os seus amigos da
aldeia.

--Está como sempre estará--respondeu Angelo.

--Sempre!--repetiu o velho.--Sempre e nunca são duas palavras de
terrivel significação... Mas emfim... de bom metal é o coração, assim o
não enferrugem os ares da cidade, como ao de... como ao de tantos...

E mudando subitamente de tom, disse para Augusto:

--Com que dizias tu que não sabes porque algumas plantas vivem de pouca
luz e de pouco ar, ahi em qualquer buraco do muro? É porque vivem muito
pelas raizes essas. As plantas vivem do ar pelas folhas e vivem da terra
pelas raizes. Lá diz aquelle livro da _Historia Natural_ que eu tenho.
Umas prendem-se pouco ao chão; precisam, pois, de se abrirem muito ao ar
para poderem viver; outras porém, profundam tanto a terra, com tantas
raizes se seguram, que d'ellas lhe vem todo o sustento e não desdobram
muitas folhas, nem crescem em grandes ramos para o ar. Como umas e como
outras ha homens no mundo. Tu és dos que deixam ganhar raizes ao coração
e d'ellas vivem. Que te importa o mais? essas grandezas que os outros
procuram? Mas é preciso cautela, rapaz! Ha corações como a hera, que
onde quer que se encosta, prende-se com raizes. Quem é assim deve
dirigir com prudencia as suas inclinações. Se para mau lado dobra, se se
encosta a arvore de preço... mal d'elle! que o separarão com fôrça,
fazendo-lhe estalar todas as raizes, que o prendiam.

As palavras de uma obscuridade sibyllina, ditas pelo herbanario, parecia
terem um sentido para Augusto, que visivelmente se perturbou ao
ouvil-as.

--Que está ahi a dizer, tio Vicente!--disse Augusto, sem ousar fitar o
velho.

--Nada. Tonterias de velhice. A prudencia, que os annos dão, vê longe e
fundo, rapaz... É verdade que... ás vezes... o arrojo dos mocos é tambem
guia feliz... Anda lá com a tua estrella, anda. Ao que já vejo, não sei
se te possa chamar louco... como ao principio não duvidei fazel-o. É
certo que é pouco seguro o terreno, em que sustentas os teus castellos.

--Os meus castellos! Que castellos faço eu?

--Não hei de ser eu que t'os mostre... Só te quero avisar que não ponhas
grande fé em sonhos... Lembras-te do que se passou no monte da ermida?

--No monte da ermida?

--Não viste por lá no outro dia uns signaes de trovoada? A inconstancia
é sempre de receiar. O que n'aquella manhã se passou, o que então vi...

--Que viu?... Que se passou?

O herbanario demorou por algum tempo o olhar em Augusto e com tal
expressão, que o obrigou a desviar o seu; depois accrescentou:

--Nada; o que todos os dias acontece. O céo azul fez-se pardo, a luz
clara cobriu-se de sombras, os raios do sol tornaram-se torrentes de
chuva. Pois não te lembras?... E tudo devido a uma mudança... de
vento... a uns ares que vinham do sul...

Augusto não entendia ou fingia não entender estes mysteriosos dizeres do
herbanario. Angelo estava distrahido devéras.

O velho voltou-se, de subito, para este, perguntando-lhe:

--Tem ido ao mosteiro o hospede de Alvapenha?

--Esteve lá hontem.

--É amigo das creanças?

--Parece-o.

--Conta muitas historias ás senhoras?

--Entretem-as bastante.

--E ao... e a teu pae? Ouve-o com attenção?

--Conversaram muito toda a noite.

O herbanario parecia ligar grande valor a estas perguntas, porque a cada
resposta obtida, abanava pausadamente a cabeça com certo ar meditativo.

Augusto relanceava tambem para a fronte, meio contrahida, do velho um
olhar entre curioso e timido.

O herbanario proseguiu:

--Emfim... A desconfiança é um achaque de velhice e nem sempre os mais
felizes são os mais acautelados. Deus que vele, se os bons lhe merecem
ainda a graça da sua protecção.

--O tio Vicente desconfia do primo Henrique? perguntou Angelo, rindo.

--Primo?!--repetiu o velho, admirado.

--Primo lhe chamamos nós, porque a tia Victoria teima que, sendo elle
sobrinho da tia Dorothéa, é nosso primo tambem.

--Ah? Já ahi vamos? E Lena?...

--Lena, Christe, todos lhe chamam por lá assim.

O herbanario poz-se a murmurar algumas palavras inintelligiveis,
terminando por estas:

--E, como no Egypto, é o vento sul que traz a praga dos gafanhotos. Mas
Deus que vele, Deus que vele. E eu não me demoro mais, que vou ainda
d'aqui aos pardieiros de Cernuche.

--Á caça dos sapos, tio Vicente?--perguntou Angelo, gracejando.

--Não, que não é agora o tempo--respondeu, sisudo, o velho.

--Dos sapos! Galante caça, na verdade!--continuou Angelo no mesmo tom.

--Galante não será ella, pequeno,--respondeu o velho;--mas abençoada a
chamarias se te torcesses no leito com as dores do carbunculo, que não
ha remedio mais efficaz para o curar, do que a pelle d'estes animaes
sêcca ao ar livre.

--E a das toupeiras? O tio Vicente tambem caça toupeiras?

--Em seu tempo. Oh! a toupeira é animal de abençoadas virtudes! Basta
que um dente que se lhe arranque, estando ella viva, trazido ao pescoço,
cura a mais desesperada dor de dentes.

--Não deve ser facil operação a de tirar os dentes ás toupeiras--tornou
Angelo.

O herbanario continuou:

--A quinta essencia das toupeiras é milagrosa contra cancros e herpes.

--A quinta essencia das toupeiras!--repetiu Angelo, rindo.

--Não rias, creança--acudiu severamente o herbanario.--Que não é bonito
rir do que os homens doutos asseguram. Eu já o experimentei, logo que o
li n'aquelle grande livro da _Polyantheia_, livro como se não faz hoje
outro.

--E como é que se tira a quinta essencia a uma toupeira, tio Vicente?

--Tomam-se as toupeiras e queimam-se até as fazer em cinzas. Mistura-se
a estas cinzas o sumo de celidonia maior, até haver quatro dedos de sumo
acima das cinzas. Mette-se tudo n'um vidro bem fechado, que se enterra
por dez dias e... e... Bem, bem. Elle ri!... Tolo sou eu em gastar tempo
e paciencia com creanças.

--Espere, espere, tio Vicente... Não vá embora... Então depois de
enterrar tudo isso, que se faz?

--Até logo... Pede a Deus que nunca te seja preciso fazer a pergunta com
menos vontade de rir.

--E assim vae sem me dar um remedio! Olhe, tio Vicente, eu padeço ás
vezes de um somno tão pesado que me não deixa estudar.

O herbanario voltou-se e, com toda a seriedade, respondeu:

--E julgas que não sei de remedio para isso? Experimenta e verás. Mette
um ou dois morcegos debaixo dos travesseiros e eu te affirmo que... Mas
adeus, que se me faz tarde e d'aqui a Cernuche é uma legua.

E o herbanario retirou-se, meio agastado com o scepticismo de Angelo e
sobraçando a caixa de lata e o sacco dos seus thesouros medicinaes.

Angelo e Augusto ficaram rindo da sciencia e das singularidades do
velho, riso em que não entrava, porém, o menor laivo de malignidade;
porque ambos tinham pelo velho uma verdadeira estima, que elle bem lhes
merecia, pois sempre do coração o achavam votado a seu favor.

O dialogo de Angelo e de Augusto prolongou-se ainda, até ás horas do
jantar.

 


XIV


Eu não sei se esta historia terá leitor tão mal aventurado, que não
possua recordações e saudades associadas á noite de Natal, áquella
festiva e abençoada noite, em que as ruas e os logares publicos se
despovoam, e nos lares domesticos parece crepitar e scintillar o fogo
mais acalentador do que nunca. Se algum desherdado da fortuna ha ahi que
não saiba o que é a festa das consoadas em familia, esse que não leia
este capitulo, que n'elle não encontrará prazer. Se alguns as gosaram já
n'outros tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas solitarias,
olhando com inveja para cada raio de luz que rompe das frestas de tantas
janellas discretamente fechadas, ouvindo commovidos o ruido das alegrias
que vão no seio das familias, e pela phantasia creando em cada morada um
mundo intimo de affectos e de venturas, como o de que a sorte os privou,
que esses me perdoem as amargas saudades, que por ventura lhes avive
assim.

É certo que não ha noite mais alegre; alegre d'esta alegria que vae
direita ao coração, sem perturbar os sentidos com fumos de embriaguez;
alegre d'esta alegria candida a que o homem é sujeito do berço á
velhice, a qual respeitam os estos das paixões, na idade d'ellas, e o
gêlo do egoismo, no declinar da vida.

Bem escura, bem ventosa, bem fria e humida surjas tu sempre, noite de
vinte e quatro de dezembro, que melhor então se avaliará pelo contraste
a luz, o calor, o conchêgo dos lares, e mais intimos se estreitarão os
circulos da familia em roda da ceia patriarchal.

E vós todos, a quem uma moda tôla não constrangeu ainda a abandonar os
habitos que de pequenos contrahistes, e festejaes ainda o Natal de
Christo, segundo o estylo velho, continuae a manter genuinos esses
costumes nacionaes, que não resultará d'ahi desdouro para o vosso nome
ou brazão. A roda da civilisação, a que applicaes hombros com tanto
denodo, não se cravará por isso.--Podeis, elegantes meninas, cantar lôas
sem escrupulo deante do presepe armado na sala mais intima da casa, que
nem por isso cantareis peor na das visitas as arias italianas, que
aprendestes no collegio; não córeis de collaborar, por excepção, esta
noite nos mesteres da cozinha, que sobra de agua de colonia e perfumes
tendes no toucador para as abluções purificatorias. Homens graves, a
republica perdoar-vos-ha uma pequena infidelidade, a politica do paiz e
da Europa não periclitará desnorteada se, por um pouco, lhe negardes a
vossa attenção; humanisae-vos pois uma vez por anno, e baixae ao seio da
familia os olhares, que ponderosos empenhos vos trazem
sublimados.--Entrae com as creanças em jogos pueris e faceis, que não
destemperareis a intelligencia para as philosophicas cogitações do
_boston_ e do _whist_.

A familia do Mosteiro era fiel ás classicas usanças d'esta noite
tradicional. E n'aquelle anno sobretudo as festas das consoadas deviam
ser coisa falada, graças ao plano de D. Victoria de reunir no Mosteiro a
resumida familia de Alvapenha; plano que vimos approvado por acclamação
por toda a assembleia presente.

D. Dorothéa veio effectivamente na companhia de Henrique de Souzellas e
de Maria de Jesus.

Foram recebidos no Mosteiro por uma completa ovação das creanças.

D. Dorothéa viu-se litteralmente enlaçada em braços infantis, que lhe
tolhiam os movimentos e que, dizia ella, quasi ameaçavam asphyxial-a.

Tudo isto dava motivo a exclamações e risos, que inauguraram um estado
de coisas, o qual nunca mais devia cessar aquella noite.

A balburdia, a azafama festiva que ia no Mosteiro é indescriptivel. Na
cozinha, nas salas, nos corredores tudo era movimento e ruido.

Aqui eram as creanças jogando, a pinhões, o «par ou pernão» e o «rapa»,
jogos popularissimos e de occasião, que, de tão conhecidos, dispensam o
trabalho de descrevel-os. Estes jogos, como é de prever, não se
executavam sem um concurso de vozearia e de algazarra, que desafiava a
impaciencia de D. Victoria, a qual, segundo o costume, ia, pelo que se
passava na sala, ralhar com os criados á cozinha.

No aposento immediato ao quarto de D. Victoria, armára-se o presepe,
deante do qual ardiam seis vélas de cêra em castiçaes de prata maciça.

As duas velhas senhoras, D. Dorothéa e D. Victoria, encetaram logo no
principio da noite uma longa e devota reza, meio recitada, meio cantada,
a qual se continuava com uma interminavel enfiada de Padre-Nossos e
Avé-Marias, a que respondia, em côro, a parte feminina, da familia, as
creanças e as criadas.

Corypheu era a senhora de Alvapenha, que em voz trémula e quebrada pela
idade, entoava em singela cantilena coplas como esta:


  Ó infante suavissimo,
  Vinde, vinde já ao mundo
  Livrar-nos do captiveiro
  D'este jazigo profundo.


E seguia-se um Padre-Nosso e uma Avé-Maria.

Angelo havia ao principio, com as suas travessuras, desordenado um pouco
o andamento regular das rezas, mas D. Victoria tomou o heroico
expediente de o expulsar do congresso, e tudo serenou.

Á sala, onde Henrique de Souzellas conversava com o conselheiro em
assumptos, todos d'esta vez longe da politica, chegaram as surdas
harmonias d'aquellas cantigas e rezas. Henrique mostrou curiosidade de
saber o que era aquillo. O conselheiro, sorrindo, convidou-o a seguil-o
para por si proprio se poder informar.

E, tomando por aposentos interiores, conseguiram ambos introducção na
sala da novena justamente ao lado de D. Victoria e de D. Dorothéa, que,
de embebidas que estavam nas suas orações, nem por elles deram.

O conselheiro e Henrique ajoelharam sisudamente ao lado d'aquellas boas
senhoras, e quando após um dos Padre-Nossos, ditos por D. Dorothéa, se
devia seguir a resposta do côro feminino, este emmudecido, com a chegada
dos dois, a qual desafiára risos a custo suffocados, foi substituido por
um dueto de vozes masculinas, que sobresaltaram primeiro, e
escandalisaram depois ambas as sisudas senhoras.

O tumulto que o episodio produziu fez attrahir as creanças; D. Victoria
teve muito que fazer, muito que reprehender o cunhado, muito que ralhar
com os filhos e com o sobrinho, muito que carpir-se com D. Dorothéa,
muito que recriminar os criados, rindo-se, bem a seu pesar, no meio de
todas estas tarefas.

Terminou confusamente a novena com tal occorrencia. Os desordeiros
sómente capitularam, consentindo em retirar-se, quando lhes prometteram
que se encurtaria a lista dos Padre-Nossos. Henrique voltou com o
conselheiro a admirar o primor que a paciencia de um artista imaginoso
realisára na confecção do presepe, onde estavam representados todos os
episodios da natividade de Jesus, e muitos outros.

Era effectivamente uma complicada machina aquelle presepe, e seria prova
de profunda indifferença artistica passar por elle sem um exame, embora
fugaz.

Este traste antiquissimo na familia gosava de nomeada n'um circulo de
leguas em redor. Havia empenhos para o vêr no tempo do Natal, e se algum
viajante estacionava dois dias na aldeia, encontrava sempre quem lhe
recommendasse o visitar o presepe, como coisa digna de vêr-se.

Consistia elle n'uma espécie de santuario de pau preto, no meio do qual
havia uma pequena gruta toda cravejada de caramujos, e rosas de papel,
com estames de fio de prata. Dentro d'essa gruta estava deitado o menino
Deus, não sobre umas palhas, como a tradição refere, mas graças aos
impulsos do compadecido coração de D. Victoria, que, ainda que tarde,
parecia tentear um lenitivo aos antigos rigores da humanidade, em uma
bonita cama de lençoes de renda com cercadura dourada; colcha de setim
bordado, e colchão e travesseiro da mais macia penugem de aves
americanas. Ao lado, Nossa Senhora e S. José, de proporções quasi iguaes
ás do menino; mais longe a vacca e a mula tradicionaes. Os episodios
porém eram inquestionavelmente o mais interessante da obra. Varios
grupos de pastores, soldados e fidalgos de todos os tamanhos, feitios e
vestuarios, ornavam a scena. Alli um cego tocador de sanfona; um grupo
de gallegos dançando, ao som da gaita de folle; uma pastora com ovos
mais adeante; ao lado, um grupo celebrando um _pic-nic_, perfeita
actualidade, tudo em mangas de camisa, com gravata, e botas de
cano;--outros fumando e bebendo cerveja. Uma amazona ingleza, com o seu
Jockey, galopava pelas cercanias de Bethlem; um vareiro e uma vareira
caminhavam a par com offertas para o menino. Ao longe, nos visos da
serra, appareciam os tres Reis Magos, que deviam levar dez dias a chegar
abaixo.

Não esqueceu ao inspirado auctor d'aquelle monumento esculptural os
muros de Jerusalem. Elles lá estavam coroados de ameias e de milicianos
fardados á ingleza e armados de lanças e arcabuz. Eram gigantes aquelles
guerreiros, pois, não obstante estar a muralha no plano do fundo do
quadro, qualquer d'elles era duas vezes maior do que as figuras do plano
da frente. No alto da muralha arvorava-se a bandeira portugueza. Havia
varios santos espalhados pelas agruras d'aquellas montanhas, e, entre os
additamentos feitos pela devoção de D. Victoria ao presepe, contava-se o
de um Santo Antonio de Lisboa, que, apesar de thaumaturgo, parecia muito
admirado de se vêr n'aquelle tempo e logar. Um gallo colossal soltava do
telhado do presepe o grito annunciador, anjos e cherubins espreitavam do
céo por entre nuvens de algodão e estrellas de ouropel. Era um prodigio!

Descrevendo rapidamente esta maravilhosa fabrica, sentia eu vivo orgulho
de ter revelado ao mundo uma preciosidade sem igual, e a que a unanime
admiração faria cêdo ou tarde justiça; tive porém de abandonar esta
lisonjeira idéa, ao achar-me precedido por um dos romancistas mais
justificadamente populares da nação vizinha. Das paginas de um delicioso
quadro de costumes de Fernan Caballero, a eminente escriptora de que a
Andaluzia se ufana, conheci eu serem não sómente nacionaes, mas
peninsulares pelo menos, estes modelos de presepes, com os seus ingenuos
anachronismos, cunho irrecusavel que o povo imprime a todas as suas
obras de arte. Onde falta o anachronismo, falta a assignatura do povo.

Em todo o caso era digno da menção que d'elle fizemos o presepe do
Mosteiro.

Emquanto Henrique e o conselheiro o estudavam por miudo, D. Victoria
fizera desfilar o cortejo das criadas para a cozinha, onde urgia o
serviço, e seguindo-as ia-lhes demonstrando que eram as peores criadas
do mundo, por isso que, tendo tanto que fazer, perdiam tempo a cantar
lôas deante do presepe. D. Dorothéa cêdo tomou com Magdalena e Christina
o mesmo caminho.

O conselheiro e Henrique ficaram nas salas com os pequenos, e com elles
entraram em jogos, como se fôssem creanças tambem.

O aspirante a ministro, o deputado, o orador, o homem grave e sério das
salas de Lisboa perdera todo o ar diplomatico: agora era sómente o homem
da familia; pueril, travesso, alegre, folgazão.

--Meu caro,--dissera elle a Henrique no principio da noite--vou
fazer-lhe um pedido. Hoje deve ser banido o menor assumpto politico, a
menor discussão séria. Deixe-se correr frivola a conversa da noite, o
contrario seria uma profanação, que attrahiria sobre nossas cabeças as
justas iras dos anjos domesticos que n'estas noites andam invisiveis
misturados com a familia.

--Apoiado,--respondeu Henrique;--acceito e comprometto-me a cumprir a
proposta.

Henrique possuia em alto grau o talento de se tornar agradavel.
Comprehendendo que eram sinceros os desejos do conselheiro, tão frio e
pueril conseguiu mostrar-se, que todos o tratavam como membro da
familia, e ao proprio conselheiro parecia já impossivel que ainda fôssem
tão recentes as suas relações mais intimas com aquelle rapaz.

--Animo, sr. conselheiro,--dizia-lhe Henrique, no momento em que elles
ambos estavam empenhados a jogar a cabra cega com os pequenos.--Coragem,
que temos gloriosos exemplos a animar-nos; até, entre outros, o do meu
homonymo Henrique IV. É sabido o episodio recordado por uma gravura
celebre.

O conselheiro secundava-o, rindo: graças a estes jogos, a sala estava
dentro em pouco em desordem; os moveis fóra da sua posição, o chão
alastrado de cascas de pinhões, que estalavam sob os passos, os tapetes
desviados, as cortinas soltas.

Já por noite avançada, disse o conselheiro para Henrique:

--Falta-nos ainda um artigo importante do ritual d'estas festas, o
principal. É dirigir uma visita á cozinha. Porque a obra principal
d'esta noite é fazer uma ceia e não comel-a. Por isso convido-o a
acompanhar-me lá.

--Com tanto mais vontade, que estou ha muitos dias compromettido a isso
com as senhoras.

--N'esse caso é tempo.

E ambos tomaram pelo corredor, que conduzia á cozinha.

Escusado parece dizer que turba infantil os seguiu tumultuariamente,
annunciando-os ao longe com risadas e gritos de alegria.

A cozinha do Mosteiro era uma digna cozinha de frades. Occupava um vasto
recinto rectangular, rasgado em amplas janellas e fornecido de bancas
monumentaes, condizendo com a estupenda chaminé, que parecia ainda
saudosa dos odoriferos vapores que outr'ora espalhavam os tachos e as
grelhas monasticas.

Ia indizivel animação na cozinha, quando Henrique ahi entrou com o pae
de Magdalena. Era um barafustar de criadas, um chiar de certãs, um
borbulhar de caçarolas e tachos, um tinir de pratos, um tilintar de
crystaes no meio de uma babel de ordens, de perguntas, de reclamações,
de conselhos, todos attinentes a negocios culinarios. E D. Victoria
ralhava, e a sr.^a de Alvapenha promulgava preceitos, e Maria de Jesus
desdenhava do serviço das collegas, e Magdalena e Christina riam de
todos e de tudo, e Angelo a todos impacientava.

Não se imagina!

A chegada do conselheiro e do seu hospede veio exacerbar a desordem.
Ergueram-se risos e exclamações, as quaes ainda assim eram subjugadas
pelos reparos e censuras de D. Victoria, a qual dizia para o
conselheiro:

--Sempre o mano tem coisas! Olhem agora para o que lhe havia de dar! Vão
lá para dentro, vão. Não venham atrapalhar-nos mais ainda do que
estamos. E o primo Henrique tambem! Ora esta!...

--Não se afflija, mana. Nós não podiamos resignar-nos a ficar alheios á
tarefa principal do dia. E até porque é necessario dar andamento a isto
para chegarmos a tempo da missa do gallo.

--Pois querem ir á missa do gallo?

--Está de vêr que sim.

--Eu tambem vou--disse Christina.

--E eu--acudiu Magdalena.

--Mais um, que irá tambem--disse Henrique.

--E eu, e eu--accrescentaram differentes vozes.

--Ai, minhas encommendas!--suspirou D. Victoria.--Então por que não
disseram isso logo? Agora como ha de ser?

E saiu em direcção á sala da ceia a dispôr as coisas.

É preciso que se diga que D. Victoria vivia na candida illusão de que
era ella quem fazia tudo em casa, emquanto que manda a verdade declarar
que nunca mais regularmente corriam as coisas domesticas do que quanto
dormia esta aliás excellente senhora.

--Mãos á obra, sr. Henrique!--bradou o conselheiro, insistindo na
resolução com que viera.

--Prompto--respondeu Henrique.

--Então? então?... Que vão fazer?--perguntava D. Victoria, afflicta,
voltando á cozinha.

--Querem vêr que preparos?!--dizia D. Dorothéa, sorrindo e olhando com
curiosidade para o que faziam os dois.

--Cumpro uma promessa que fiz a estas senhoras, minha tia--dizia
Henrique, approximando-se da banca, perto da qual trabalhavam Magdalena
e Christina.

--É verdade que sim,--acudiu Magdalena--e eu exijo o cumprimento da
promessa.

--Vamos lá, sr. Henrique,--tornou o conselheiro--acceite-me alguns
preceitos da pratica. A regra é fazer tudo o mais indigesto possivel;
porque essa qualidade é o caracteristico dos manjares d'esta noite.

--N'esse caso, vejo que nasci para cozinhar a ceia do Natal, pois
desafio o melhor estomago do mundo a que subjugue os meus guisados com
os seus succos digestivos.

--Eu já escolhi tarefa--disse o conselheiro, tirando das mãos de
Christina a colhér com que ella mexia o vaso onde se preparava o vinho
quente, esse _punch_ nacional, que n'esta noite seria uma falta
imperdoavel se esquecesse no programma d'aquelle banquete.

Christina quiz resistir; mas o conselheiro venceu, e cêdo principiou a
desempenhar-se d'este trabalho, no meio de hilaridade geral.

Angelo dispensou a tia Dorothéa do trabalho da preparação dos mexidos.

Henrique, seguindo o exemplo do conselheiro, e no seguimento do seu
constante proposito, approximou-se da morgadinha, que n'aquelle momento
se occupava a regar de calda de mel umas recentes rabanadas.

--Peço trabalho, prima Magdalena.

--Não ha falta de braços n'esta repartição, primo Henrique. Vá a outra
porta.

--Agrada-me mais esta tarefa, acho-a ao alcance das minhas fôrças.

--Esta? Como se engana! Não sabe que as rabanadas são a essencia da ceia
de Natal? E logo havia de confiar-lh'as?

--Ah! não ligava tanta importancia a estas representantes da pastelaria
primitiva, notaveis porque recordam a infancia da arte! Emquanto a mim,
já no tempo da peregrinação dos hebreus, Moysés lhes ensinava a cozinhar
d'isto.

Magdalena abanou a cabeça em signal de reprehensão.

--Perdôe ás pobres rabanadas o pouco ar de moda que teem. A sua
elegancia é implacavel, primo Henrique. Um indigesto manjar francez
seria de melhor tom, bem sei. Até n'isso!

--Para provar que estou arrependido da minha irreverencia, consinta-me
que a coadjuve, prima.

--Não pode ser; pesa sobre mim uma tremenda responsabilidade.

--Isso equivale a recusar-me o fôro de familia, que tão humildemente
reclamo.

--Justamente--respondeu Magdalena.--Eu sou muito escrupulosa n'isso. Faz
mal em não reclamar esse fôro de Christina, que talvez encontrasse mais
disposta a conceder-lh'o.

--Mas, se me não engano, foi a prima Magdalena que primeiro me conferiu
o apreciavel titulo de parentesco com que nos tratamos.

--O de primos? Esse sim; mas não tem os privilegios, que lhe quer dar.

--Que privilegios são?

--Ah!... o de collaborar n'uma ceia de consoadas, por exemplo.

--Parece-lhe, priminha, que será muito exigir o que eu peço?--perguntou
Henrique a Christina, que principiára a escutal-os.

--Não ouvi--respondeu esta, córando e sorrindo, como sempre que lhe
falava Henrique.

--Escusado é consultar Christina--acudiu a morgadinha--porque em muitas
coisas pensa ella em opposição commigo. E n'isto...

--E n'isto...

--N'isto de attender a requerimentos, é talvez mais condescendente.

--Ao que estou vendo--disse o conselheiro jovialmente--grandes coisas se
tinham passado aqui, antes da minha chegada. Vejo lavrar uma hostilidade
entre Lena e o sr. de Souzellas, que me dá sérias inquietações.

--E eu julgo que não. Ao que ouvi ao Henriquinho, a primeira vez que viu
a nossa Lena no Mosteiro!...--disse D. Dorothéa, com toda a indiscreção
da sua ingenuidade.

Magdalena procurou acudir a tempo á corrente das revelações, a que viu
disposta a boa senhora.

Veio opportunamente em seu auxilio Angelo, que tendo feito uma digressão
pela sala do refeitorio, voltou com a alegre nova de que a ceia estava
na mesa.

O annuncio foi recebido com apparente enthusiasmo. Suspenderam-se
trabalhos, quasi completos, ultimaram-se á pressa outros, e a companhia
dirigiu-se para o corredor.

Pouco depois de Angelo, chegou D. Victoria, desmentindo-o e pretendendo
suster a corrente, que ameaçava invadir a sala, que ella ainda não dera
por prompta. Já não era tempo. O conselheiro, tomando duas creanças ao
collo, rompia a marcha, e atraz d'elle até a pacifica D. Dorothéa
clamava insubordinada que não recuaria um passo.

E falando e rindo assim entraram na sala.

Estava offuscante de luzes, esplendida de louças e baixellas, enfeitada
de flores e de crystaes e ennevoada dos vapores das iguarias.

Houve um grande rumor de cadeiras arrastadas, uma confusão e
incoherencia de ordens de D. Victoria para marcar logares, infracções
d'estas ordens, que a impacientavam, como se com isso pudésse perigar a
ordem natural e social do mundo, e, como justa consequencia, caía sôbre
a cabeça dos criados uma enfiada de recriminações, que elles por habito
já soffriam com exemplar paciencia.

Restabelecida emfim a ordem, procedeu-se á ceia.

Ceia de Natal! abençoado banquete, ao qual todos se devem sentar nas
mesmas disposições de animo em que ordenava Christo estivessem os que
fôssem orar ao templo; ceia com tanto afan cozinhada, e com tão pouca
vontade comida, falem embora contra ti os medicos e os gastronomos
eméritos, condemnando uns a indigestibilidade dos teus cozinhados,
outros o pouco delicado d'elles; reage contra as ideias novas, que veem
da França e da Allemanha; cerra as fornalhas ás iguarias exoticas e
furta-te ás mãos da extranha geração de Vateis, que aspiram a dominar
pelos paladares o espirito nacional.

Modifiquem embora o caracter vernaculo de todas as outras refeições, mas
respeitem esta, consagrada pelas memorias da familia, justificada pelo
facto de que quasi não é feita para ser comida.

Assim succedia com a do Mosteiro. Apesar das instigações do conselheiro,
das instancias de D. Victoria, das garantias de D. Dorothéa sobre a
innocuidade dos guisados, os pratos corriam á roda da mesa quasi
intactos e intactos voltavam á cozinha d'onde sairam.

Mas se se comia pouco--e de facto, á excepção de Henrique, do
conselheiro e das creanças, quasi ninguem parecia haver-se sentado alli
para ceiar--mas, diziamos nós, se se comia pouco, em compensação
falava-se muito.

O conselheiro a todos dirigia a palavra, demonstrando uma iniciativa
efficaz para baralhar e generalisar as conversas e assim conservar
constante a animação. Tudo desafiava risos, o dito de uma creança, a
anecdota contada por Henrique, as distracções de D. Victoria, as
canduras de D. Dorothéa, os paradoxos sustentados pelo conselheiro, as
allusões da morgadinha a Christina, a confusão d'esta, as maliciosas
insinuações de Angelo.

Assim procedeu o repasto nocturno até á altura das saudações e dos
_toasts_. N'esta parte, justo é confessar que Henrique e o conselheiro
fôram menos abstinentes. Era difficil resistir á preciosidade dos
vinhos.

Passados os reciprocos brindes entre os parentes, o conselheiro,
voltando-se para Angelo, auctorisou-o a propôr tambem um brinde.

Angelo levantou-se então para brindar Augusto.

O conselheiro secundou-o, levando o copo aos labios.

--Ah! o sr. Augusto--disse Henrique, antes de beber e com certo tom de
ironia.--Conheço; é uma ave rara d'estas immediações, que tem brios de
cavalleiro errante sob umas apparencias de philosopho.

--Brios de cavalleiro?--disse Angelo, com vivacidade.--Inda isso não é
tudo, sr. Henrique; pode accrescentar, e alma de heroe tambem.

--Pois dê-se-lhe tambem alma de heroe, e se fôr preciso até consciencia
de santo. Vá á saude da phenix!

E bebeu.

Depois de pousar o copo, proseguiu com o mesmo tom anterior:

--O que vejo é que é perigoso falar com a mais ligeira irreverencia
d'esta personagem; corre-se o risco de vêr voltar contra o impio, que
tanto ousa, os poderes conspirados do céo e da terra. Bem; prometto
acatar essa preciosidade.

--E creia--disse-lhe o conselheiro--que lhe é merecedor de toda a
consideração. Augusto é um d'estes caracteres excepcionaes que vivem á
sombra de uma modestia impenetravel e á sombra d'ella muitas vezes
morrem. É necessario ter a vista muita exercitada n'estas explorações de
almas modestas, para descobrir uma assim.

--Felizmente para os myopes como eu--proseguiu Henrique--ellas fazem ás
vezes a fineza de se despojarem da sua timidez e de se mostrarem á luz.
Não é verdade, prima Magdalena?

--Que admira;--respondeu Magdalena--bem occulto está o fogo na
pederneira, primo Henrique, mas, percutindo-a, salta a faisca.

--Pobre rapaz;--notou a sr.^a de Alvapenha--aquillo nem parece d'este
tempo. O que eu não sei, primo Manuel, é porque elle se não resolveu a
tomar ordens. Recusar o legado da D. Rosa!

--Não seja isso a dúvida. Elle sabe que, adoptando essa ou outra
qualquer carreira, não lhe faltarão recursos para seguil-a até o fim.
Devo-lhe esse auxilio, assim elle o acceitasse; mas tem um genio
singular aquelle rapaz!

--É uma phenix--insistiu Henrique, ironicamente.--Vejo que não é
susceptivel de discussão, impõe-se á gente como um axioma. Eu tenho
habitos de livre pensador, mas... forçar-me-hei a incluir no meu credo
esse dogma.

--Perdão--replicou Angelo.--Um axioma não se demonstra, e a boa alma de
Augusto está todos os dias a demonstrar-se por acções generosas.

--Por favor!! Dêem como não ditas as minhas palavras! Arrependo-me da
minha irreverencia, e se elle aqui estivesse, principiaria a
penitenciar-me na sua presença.

--E é certo que nos falta aqui Augusto. Como te não lembraste d'elle,
Angelo?

--Não viria. N'esta noite não deixaria o tio Vicente.

--Ah, sim. Esquecia-me d'aquelle pobre Vicente.

--É do herbanario que falam?--perguntou Henrique.

--Justamente.

--Outra phenix; e quer-me parecer que tambem pertence ao numero dos
inviolaveis; não é verdade, prima?

--Pertence ao numero dos infelizes, primo, o que é justo considerar-se
uma especie de inviolabilidade.

A resposta collocou Henrique em mau terreno, e por isso apressou-se a
desviar do ponto principal da questão, dizendo:

--Infeliz? Por que lhe chama infeliz? Os visionarios como elle teem em
si os elementos da propria felicidade, e ninguem possue poder de
perturbar-lh'a. Além de que o herbanario gosa aqui na terra de uma certa
soberania, que deve lisonjeal-o.

--E olha que nem em Lisboa ha talvez quem saiba tanto como elle em
coisas de doenças e de remedios, menino,--disse D. Dorothéa, que era uma
das fervorosas apologistas da sciencia do herbanario.

--É na verdade um homem singular!--disse o conselheiro.--D'antes, na
noite de Natal, e em todas as solemnidades de familia, tinhamol-o tambem
por commensal, que ainda é parente arredado da casa. Ha annos porém deu
em tomar a peito o meu procedimento politico e em prégar-me sermões e
dirigir-me censuras, que eu fazia por escutar com a possivel resignação.
Mas um dia foi mais amargo nas suas recriminações e eu achava-me com
maior susceptibilidade; julgo que lhe respondi com bastante acrimonia, e
o homem saiu de minha casa offendido e protestando não voltar mais a
ella. Procurei-o, escrevi-lhe, tentei demovel-o do seu proposito. Não
houve de quê. Havia-o ferido no seu orgulho, e é intolerante n'estas
condições.

--Sei-o já por experiencia;--disse Henrique--que n'uma unica entrevista
que tive com elle, e que durou minutos, deu-me occasião de lhe conhecer
a irritabilidade.

--Vamos, primo Henrique; talvez possa haver quem supponha que n'essa
entrevista não demonstrou o primo peor do que elle possuir as qualidades
de que o accusa.

--Agora--continuou o conselheiro--vão consideravelmente exacerbar-se os
despeites do herbanario contra mim.

--Porquê?--perguntou Magdalena.

--Porquê?... por causa do traçado que se adoptou para a estrada.

--Então?--disseram simultaneamente Angelo e Magdalena.

--A casa e o quintal do herbanario são os primeiros cortados.

--Não pode ser!--exclamou Magdalena, com evidente expressão de susto.

Angelo dirigiu ao pae um olhar tambem inquieto.

Christina não exprimiu menos apprehensiva tristeza.

--É inevitavel. Os dois primeiros traçados tinham certas durezas. O
primeiro era uma luva lançada a uma influencia eleitoral, poderosissima;
o brazileiro Seabra.

--Ah!--disse Magdalena, com certa amargura na expressão e no olhar.

O conselheiro reparou n'ella e em Angelo, em cuja physionomia se não lia
menos intenso desgosto.

--Estou adivinhando que meus filhos votariam por que antes se arrostasse
com os despeites d'esse influente. A logica do sentimentalismo tem
d'essas exigencias absolutas.

Magdalena respondeu:

--Julguei que era a da consciencia, meu pae.

--A consciencia diz-me que ha interesses superiores ás contemplações com
as singularidades de um velho honrado, mas... meio tonto. Na carreira
politica ceder ao coração é morrer ou ser vencido. O sentimentalismo
exaggerado, Lena, tem o inconveniente de dar tanto vulto ás vezes a um
sacrificio individual, que, para o evitar, não duvida prejudicar maiores
e mais geraes interesses e operar sacrificios mais custosos. É muito
tocante na verdade o amor de um velho pelas suas arvores e pela sua
casa; porém, mais respeitavel é o bem-estar e a conveniencia de uma
localidade.

--E é tão necessario para a felicidade d'esta terra o sacrificio a que
se quer obrigar o herbanario?--perguntou Angelo, e Magdalena secundou
com o olhar a pergunta do irmão.

--Eu te digo, Angelo--respondeu o conselheiro, levemente despeitado.--Eu
tinha a vaidade de me suppôr ainda prestavel para esta gente, que me tem
elegido tantas vezes. Dos nossos patricios, deixem-me dizel-o aqui em
familia, não vejo ainda quem dê garantias de desempenhar o mandato,
muito melhor do que eu. Chamasse eu contra mim a animadversão d'este
povo, e elles, á falta de outros, acceitariam ámanhã qualquer nome
inscripto na carteira do ministro; um homem que nunca tivessem visto, e
que nem soubesse em que ponto da carta estava o circulo de que se
propunha ser representante. Mas perdôa-me, Lena, talvez isto te esteja
parecendo um censuravel excesso de vaidade.

--Não, meu pae, ninguem acredita mais do que eu no muito valor da sua
influencia, mas... Ó meu Deus!... isso vae ser a morte do pobre tio
Vicente! Imagine bem o que é n'aquellas idades e com aquelle genio, a
grandeza do sacrificio que vão exigir d'elle?

--Custa-me ser obrigado a isso; porém...

--Valia mais esperar algum tempo. A vida d'elle não pode ser muito
longa. Deixem-o morrer em paz, á sombra d'aquellas arvores a que elle
quer tanto. Que importa passar mais alguns annos sem uma estrada?

--Poesia!--disse o conselheiro, sorrindo para Henrique, que lhe
correspondeu.

--Perdão!--acudiu Magdalena, córando--é caridade.

--Ora vamos, Lena. Sê razoavel. Todos soffrem no mundo sacrificios
maiores do que esse; eu mesmo, que me não tenho ainda assim por victima
da sorte...

--E não haveria outro meio?--perguntou Angelo.--Acaso ha só esses dois
logares para dirigir a estrada?

--Que antes nunca se fizesse!--exclamou Magdalena, apaixonadamente.

--Ahi temos como o sentimento me torna retrograda a minha Lena. Já clama
contra as estradas como qualquer reaccionario convicto. Havia um outro
traçado, mas esse ia destruir completamente os campos do Brejo.

--Ah! então esse, esse! São bens nossos!--exclamou Magdalena com
vivacidade.

--São bens de Angelo, filha, e por ventura aquelles que um dia mais
valiosos se tornarão para teu irmão.

--Os charcos?--disse Angelo, encolhendo os hombros--ora! Só para viveiro
de rãs.

--Hoje pouco mais são do que isso, e como tal nol-os pagariam agora.
Dentro, porém, de alguns annos, operados alli os trabalhos de esgoto,
que eu projecto, verão em que se transforma aquillo. É exigir a um homem
muita abnegação pretender d'elle que sacrifique assim os elementos da
riqueza futura de seus filhos; quanto mais que as vantagens não seriam
taes que...

--Não pediriamos esmola, meu pae--notou timidamente Angelo.

--Nem o Vicente a pedirá. Visto que estaes tão desprendidos de
interesse, que não hesitaes em fazer-lhe sacrificio dos vossos bens,
podeis ceder-lhe o sufficiente para o compensar da perda.

--Mas quem o compensará dos golpes nos seus affectos?--perguntou
Magdalena.

--Tambem tu! São segredos do coração feminino essas compensações.
Deixo-as á tua disposição.

--Meu pae! meu pae! se é ainda possivel atalhar-se!

--É impossivel.

--Meu tio!--secundou Christina.

--Mano! Primo!--disseram a um tempo as senhoras mais idosas.

--O que posso fazer é ir eu proprio falar com o Vicente, para o mover a
consentir na expropriação amigavel, que farei que lhe seja o mais
vantajosa possivel.

--E tem coração para lhe ir propôr isso?

--Dize antes se tenho coragem para arrostar com as iras do velho, e com
as maldições que já sei vae sacudir sobre mim.

Lena calou-se, suspirando.

--Mas vejam a inevitavel fatalidade que me persegue!--continuou o
conselheiro.--Eu, que tinha feito voto de não me entreter de negocios
publicos esta noite! Ai, Lena, Lena, a culpada és tu!

--Eu?! Eu, que abomino a politica! que só ella podia fazer entrar uma
crueldade no coração de meu pae!

--Ó tio, veja se faz com que a estrada vá por outro sitio!--implorou
meigamente Christina.

--Tambem tu, Christe! tambem tu!

--Pudera, mano! Não, que uma coisa assim! Isso é até uma ingratidão para
com um homem a quem esta aldeia tanto deve--disse D. Victoria.

--Pois não é! E logo um quintal onde cresciam tantas plantas de
virtudes!--accrescentou D. Dorothéa.

--Vá vendo, sr. Henrique, como se conspiram todos contra mim. Veja como
um sentimento insignificante organisa uma opposição.

--É uma lição que estou recebendo, sr. conselheiro.

--Meu pae,--insistiu Magdalena--eu espero ainda que, ouvindo o tio
Vicente, se commoverá e trabalhará por alterar esse fatal plano que
principia por arrancar arvores, mas que, pode estar certo, com ellas
arrancará uma vida.

--Romances! Lena, romances! Os romances, lidos em plena aldeia, são
perigosos. Falta aqui nos ares um certo scepticismo que, não sendo em
dóses exaggeradas, tem a vantagem de não deixar vêr as coisas da vida
através do prisma dos livros de imaginação. Mas basta de falar em
politica. Ámanhã procurarei o herbanario. Espero uma recepção de gêlo, e
vou preparado para uma ladainha de recriminações, mas irei. Nada
esperes, porém, da entrevista, Lena; nem o mal, se mal é, se poderia já
atalhar; nem o orgulho de Vicente lhe permittiria expansões á
sensibilidade, que cheguem a commover-me. Conheço-o.

Magdalena não instou. Ficou, porém, pensativa e sem o menor vestigio da
alegria, com que principiara o serão.

N'isto ouviu-se um toque de sino longinquo.

--Já toca para a missa do gallo! Ouvem?--disse D. Victoria.

--Vamos! Não ha tempo para demoras--exclamou o conselheiro,
levantando-se.

Todos o imitaram, menos Magdalena.

--Não vens, Lena?--perguntou Christina.

--Não.

--São amúos, filha!--disse-lhe o conselheiro, indo por traz d'ella; e,
tomando-lhe a cabeça entre as mãos, beijou-a na fronte.

--Não, meu pae, é uma dôr de cabeça tão violenta!

--A maldita politica é o que faz! Pois fica; fica, porque está fria a
noite.

--Far-te-hei companhia, Lena, disse Christina.

--Não, não. Se insistes, obrigas-me a sair.

--Aviem-se!--dizia D. Dorothéa.--Henriquinho, vens?

Henrique, cujo ardor em ouvir a missa da meia noite esfriou desde que
viu Magdalena ficar, respondeu:

--Ó tia... a falar verdade!... se me dispensassem!...

--Vem d'ahi, preguiçoso! anda!

--É que... para um homem doente...

--Ai, não; se te ha de ás vezes fazer mal, então não--apressou-se a
dizer a precavida senhora.

E foi deferido por unanimidade o requerimento de Henrique, a quem cêdo
depois Torquato foi ensinar. o caminho para o quarto onde devia
pernoitar.

O conselheiro, D. Dorothéa, Christina e Angelo fôram para a missa do
gallo.

D. Victoria, Magdalena e Henrique ficaram no Mosteiro.

 


XV


Fechando-se no quarto, que lhe deram para pernoitar, Henrique de
Souzellas sentiu poucas disposições de dormir. Uma profunda excitação
impedia-lhe o repouso; em parte era devida ás occorrencias d'aquella
noite, tão fóra dos seus habitos de vida; em parte, digamol-o em
verdade, á influencia dos vinhos, com que secundára os brindes do
conselheiro, e com que elle proprio iniciára outros.

A imaginação, excitada como estava, cada vez, entre outras imagens, lhe
representava mais bella a de Magdalena. A especie de hostilidade
permanente, com que a morgadinha o tratava, ainda mais parecia
seduzil-o.

Nos poucos dias que passára na aldeia, havia Henrique, com novos
habitos, adquirido uma maneira de vêr e de julgar as coisas e as
pessoas, differente da que lhe era habitual na cidade, no circulo de
amigos, com quem convivia; assim foi que abjurou tacitamente, e sem dar
por isso, certo scepticismo convencional, que uma antipathica escola
conseguiu pôr muito na moda.

Graças a estas melhoras moraes, tão verdadeiras n'elle como as physicas,
as quaes até o constante pensamento das doenças lhe haviam dissipado,
pudéra elle considerar Magdalena como uma mulher superior ao typo, pelo
qual a mencionada escola costuma modelar o sexo: e acceitou sem má
prevenção a aberta sinceridade d'aquelle caracter sympathico, que
descrevia com enthusiasmo nas suas cartas a um dos seus mais intimos
amigos de Lisboa.

Taes estados de convalescença são porém sujeitos a recaídas.

N'este dia, vespera de Natal, recebera elle a resposta áquellas cartas,
e sob as impressões com que ficou da leitura, tinha vindo para o
Mosteiro.

O amigo ria-se, com todo o elegante scepticismo de um homem da moda, da
candura e da ingenuidade de Henrique. Dizia-se sinceramente penalisado á
vista dos profundos estragos que alguns dias de provincia tinham operado
n'elle. Via-o disposto a idealisar a mulher, a mais perigosa e mofina
monomania que, dizia o tal, pode transtornar o cerebro de qualquer
homem.

Com aquella ausencia de escrupulos, com que todos os dias caracteres,
aliás não pervertidos, levianamente calumniam ou ferem de suspeitas
reputações de todo o genero, elle fazia irreverentes allusões á
morgadinha e zombava de Henrique, que ainda tomava a sério as isenções
de uma rapariga de vinte e tres annos. Acabava por o aconselhar a que
indagasse de algum primo timido e modesto, ainda que menos ingenuo de
certo do que elle Henrique se estava mostrando.

Esta carta fez mal a Henrique. Exacerbou-lhe a doença, que estava em via
de cura. Um espirito mephistophelico parecia havel-a dictado. Henrique
transportou-se pela imaginação, depois de lel-a, a um dos circulos que
habitualmente frequentava em Lisboa; suppoz-se a fazer alli a narração
da sua vida na aldeia, e parecia-lhe estar vendo os sorrisos com que o
escutariam, e elle proprio construia os epigrammas, com que lhe seria
por certo commentada a narração. E então uma vergonha de má indole,
vergonha do homem que põe um preceito de elegancia acima de um dictame
de moral, fazia-o córar, apesar de a sós comsigo mesmo. Voltava a ler a
carta, que lhe parecia dictada pela experiencia e pelo bom senso,
emquanto que a ingenuidade das suas crenças se lhe figurava ridicula e
desarrazoada.

Quem ha que não tenha tido momentos d'estes? Quem se pode gabar de não
ter perguntado um dia aos seus escrupulos mais nobres se não são meros
preconceitos, que ficaram de uma educação acanhada? Quem não poz um
momento em dúvida as sublimes verdades que a mãe lhe ensinou em creança?
Henrique estava passando por um d'esses accessos de scepticismo.
Magdalena era já para elle uma astuciosa, que muito se deveria ter rido
da sua simplicidade; e tanto o incommodava esta ideia, que promettia a
si proprio ser d'ahi por deante mais arrojado. Esta ordem de reflexões
estavam acudindo outra vez a Henrique e recebiam da excitação, que se
apoderára d'elle aquella noite, uma tenacidade maior. Sentindo a cabeça
em fogo, Henrique levantou-se, apagou a luz, e abrindo a janella do
quarto, saiu á varanda que deitava para a quinta, a respirar o ar livre.

A noite era sem luar e sem nevoas. Descobriam-se muitas estrellas no
céo, que com forte scintillação parecia illuminarem a terra de um tenue
crepusculo, que mal deixava distinguir os objectos.

O ar frio da noite estava produzindo em Henrique um prazer, que elle
procurava prolongar.

Não havia passado muito tempo, depois que assim se encostára á varanda
do quarto, quando lhe attrahiu a attenção certo vulto alvacento, que
furtivamente se movia n'uma das ruas da quinta.

Pareceu-lhe uma figura de mulher.

Justamente n'aquella occasião tinha Henrique na memoria o periodo final
da carta do seu amigo.

Por isso occorreu-lhe uma ideia satanica.

--Ah!... Querem vêr que... A dôr de cabeça subita... A insistencia em
ficar só... Percebo... Um primo timido e modesto...

E murmurando estas palavras, um sorriso maligno encrespava os labios de
Henrique.

--Se eu pudésse averiguar isto... Mas ella corre com uma ligeireza que,
antes que eu ache meio de sair para a quinta... já a levará bem longe.

O meio porém não era difficil de encontrar. Da varanda em que estava
Henrique passava-se com grande facilidade para outra immediata, na qual
havia uma escada de communicação para a quinta.

Reconhecendo esta disposição do terreno, Henrique operou n'um momento a
descida, e pouco depois procurava através da quinta os vestigios da
mulher que tinha perdido de vista.

N'esta operação esforçava-se por combinar com a maxima ligeireza a
possivel precaução, para não ser por causa alguma frustrada a sua
pesquiza.

A quinta do Mosteiro era extensa e cerrada toda em volta por um solido
muro de alvenaria. Aqui e alli abriam-se n'elle differentes portas que
deitavam para os diversos logares da aldeia. N'este vasto recinto havia
pomares, lameiros, vinhedos e hortas, por onde Henrique errava á tôa, já
desanimado de ser bem succedido no empenho.

De repente julgou ouvir, a pouca distancia, o rodar de uma chave na
fechadura. Parou por precaução e ficou-se a escutar. Logo depois ouviu o
bater de uma porta e mais nada.

Então adeantou-se rapidamente; n'um momento deu com a porta, que ainda
se conservava aberta.

Saiu por ella para a rua, mas achou-a deserta.

Dirigiu-se á esquina que d'alli avistava; dobrou-a, mas nada viu; as
ruas eram solitarias, e uma só casa terrea que havia ao lado de um
quintal estava discretamente fechada e silenciosa.

Desistindo de proseguir na infructuosa pesquiza, Henrique voltou para a
porta.

--Esperemos aqui por esta donzella destemida que assim anda de noite a
correr aventuras. Ha de ser curioso observar como ella fica, quando me
encontrar por guarda portão. Veremos se ainda depois d'isto durarão
aquelles ares de soberania, com que me trata. Um primo timido e
modesto!...

E, sorrindo á lembrança da scena que se preparava, Henrique fechou a
porta por dentro, e accendendo um charuto, poz-se a passeiar, aguardando
o regresso da morgadinha.

Para não perdermos muito tempo á espera tambem, aproveital-o-hemos a
inquirir de coisas e de pessoas, cujo conhecimento é util á continuação
da nossa historia.

A pouca distancia do extremo da quinta do Mosteiro e n'um sitio a que a
abundancia de vegetação e a suavidade de perspectiva davam o mais
pittoresco aspecto, estava a casa e o quintal do herbanario, casa e
quintal já condemnados pelos lapis e tira-linhas dos engenheiros e
offerecidos em sacrificio aos melhoramentos municipaes e concelhios.

Acharia justificado o quasi terror, com que Magdalena e Angelo escutaram
a nova d'esta expropriação, quem conhecesse a vivenda rustica do
herbanario e soubesse do amor que elle votava a cada objecto d'ella,
assim como da vida que, havia tantos annos, alli vivia escondido e
obscuro.

Para o quintal, que a abundancia das arvores de espinho fazia sempre
verde, abriam-se as janellas da pequena e humilde saleta, onde o
herbanario se entregava ás suas leituras e lucubrações scientificas.
Logo ao pé da porta se estendiam o jardim, em parte de recreio, pelas
flores que o adornavam, em parte de utilidade, pelas simplices
medicinaes, de virtudes mais ou menos problematicas, que o velho n'elle
cultivava.

Vicente tinha entranhada a paixão vegetal, deixem-me assim chamar-lhe.
Adorava as plantas pelas suas flores, pelos seus fructos e pelos poderes
curativos que lhes attribuia. E como se ellas possuissem a
responsabilidade dos effeitos produzidos, assim lhes queria e as
amimava, quando salutares; assim as aborrecia e maltratava, quando
nocivas. A vida isolada e o genio do velho, que sempre fôra dado a
singularidades, augmentaram estas disposicões, que tinham o que quer que
era de pantheistico; e não era raro surprehenderem-o conversando com
ellas, como se convencido de que o estavam comprehendendo.

A borragem, a salva, a fumaria, a herva terrestre, a herva moura, os
trevos, os geranios, as papoulas, as violetas, tão boa camaradagem lhe
faziam, que nem lhe deixavam sentir a solidão.

O herbanario não tinha pessoa alguma ao seu serviço. Elle proprio
cozinhava e por suas mãos fazia todos os mesteres domesticos.

É pois de imaginar que não seria muito complicado o banquete das
consoadas n'aquella casa, e que devia formar em tudo contraste com o que
á mesma hora se celebrava no Mosteiro.

De feito, quando alli eram mais ruidosas as conversas e mais espontaneos
os risos, dois homens apenas, sentados um defronte do outro, a uma
pequena mesa circular, solemnisavam n'aquella modesta sala o santo
anniversario. Um era o proprietario da casa, o outro Augusto, um dos
poucos que se atrevia a frequentar áquellas horas mortas a habitação do
velho.

Além da mesa, sobre a qual estava uma ceia composta de queijo, maçãs,
nozes, castanhas, duas sopeiras com escabeche, especialidade na
confecção da qual o herbanario era eminente, e uma garrafa de vinho do
Porto de promettedora côr de topazio, consistia o resto da mobilia n'uma
estante de pinho, vergada sob o peso de in-folios de grossas
encadernações e folhas vermelhas nos aparos, em algumas cadeiras e
bancos tambem occupados com livros e com varios utensilios empregados
nas explorações scientificas do velho, taes como caixas de lata,
frascos, martelos, foicinhas, limas, os quaes ainda sobravam para
alastrarem o chão.

Todo o recinto era apenas alumiado por um candieiro de azeite, e a
escassa luz, que dos tres lumes que, em attenção á solemnidade da noite,
o velho accendera, ia reflectir-se no vulto alvacento de um Christo de
marfim pendente de um crucifixo negro, que sobresaía n'aquellas paredes
nuas e caiadas.

Havia bastante tempo que aquelles dois homens, sentados defronte um do
outro, guardavam silencio; um d'esses silencios, durante os quaes os
espiritos, como se impacientes com as longuras da palavra, tendo-se
desembaraçado d'ella, voam a par, para adeantarem caminho e voltarem
mais longe a associarem-se á sua mais lenta companheira.

Augusto, com os olhos fixos na luz que illuminava a scena, parecia
alheio a quanto o rodeava.

O herbanario, sem desviar os olhos d'elle, com o braço estendido para o
calice que tinha defronte de si, e a cabeça inclinada, parecia espiar,
um por um, todos os gestos de Augusto, e estudar n'elles os pensamentos
que o preoccupavam. Emfim rompeu o primeiro o silencio:

--Pobre rapaz! Dize-me para ahi tudo o que tens. Para que te mettes a
esconder de mim aquillo que eu ha tanto te leio nos olhos, creança?

--O quê, tio Vicente?--perguntou Augusto, inquieto.

--O quê?! Ouve, Augusto. Deu-te Deus o engenho, sem te esfriar o
coração: são dons do Céo, que se pagam caro e com lagrimas, rapaz.
Bondade de coração, com a cabeça... assim, assim... a dar esmolas aos
pobres se satisfaz; cabeça de fogo, mas coração de gêlo... todos os
meios de levar ao fim ambições, tanto os bons como os maus, todos lhe
servem; mas coração como o teu, com o espirito que tens!... ai, pobre
Augusto, se se escapa ao infortunio, é por milagroso poder do Senhor.

--Não o entendo, tio Vicente,--disse Augusto, com manifesta confusão.

--Não! Olha para mim. E vê se te atreves a repetil-o.

Augusto baixou a cabeça.

O velho sorriu com ar de commiseração e sympathia.

--Tu ainda não sabes fingir. Vamos lá; e cuidas que me não havia de
custar, se não tivesse acertado?--E, depois de breve pausa,
continuou:--Mas ainda quando penso em como tu, uma cabeça forte, assim
te deixaste enfeitiçar!...--E tomando o calice, que tinha defronte de
si, disse com resolução--Quero beber á tua saude, Augusto, e para que em
breve se te desfaça essa loucura.

Quando ia a levantar o calice aos labios, a mão de Augusto susteve-lhe o
braço.

--Não beba. Loucura embora, deixe-me viver e morrer com ella. Sou feliz
assim.

--Ah!--disse o velho herbanario, tomando um ar mais grave; e pousou o
copo, sem desviar de Augusto o olhar penetrante e fixo.

Augusto, depois de um curto silencio, proseguiu com maior vehemencia e
colorindo-lhe as faces um não costumado rubor:

--Sim. Por que o não hei de confessar? Essa loucura que diz, trago-a
commigo, vivo com ella e quasi que para ella. Quero-lhe assim, e não a
desejaria perder. Amor? não é; a tanto não chega... antes um culto, isso
sim. É uma adoração como aquella, em que de pequenos nos educam para com
a Virgem. Que esperanças tenho? Nenhumas. Nem procuro alimental-as. Quer
que lhe diga? Vêl-a; respirar estes ares que ella respira; atravessar
estas devezas em que ella passeia; amimar as mesmas crenças que ella
amima; soccorrer, com o meu óbulo de pobre, a miseria sobre a qual ella
espalha caridosa as dadivas da sua abençoada opulencia... e, ahi está;
são as minhas aspirações; é o futuro que desejo, e com que me contento.
Leu no meu coração, disse; e ha muito que m'o dá a entender; mas não viu
claro de todo, confesse. Julgou talvez que haveria em volta d'este
sentimento um enxame de esperanças loucas, e d'ellas se ria. D'ellas por
certo foi que se riu; é muito generoso para se rir do mais. Enganou-se,
porém, tio Vicente; vê agora que se enganou, não é verdade? Essas
esperanças não existem. Se existissem, bem vê que não estaria aqui. Não
me teria impellido a ambição pelo caminho de realisal-as? Não se me teem
offerecido os meios para tental-o? Mas, veja, quero-lhe tanto, e tanto
me satisfaz esta felicidade a meu modo, que não arrisco um instante
d'ella para tentar uma ventura maior.

O herbanario escutava silencioso, porém meneando a cabeça com ares de
quem não punha demasiada fé n'aquellas palavras.

--Aos vinte annos!...--disse elle por fim--sentir o que dizes... ser
feliz assim!... Deixa passar mais tempo; deixa tomar corpo á paixão e
verás... verás depois...

--Tem dez annos--disse Augusto, sorrindo.

--Dez annos!

--É verdade. De creança a conheço, a paixão que diz; por isso confio
n'ella. Tenho fé em que se não transviará.

--Dez annos!--repetia o velho, admirado.--Porém... ha dez annos...

--Ha dez annos saí eu d'aqui, tio Vicente. Não se lembra? Era então uma
pobre creança da aldeia, educada entre os braços de minha mãe, e
conhecendo, uma por uma, as arvores d'estes sitios e mais nada. Saí
d'aqui e fui para Lisboa. Não imagina as fortes impressões que recebi na
noite que alli cheguei. Nunca a historia mais maravilhosa de fadas e de
encantamentos que ouvia, quando era pequeno, nunca me feria a imaginação
assim! Tudo era novo para os meus sentidos. O rumor, as luzes, os
palacios, os edificios, os carros produziam-me quasi uma vertigem;
sentia-me vacillar. Achei-me, nem sei bem como, de tão atordoado que ia,
n'uma casa onde estava o conselheiro, e em que se reunia, n'aquella
noite, uma companhia numerosa de homens, de senhoras e de creanças,
muitas da mesma idade que eu, e que formavam uma assembleia á parte. A
sala era magnifica; muitas luzes, muitos espelhos, muitas flores, moveis
dourados, tapetes, quadros, crystaes, e para acabar de me confundir, o
piano, objecto novo para mim, e que eu me não fartava de admirar. Tudo
isto me perturbava, como imagina, e por fôrça me havia de dar uns ares
de estupefacto. O conselheiro recebeu-me com affecto; deu explicações ás
pessoas presentes a respeito da minha vida, e deixou-me entregue ás
creanças. Ahi fiquei eu, bisonho rapaz da aldeia, com a minha jaqueta
mal talhada, o meu olhar timido, os meus modos acanhados, no meio de uma
turba de creanças elegantes, que se me figuravam de uma essencia
superior á minha. As creanças são desapiedadas, quando assim em
companhia. Cêdo percebi que estava sendo o alvo da zombaria d'ellas;
riam ao principio com disfarce e falavam-se ao ouvido, olhando-me de
relance; redobravam as risadas e transmittiam reflexões a meu respeito,
cujo sentido julguei adivinhar. Depois dobrou a ousadia n'ellas,
dirigiram-me ditos, gracejos, cada vez menos disfarçados; formaram
grupos em volta de mim; se eu falava, respondiam-me rindo. Então
apoderou-se de mim um profundo desalento, comprimiu-se-me o coração de
tristeza. Lembrei-me, com saudades, das arvores da minha aldeia, do meu
pobre quarto, de minha mãe; e achei-me alli tão só, tão sem conforto nem
amizades, que as lagrimas me vieram ferventes aos olhos. Ainda hoje não
hesito em dizel-o, foi aquelle um dos mais amargos momentos da minha
vida. Nós, quando adultos, esquecemos facilmente os martyrios da
infancia, quando n'esta idade uma sensibilidade exaggerada tão dolorosos
os faz. Foi então que se deu um facto que, na minha piedosa superstição
de rapaz aldeão, quasi me pareceu de intervenção divina. Abriu-se a
porta e entrou na sala uma creança, que eu não tinha ainda visto. Era
uma menina pallida, de gesto affavel e angelico. Vestia toda de branco.
Entrou e approximou-se do conselheiro, que jogava com uns amigos. O
conselheiro, depois de beijal-a, não sei que lhe disse ao ouvido. Ella
correu então a sala com a vista; viu-me e veio direita a mim.

--Não conhecias já da aldeia, Magdalena?--perguntou o herbanario.

--Não; minha mãe veio para aqui no anno em que, por morte da sua,
Magdalena voltou a Lisboa. A affabilidade, a singeleza desaffectada com
que me falou, causou-me um allivio ineffavel. Ainda hoje sinto como que
os reflexos d'aquella suave impressão. Parecia-me ouvir a voz de minha
mãe; tinha o timbre da sympathia. Encheu-se-me logo de confiança o
coração. Com ella não senti mais aquelle acanhamento que me enleiava.
Depois falava-me de coisas que eu sabia tão bem! Perguntava-me a
respeito dos campos, das arvores, das abelhas, dos ninhos dos passaros,
das flores, dos trabalhos do linho... interrogando-me e escutando-me com
tanta deferencia e attenção, que me inspirava coragem, e julgo que me
estava dando ares de mais importancia junto d'aquelles pequenos senhores
e senhoras que, pouco a pouco, se fôram despojando dos seus desdens e
acabaram por me escutar e interrogar tambem com curiosidade. Já uns me
lançavam os braços ao hombro, outros formavam circulo em volta de mim, e
cêdo fui eu a principal personagem d'aquella noite. Essa creança...

--Era Magdalena; adivinhal-o-hia agora, se já o não soubesse. Não podia
deixar de ser ella--exclamou o herbanario, com um fulgor de sympathia a
illuminar-lhe o olhar.--Era ella; sempre assim foi!

--Era. Esta scena pueril teve uma grande influencia no meu espirito.
Hoje ainda, se penso n'ella, acho-a de uma grande significação moral.
Pois não é mais apreciavel n'uma creança esta prova de superioridade de
caracter, do que nas idades em que muitas vezes a razão e o calculo a
impõem a uma indole naturalmente pouco generosa? Alli era tudo
espontaneidade. Desde então a adoro.

O herbanario parecia não ter já animo para sorrir.

--Agora vejo por que trouxeste da cidade aquella grande tristeza. Tão
novo!

--É verdade. Foi esse o motivo. Magdalena foi sempre para mim affavel;
inclinava-se sobre o livro em que me via estudar, corrigia, sorrindo, os
defeitos da minha educação aldeã, e, se reconhecia progressos no
discipulo, manifestava uma alegria que era para mim o maior incentivo e
o maior premio. Fiz os exames. Quando voltei a casa, Magdalena com certo
ar de gravidade, que aquella creança já então tomava, perguntou-me, no
meio de uma conversa propria de creanças: «E sente-se com genio para ser
padre, Augusto?» Já me não lembro do que lhe respondi. Trouxe porém
commigo aquella pergunta; trouxe-a para a solidão da minha aldeia.
Procurei cerrar os ouvidos á voz interior, que desde então m'a repetia
sempre, até junto da cabeceira de minha mãe, cuja maior aspiração era,
como sabe, vêr-me padre. Mas em vão! foi desde então uma dúvida
constante com que luctava. Com a morte de minha mãe tudo mudou. Pela
primeira vez respondi á interrogação, que havia tanto tempo dirigia a
mim proprio, e consegui por fim responder: «Não». Eis o segredo do meu
passado.

--E por que disseste «Não»?

--Porque vi que toda a minha vida era para a consagrar a um sonho; que o
sonharia no altar, no pulpito e no confessionario; que para toda a parte
me seguiria a imagem, a que eu já não podia renunciar, e a qual então já
não contemplaria sem remorsos, como agora o faço. Foi por isto.

--Só? Não te illudirás a ti mesmo, Augusto? Repara bem, que n'isso pode
ir a tua felicidade! Estás bem certo de que não ha uma esperança dentro
do teu coração?

--Se a tivesse...

Ia a continuar, quando julgou ouvir o rumor de passos na rua. Cêdo
batiam na porta duas leves pancadas, e uma voz dizia de fóra:

--Está acordado ainda, tio Vicente?

O herbanario trocou um olhar com Augusto. A voz era de Magdalena.

Augusto ergueu-se com presteza. O herbanario quiz retêl-o.

--Onde vaes?

--Deixe-me sair. Não poderia vêl-a agora. Não estou preparado com a
minha indifferença.

--Pobre mascara!--N'esse caso sae pelo quintal.

--Tio Vicente!--repetiu Magdalena, de fóra.

--Eu vou, minha ave nocturna; eu vou já. Espera--continuou em voz baixa
para Augusto:--dá-me a tua palavra que não escutarás.

--Dou; mas... promette que nada lhe dirá?

--Eu?!... Louco! Assim te pudésse fazer esquecer, quanto mais... Adeus!

Depois de assegurar-se de que Augusto saira pelo lado do quintal, o
herbanario foi abrir a porta da rua á morgadinha.

 


XVI


--Ora com Deus venha a minha fada; esta querida Lena, que se não esquece
dos seus amigos velhos... Boas festas me trazes pela noite, filha!

No rosto e nas maneiras de Magdalena havia evidentes indicios de
preoccupação.

--Boas noites, tio Vicente! Pouco me posso demorar; eu venho...

O herbanario conduziu-a para junto da mesa, onde estavam ainda os
signaes de refeição, que havia pouco findára. Vendo os dois talheres, a
morgadinha olhou interrogadamente para Vicente:

--Estava alguem comsigo?

--Esteve Augusto, que ceiou aqui. Porquê? Temos por ahi mais alguns
livros a comprar-lhe?--continuou, sorrindo com benevola malicia.--Tenho
eu mais uma vez de chamar em meu auxilio a fada que, de vez em quando,
me ensina em segredo quaes os livros, que o rapaz mais deseja e de que
eu mal sei dizer os nomes? Hei de ainda ouvir calado agradecimentos, que
não mereço, e que elle mais de coração daria, a quem são de justiça
devidos?

--Não, tio Vicente; não se trata agora d'isso.

--Ai, Lena, Lena, que não sei bem o que devo pensar de todas estas
coisas.

A morgadinha parecia um pouco perturbada com as palavras do herbanario.

--Que ha de pensar? Ha nada mais natural? Angelo foi que me deu o
exemplo. Elle sabia o amor que Augusto tem á leitura. Porém o cofre de
Angelo é pequenino, bem sabe; emquanto que eu chego a nem saber em que
hei de consumir o que me sobra. Por isso foi que me lembrei... porém
como não conviria que eu propria fizesse o presente, nem elle de mim o
acceitaria, é que eu lhe pedi que o fizesse em seu nome. Mas falemos de
outra coisa, porque me não posso demorar. Venho ás occultas e emquanto a
minha gente foi á missa do gallo. Tio Vicente, um objecto muito grave me
obrigou a procural-o a estas horas.

--Ah!--disse o velho, sentando-se em tom de gracejo.--Adivinho a
gravidade do caso. O filhito do boieiro, o teu afilhado predilecto, tem
algum principio de sarampo ou de garrotilho, e vens...

--Não, não. Diga-me, tio Vicente, tem muito amor a esta casa e a este
quintal?

O velho tornou-se immediatamente sério.

--Se lhe tenho amor?! Que pergunta!

--Tem?

--Nasci aqui, filha.

--Custar-lhe-ia a...

--A quê?

--A... a...

E Magdalena hesitava.

--Fala!--insistiu o velho, já inquieto.

--A separar-se d'ella?

O herbanario respondeu simplesmente:

--Ah! morreria.

Magdalena fez um gesto de afflicção.

Em Vicente crescia o desassocego.

--Mas... Dize, Magdalena; o que significam essas palavras?

--É que...

--Explica-te!--exclamou o herbanario, quasi imperiosamente.

--Ouça-me, tio Vicente; ouça-me, mas não se afflija. Eu vim de proposito
para o prevenir. Mas, por amor de Deus, socegue; senão tira-me o animo
de continuar.

--Que socegue, e tu a atormentares-me com essas demoras!

--Perdôe... Fala-se em deitar abaixo estas arvores e esta casa, para...

O herbanario de um impeto poz-se a pé. Fulgurou-lhe nos olhos um
relampago de ira terrivel!

Magdalena calou-se, assustada.

--Deitar abaixo estas arvores e esta casa?! Quem?... Quem se atreve?
Pois que venham! que venham!

Mas reparando no terror que estava causando a Magdalena, procurou
reprimir-se, e com uma voz que elle se esforçava por tornar tranquilla,
continuou:

--Mas vejamos. Então querem, dizes tu... Fala, Lena, fala... Dize o que
sabes. Quem é?... Para que fim? Pois quem pode lembrar-se de... Fala,
bem vês que eu estou socegado, filha.

--Ha um projecto de estrada...

--Ah!--disse Vicente, com um grito de raiva.--Não digas mais. Já
sei--continuou com renascente exaltação.--Já sei. Adivinho o resto. É
teu pae que o determina; é teu pae que o resolveu?

Magdalena abaixou a cabeça com dolorosa expressão.

O furor do velho exaltou-se outra vez.

--Teu pae! Teu pae, Lena! Então esse homem jurou matar-me?

--Tio Vicente!

--Elle não sabe o que são para mim estas arvores e estas paredes? Elle
não sabe que a minha alma está n'ellas, presa a estas raizes? que com
ellas se despedaçará? Esse homem sem coração não vê que são estas as
minhas affeições, as unicas? a minha unica familia? Elle, o companheiro
dos meus primeiros annos! que, como eu, ahi brincou, á sombra d'essas
mesmas arvores e sob os olhares de meu pae, que tambem o abençoava, tão
duro de coração se fez que, sem respeito por estas memorias todas, assim
me quer separar do que me dá vida, do que ainda me prende ao mundo? E é
teu pae este homem, Lena?

--Por quem é, tio Vicente; ouça-me. Deixe-me dizer-lhe ao que vim, que
talvez tudo se remedeie ainda.

--Sim, sim; tudo se remediará... com a minha morte. Talvez que ella seja
util a teu pae... Talvez precise d'ella.

--Oh! não creia, não creia.

--É duas vezes doloroso o golpe; porque me separa do que amo deveras e
por vir da mão de quem vem. Eu era amigo de teu pae, Lena. Acredita que
o era... ainda. Conheci-o tão generoso e tão innocente, como teu irmão
Angelo. Muitas vezes me enthusiasmei ao ouvil-o falar dos seus
projectos. E acreditei n'elle. Tinha então no olhar um fogo, que não
mentia. Vi-o seguir a carreira publica e acompanhei-o com a minha fé.
Não tardaram os primeiros desenganos; não lhes quiz dar credito ao
principio. Vieram outros e outros. Fui vendo então que os maus ares
d'aquella terra tinham embaçado o brilho do caracter, que eu julguei
melhor do que os outros. Mas o peor dos desenganos estava-me reservado
ainda. Para teu pae hoje os homens são medidos pelos votos, que podem
lançar na urna eleitoral!

--Por amor de Deus, tio Vicente, não fale assim! Não duvide de meu
pae!--exclamou Magdalena, a quem cruelmente estavam affligindo as
recriminações amargas do herbanario.--Meu pae estima-o e respeita-o. Não
tem o coração endurecido que diz. Elle mesmo ámanhã aqui ha de vir. Verá
então...

--Elle? Ámanhã?...

--Para isso venho prevenil-o. Não o receba com asperezas, tio Vicente;
fale-lhe com brandura. Talvez o commova, talvez seja ainda possivel
valer a tudo. Ainda não está decidido... Julgo... E que estivesse...

--Ámanhã! Teu pae vem aqui ámanhã? E ousa vir elle proprio annunciar-me
o que sabe que vae ser uma sentença de morte?

--Não; elle ignora o mal que isto lhe causa, creia. Sabendo-o, verá
como...

--Teu pae conhece-me, Magdalena. Teu pae conhece-me, e ha muito. Não
julgues que pode errar, calculando o effeito d'este golpe. Mas que
queres tu? ensinaram-lhe já a avaliar em pouco as venetas de um velho
quasi tonto. Homens que trazem o pensamento em interesses tão altos, não
teem vista para estas pequenas desgraças.

Magdalena sentia-se possuir de uma profunda tristeza, ao ouvir falar o
herbanario. Era uma dolorosa provação para o seu amor de filha vêr assim
uma nuvem de desconfiança offuscar a ideal concepção que ella formára do
pae, e não ter fôrças para a afugentar. Ás vezes uma dúvida cruel
fazia-lhe, a seu pesar, suppôr que o herbanario tinha razão. Agora só
conseguia oppôr um gesto supplicante áquellas acerbas accusações, que
por muito tempo ainda desattenderam esta supplica muda.

A final serenou a violencia da irritação do velho; succedeu-lhe, porém,
uma commoção profunda, dominado por a qual disse a Magdalena:

--Socega, Lena; ámanhã eu receberei teu pae sem a menor aspereza.
Fizeste bem em vir primeiro, filha. Se o não esperasse, talvez não
soubesse conter-me. Agradecido. Uma noite é bastante para me preparar.
Agora vae, deixa-me só; deixa-me... chorar.

E cobrindo o rosto com as mãos, deixou-se cair, soluçando, sobre a mesa,
junto da qual se achava.

Magdalena correu para elle, commovida.

--Então, tio Vicente, então! Socegue! Ámanhã meu pae virá. Fale-lhe, e
eu espero que ainda será tempo de evitar... o mal.

--Pode ser, pode ser...--respondia o velho.--E se não pudér, Deus me
acudirá, para não viver por muito tempo fóra da casa em que nasci.

Magdalena já não tinha que lhe dizer.

--Eu pedirei tambem, e Christina, e todos pediremos, como já pedimos.
Tenho esperança.

--Não, filha, não peças tu. Deixa-me só com teu pae ámanhã. Disseste que
tinhas vindo, sem ninguem saber?--continuou elle.--Olha que te não dêem
pela falta. Vae, que é tempo.

--Mas...

--Vae, filha. Eu estou já tranquillo. Bem vês. Deus te recompense a
bondade que tiveste. Vae. Queres que te acompanhe?

--Não é preciso. Vim pela porta das prezas, que deixei aberta. São dois
passos e estou na quinta. Mas, tio Vicente...

--Vae então; e Deus te abençoe.

E o velho pousou a mão sobre a cabeça de Magdalena, que saiu commovida.

E elle caiu outra vez sobre a mesa, sem reter o pranto que lhe rebentava
dos olhos.

É sombria a saudade n'aquellas idades, porque as esperanças são já muito
debeis para lhe darem luz.

Saindo de casa do herbanario, perturbada ainda pelos sentimentos que
alli a tinham agitado, a morgadinha dirigiu-se á pressa para a porta da
quinta, por onde saira. Ao impellil-a para entrar, a porta resistiu.
Este facto surprehendeu e inquietou um pouco Magdalena. Quem poderia ter
fechado a porta? E se effectivamente estava fechada, tornava-se-lhe
necessario um longo rodeio pela aldeia para chegar a outra, que pudesse
encontrar aberta.

N'esta hesitação impelliu outra vez instinctivamente a porta, que lhe
oppoz a mesma resistencia.

Cêdo, porém, sentiu o rodar da chave na fechadura e viu mover-se
lentamente a porta, e no vão, que augmentava, desenhar-se uma figura de
homem.

Antes que pudésse, através da obscuridade da noite, reconhecer a pessoa,
que assim tão a proposito lhe acudia, deram-lh'a a conhecer estas
palavras:

--Muito boas noites, prima Magdalena. Espero que pelo menos me concederá
licença para exercer, junto de si, as humildes funcções de porteiro.

Era Henrique de Souzellas.

Magdalena não foi superior a um vago sentimento de receio, ao
encontrar-se ahi com o hospede de Alvapenha; comtudo esforçou-se por
dominar-se e respondeu, com apparente presença de espirito:

--Ah! É o primo Henrique. Muito boas noites. Ahi temos um requinte de
galanteria, que eu estava muito longe de esperar.

--E de desejar, não?

--E de desejar tambem; confesso-o. Por mais diligente que seja um
porteiro, nunca o é tanto como uma porta aberta.

--Mas é mais discreto.

--Duvido. Em todo o caso, agradeço o incómmodo.

E, dizendo isto, preparava-se para entrar, sem mais explicações.

--Uma palavra, prima Magdalena--disse Henrique, retendo-a por o braço e
com certa expressão nas palavras e no gesto, que redobrou o sobresalto
da morgadinha.--Não ha mais accommodado terreno para um dialogo solemne
do que o limiar de uma porta. Ordinariamente no limiar das portas o
homem muda de mascara; depõe a que apresenta na sociedade e afivela a
que traz na familia, e vice-versa. Ora n'estas mudanças é facil
surpreender o verdadeiro rosto da pessoa.

Continua no Livro Morgadinha Canaviais2